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sábado, 26 de maio de 2012

Desastres em áreas urbanas brasileiras: uma reflexão a partir das ideias de risco e catástrofe





Jonatas Ferreira e Breno Fontes

As sociedades contemporâneas parecem radicalizar um sentimento coletivo e intenso de ansiedade, marca mais que conhecida do processo de modernização. Essa ansiedade nos é íntima, filhos que somos da aceleração tecnológica e da corrosão permanente dos vínculos sociais associados à “destruição criativa” (MARX, Berman, Sennett, Virilio, por exemplo). Porém, em nenhum outro contexto social o futuro da espécie se apresenta a partir de perspectivas tão sombrias quanto aquele que nos é mais diretamente familiar, basta que recordemos algumas espadas que pairam sobre nossas cabeças: ameaça atômica, aquecimento global, crise econômica mundial, terrorismo internacional. Em nenhum outro contexto social, nossa capacidade coletiva de nos anteciparmos, de nos prepararmos para o futuro incerto parece ser questionada com tamanha intensidade. Diluição, desorientação, desastre, catástrofe, risco, são palavras que têm mobilizado a produção sociológica recente que nos reporta invariavelmente a uma situação paradoxal. De fato, como propõe o “catastrofismo ilustrado” de Jean-Pierre Dupuy, confrontamos constantemente a perspectiva de materialização de uma realidade impossível, inconcebível, mas que em uma análise ex-post facto, mostra-se inevitável. Pensemos nos exemplos clássicos: as duas guerras mundiais, ou o extermínio de centenas de milhares de seres humanos que resultou na explosão de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Tudo isso é inimaginável para uma razão antecipadora e, no entanto, concretizado o horror destes fatos, fatos que têm o poder de cancelar toda experiência (BENJAMIN), eles surgem como consequência lógica de uma configuração política, econômica e tecnológica.

A constatação deste paradoxo, deste absurdo com o qual se depara a razão, não deve nos impor um fatalismo trágico, a acedia de que fala Benjamin, mas o compromisso de investigar o motivo pelo qual a razão científica responde tão inadequadamente às demandas de um “tempo das catástrofes”, a uma época dos grandes desastres. Dupuy alinha sua contribuição com a autores como Weber, Ivan Illich, Hans Jonas, para quem a razão técnica, hegemônica, vem desencadeando certo automatismo, “efeitos não-pretendidos” da ação racional, que nos surgem como “contraprodutividade” desta mesma razão. A lógica que preside a ação racional, técnica, esclarece Illich, é marcada pelo desvio, pela postergação de uma satisfação. O perigo de uma civilização exacerbadamente técnica, como é o caso da nossa, é de nos perdermos nos desvios da tecnicidade sem podermos mais nos perguntar a que serve o mundo dos instrumentos. Weber já nos questionava acerca das condições de exercício de nossa responsabilidade em uma sociedade em que a racionalidade instrumental (em cujo contexto a regra é seguida por ser aparentemente inevitável) se torna um imperativo. As implicações daquilo que formula Dupuy a partir de Ivan Illich talvez fiquem mais evidentes quando tomarmos os resultados de um estudo comparativo elaborado pelos dois pensadores acerca do uso de bicicletas e carros (DUPUY, 2011, p. 30). A conclusão a que chegam, mais uma vez, nos conduz a uma espécie de paradoxo. Se nossa intenção é poupar tempo, argumenta, devemos optar pelo primeiro meio de transporte, mesmo quando consideramos grandes distâncias. Contabilizados os custos do carro e transformados esses valores em tempo de trabalho, a conclusão é que o tempo que gastamos para manter tal meio de transporte os transforma em algo mais lento que a bicicleta. No entanto, se isso é claro, por que usamos carros e não bicicletas, já que estas últimas são environment friendly e mais saudáveis? Porque a velocidade do capitalismo, que seria em princípio um meio técnico, converte-se em um fim: gastar, dilapidar, esgotar recursos apresentam-se como ações inevitáveis, necessárias à própria dinâmica do capitalismo. Não seria o caso de questionarmos o sentido desta dinâmica?

Tomemos uma outra perspectiva. Os que pensam uma sociologia do desastre, fazem-no a partir da constatação de que a ocorrências de catástrofes naturais sobre sociedades já não devem ser pensadas exclusivamente como fenômeno natural. Ora, em seu livro Hominescências, Michel Serres já alertava para o fato de a vida civilizada, o consumo de energia nas grandes cidades, por exemplo, ter se convertido em um fenômeno natural, dada a escala desse consumo, o impacto que apresenta sobre o planeta. E neste caso não basta afirmar que esses acontecimentos se transformam em desastres “quando o seu potencial de dano atua sobre uma comunidade humana vulnerável” (KROLL-SMITH apud FONTES:2008:118), ou seja, quando as comunidades humanas de alguma forma se desestruturam. Evidentemente, o desastre ambiental ocorrido no Golfo do México apresenta um impacto direto nas populações humanas do sudeste americano. Porém, a ideia de vulnerabilidade deve ser estendida à fauna e à flora afetadas por aquele desastre.

Uma coisa, porém, é perceber que as consequências de um que o desastre, de uma catástrofe se estendem para além da esfera da cultura, ou seja, para além das populações humanas. Outra coisa completamente distinta é perceber a importância do desastre, da catástrofe, humanamente produzidos, como fenômeno radicalmente moderno que deve ser compreendido dentro de um contexto tecnológico, politico, econômico e cultural específico. Admitindo os elementos de sociabilidade como variáveis centrais para a explicação da produção deste tipo de fenômeno, assumem importância fundamental os conceitos de risco, vulnerabilidade e manejo, que instrumentalizam empiricamente o fenômeno. Ocorrência que, como afirmamos, têm origem nos aspectos organizativos da estrutura social. Ora, mesmo entendendo que eles não são suficientes para pensarmos desastres como os que ocorreram em Teresópolis em 2011, ou aqueles que arrasaram parte da zona da mata sul de Pernambuco em 2010, não podemos deixar de nos colocar esse tipo de questão, de caráter racional e instrumental. A pergunta é: até que ponto esse tipo de reflexão pode identificar suficientemente o problema que tem diante de si? Porém, sigamos.

Risco e vulnerabilidade são expressões que se referem a uma mesma ordem de fenômenos: a possibilidade de ocorrência de desastres. Risco refere-se à probabilidade de que a uma população (pessoas, estruturas físicas, sistemas produtivos, etc.), ou segmentos da mesma, aconteça algo nocivo ou daninho (FONTES, 2008 p. 121). Vulnerabilidade refere-se a uma outra face do mesmo problema. Ela nos remete aos elementos já presentes na estrutura social que resultam em uma maior possibilidade de ocorrência de desastre – às formas pelas quais as populações enfrentam as situações de risco e os efeitos decorrentes desse estado de organização social. A noção de vulnerabilidade remete desta forma, à ideia de sustentabilidade ambiental. Práticas sociais são sustentáveis se garantem sua reprodutibilidade para as gerações seguintes. E esta garantia só é possível quando se considera o fato de que o uso de recursos naturais e o modelo civilizatório subjacente se façam a partir da consideração de que parte importante das riquezas não é renovável; ou, dito de outro modo, que a natureza tem um tempo que às vezes pode não coincidir com o da cultura.

Talvez um bom exemplo para refletir sobre o assunto seja o olhar sobre o cotidiano das cidades. Hoje a vida urbana é uma realidade que está presente na vida cotidiana da maioria das pessoas. Os que vivem em grandes cidades compartilham um ambiente onde a mão humana está presente mais que em qualquer outro lugar. O espaço urbano, marcadamente produto da intervenção humana sobre o ambiente natural, é marca característica da modernidade. Apesar de as cidades existirem há muito tempo, a modernidade e o espaço metropolitano, anônimo, confundem-se. E ser urbano significa pertencer a uma civilização que, embora produzindo riquezas, e oferecendo a possibilidade do consumo a um número crescente de pessoas, o faz de forma destrutiva, pondo em risco a própria existência humana. O cotidiano das grandes cidades é bem ilustrativo a respeito: deparamo-nos diariamente com os problemas de gigantescos engarrafamentos, de níveis preocupantes de qualidade do ar, enchentes, poluição sonora, paisagens degradadas, pessoas vivendo em ambientes insalubres ou inadequados (palafitas, encostas de morro). A pergunta que podemos fazer nesse ponto é: como, do ponto de vista da manutenção da estrutura de consumo capitalista contemporânea, poderíamos evitar a “contraprodutividade” que se materializa no desastre? Mais especificamente: tendo em vista a realidade de um capitalismo predador, como poderemos questionar e agir de modo propositivo contra desastres ambientais como os que estão associados à destruição de áreas enormes da floresta amazônica para o cultivo de pasto? Como, diante das pressões pelo desenvolvimento capitalista no Brasil, podemos conceber uma ação política eficaz que aceite os custos financeiros e sociais de uma ocupação ordenada e ambientalmente sustentável que possa fazer face a “sinistros anunciados” como o de Teresópolis?

A luta contra o caos, muitas vezes iminente, deve ocorrer considerando-se o fato de que, embora muitas vezes em conflito, as pessoas compartilham o mesmo espaço e os efeitos destrutivos da ação incontrolada sobre o meio ambiente se voltam contra todos. O que parece óbvio, entretanto, não é compreendido como tal por um motivo simples: no curto prazo, as consequências de práticas predatórias não são, em inúmeros casos, distribuídas igualmente entre todos. Temos, é certo, o fato de que por vezes os efeitos deste modelo civilizatório selvagem são compartilhados: a poluição, o stress provocado por longos engarrafamentos. Mas há incontestavelmente o fato de que esta repartição das economias de aglomeração também se distribuem assimetricamente, alguns arcando com parte importante do ônus desta curiosa civilização onde o viver coletivo é solenemente desprezado, dando lugar ao exclusivo interesse privado, à ação egoística da busca de vantagens. O paradoxo de uma civilização onde são produzidos custos que devem compartilhados, mas que todos lutam pela maximização de seus interesses individuais resulta na reprodução da desigualdade, na distribuição assimétrica dos efeitos de um modelo predatório de civilização. A ocupação de áreas de risco, por exemplo, deve ser entendida a partir dessa constatação. A urbanização descontrolada, ditada pela busca do lucro imobiliário e pela necessidade imediata daqueles que não podem ter acesso a tal mercado, não pode produzir uma lógica coletiva de proteção de encostas e de mananciais. Os desastres, e por vezes catástrofes, fazem-se sentir a cada período de chuva mais intenso, com inundações e deslizamentos de encostas, com efeitos perversos sobre populações economicamente mais fragilizadas.

Tomado com frequência nas ciências sociais como o sociólogo do risco, Ulrich Beck talvez devesse ser mais adequadamente entendido como um crítico contundente desta ideia que recorrentemente mobilizamos como forma de enfrentar a perspectiva de desastre e catástrofes que sempre rondam nosso envolvimento profundamente tecnológico com o mundo que nos cerca (FERREIRA, 2010). Se tomarmos suas considerações sobre risco, tal como expostas na Sociedade de Risco, por exemplo, de fato não teríamos uma formulação daquela que já encontramos em Dupuy acerca deste mesmo tema. O cálculo de risco pressupõe sempre a possibilidade de analisar da perspectiva do custo e benefício nossa ação sobre o meio ambiente, sem levar em contata, por exemplo, que pequenos custos em princípio negligenciáveis podem se somar e formar um pesadelo ambiental. A noção de risco parece partir do pressuposto de que uma solução técnica pode sempre ser encontrada para um problema tecnicamente gerado. Na realidade acreditamos que uma discussão política mais profunda acerca das origens culturais da constituição de “um tempo de catástrofes” deve ser procurada. E esse deve ser um ponto de partida de qualquer projeto de desenvolvimento que se pretenda sustentável.


REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich. 2010. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo, Editora 34.
DUPUY, Jean-Pierre. 2011. O Tempo das Catástrofes: quando o impossível é uma certeza. São Paulo, Editora Realizações.
BERMAN, Marshall. 2007. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar. São Paulo, Cia de Bolso.
FERREIRA, Jonatas. 2009. Nanobiotecnologia no Brasil: algumas reflexões acerca da vida vista sob a ótica do infinitamente pequeno. In: MARTINS, Paulo Henrique e MEDEIROS, Rogério de Souza. América Latina e Brasil em Perspectiva. Recife, Editora Universitária da UFPE.
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SENNETT, Richard. 2004. A corrosão do Caráter. Rio de Janeiro, Editora Record.
SERRES, Michel. 2003. Hominescências: o começo de uma outra humanidade. São Paulo, Bertrand-Brasil
VIRILIO, Paul. 1996. A arte do Motor. São Paulo, Espaço Liberdade.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Risco como questão política, versão 2.0: minimamente revisado



Jonatas Ferreira

[Esse texto curto seria a base de minha participação num seminário internacional sobre nanotecnologia. Iria falar sobre nanobiotecnologia e risco. Infelizmente a doença da qual ainda me recupero, uma hérnia de disco, não me permitiu comparecer ao tal seminário. Publico então no Cazzo a parte mais teórica de minha comunicação, deixando de lado as questões técnicas e empíricas da discussão para a qual pretendia contribuir. Procurei ser bastante pomposo e sociólogo nesse texto, mas a inspiração me faltou. Espero ao menos ter sido suficientemente obscuro.]

Pensar o desenvolvimento e introdução das novas tecnologias a partir da categoria risco tem sido uma constante ao longo dos últimos 50 anos e isso parece particularmente verdadeiro quando consideramos as nanotecnologias. A introdução de novos materiais, com suas novas propriedades químicas e físicas, a possibilidade de nanopoluição e a constatação de que nosso organismo não estaria sequer habilitado biologicamente para identificar alguns desses materiais radicalizam a percepção de um mundo técnico extremamente arriscado. É claro que a reconfiguração radical da natureza promovida pela Revoluçaõ Industrial já traz em si esse fantasma. A criação de seguros, da previdência pública constituíram uma evidência de que seria preciso compartilhar, democratizar eventuais danos atrelados ao desenvolvimento capitalista: custos sociais, tais como, saúde, emprego, danos ao meio ambiente. O cálculo de risco consolidou a crença de que, embora haja efeitos não-pretendidos no progresso do capitalismo, esses efeitos poderiam ser submetidos a um cálculo probabilístico que viesse a capacitar o sistema como um todo a arcar com eventuais desastres ambientais, sociais, econômicos. Creio, porém, que é a partir da invenção das armas de destruição em massa que fica mais claro que capitalismo e risco, modernidade e risco, se quiserem, andam de mãos dadas. E, no entanto, que tipo de cálculo pode democratizar, socializar os custos econômicos, sociais, ambientais e morais de algo como a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Guerra Mundial? Que tipo de cálculo pode estabelecer um colchão de proteção contra eventos como o acidente ocorrido em 1986 em Chernobil, Ucrânia? Como equacionar e assimilar o aquecimento de 4 ou 5 graus do clima na terra? Há um paradoxo no cálculo de risco: ele se torna mais urgente precisamente num cenário cultural, político e técnico em que esse tipo de cálculo se torna inócuo. O futuro já não se apresenta como destino, porém a tentativa de calculá-lo, de antecipá-lo não nos torna mais confiantes. Pelo contrário, esse gesto nos impõe a ansiedade, o pânico. O sonho por um tipo de controle que constatamos ser cada vez mais irrealizável, paradoxalmente, reforça o lugar do cálculo de risco em nossa cultura. Para o bem e para o mal, a ação das novas tecnologias nas sociedades contemporâneas se apresenta em uma escala cuja racionalização se apresenta sempre como um desafio. Mas quem haverá de tomar para si tal desafio senão a tecnociência?

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Nanobiotecnologia

Já que Artur amarrou o bode (cara mais susceptível!!!), passo na frente dele e publico algumas considerações sobre nanobiotecnologia e risco. Trata-se de trecho de um artigo mais amplo que será publica numa coletânea organizada, por Paulo Henrique Martins, a partir de ensaios apresentados no Encontro Pré-ALAS ocorrido no Recife em 2008. Com sorte, deslocado do contexto, o trecho fará sentido - se não fizer, não tem problema: o intuito é só chatear ainda mais Artur.

Jonatas Ferreira



O estado da arte da nanobiotecnologia no Brasil deve ser apreciado no contexto dos horizontes em que este campo de conhecimento abrem no campo da saúde. Em 2003, tomando como base um workshop realizado no estado da Vírginia, e que reuniu “cientistas, engenheiros, e físicos”, a National Nanotechnology Initiative produziu um relatório elencando os principais avanços científicos e tecnológicos que são esperados no campo da saúde como decorrência do progresso das nanociências. Foram identificados sete grandes tópicos onde se esperam progressos: i. na produção novas tecnologias de imagens em nível molecular; ii. “ferramentas analíticas quantitativas” capazes de aprender como a célula regula seu funcionamento e como esse funcionamento “pode ser manipulado de modo previsível”; iii. “integração quantitativa de informação derivada da aplicação de nanosensores combinados com novas tecnologias de imagem”; iv. interação entre genômica, proteômica e nanotecnologia de modo a permitir a obtenção de um “modelo físico da célula como máquina”; v. melhores testes ex vivo e “melhoria na atuais técnicas de laboratório”, de modo a permitir uma detecção e prevenção em estágios iniciais das doenças; vi. Avanços na disponibilização de medicamentos e terapêuticas inteligentes; vii. “em última instância, a nanomedicina irá além da função de restaurar a um estado normal e saudável e proporcionará meios de guiar a regeneração de tecidos, órgãos e sistemas de órgãos com capacidades avançadas de auto-reparação e prevenção de doenças” (NNI, 2003, p. vi e vii).

O cenário apontando especialmente nesse último tópico, cenário de longo prazo, horizonte para onde deveriam se encaminhar o conjunto dos esforços da nanobiotecnologia, parece em grande medida utópico: um mundo de perfeita saúde e neguentropia biológica, um mundo do controle tecnológico. Essas utopias são intensamente exploradas por uma literatura dita pós-humanista ou trans-humanista. Acerca do contra-senso desse tipo de discurso tivemos a oportunidade de nos manifestar anteriormente (FERREIRA, 2004) e silenciaremos aqui. Mas é claro que também podemos falar da importância da elaboração dessas utopias - não apenas no processo de legitimação do discurso tecnocientífico, para quem um controle virtualmente perfeito sobre o mundo natural é um horizonte regulador da própria atividade científica -, como também na garantia de polêmicas - em que utopias para uns são consideradas distopias radicais para outros - que ao fim e ao cabo reforçam a imagem de controle que a tecnociência pretende construir para si.

Acredito que um elemento fundamental desse tipo de legitimação que buscam as ciências da vida está relacionado a uma mudança de ênfase na própria idéia de qual é a missão da medicina e que diz respeito a passagem de um modelo de intervenção restauradora para uma intervenção potencializadora. Para ser claro, não precisamos esperar por um cenário de ficção científica para perceber essa transformação. O uso de medicamento psicofarmacológico ou daqueles que tratam da impotência masculina já se submetem em larga medida a esse novo modelo. O uso de ansiolíticos ou moderadores de humor, o uso de medicamentos que combatem a disfunção erétil, não se restringem ao tratamento de doenças, mas a melhoria da performance. Comentando acerca da idéia de convergência tecnológica nas nanociências, Roco & Bainbridge (2002), observam a esse respeito:

A convergência fornece explicitamente um valor moral comprometido. Esse conceito implica que nanociência e convergência irá romper (deva romper) as fronteiras entre o homem, a natureza e os artefatos tecnológicos. Convergência diz respeito à metáfora de uma máquina pensante e ao ideal de melhoramento.


Em um relatório da Erosion, Technology and Concentration Group, obtemos um comentário semelhante: “É na esfera da performance humana […] que a convergência produzirá seu maior impacto e lucro. O que se tem em mente não é apenas eliminar a incapacidade e curar a doença, mas corpos mais fortes, mais velozes, que apresentarão um melhor desempenho que o corpo que hoje é considerado o mais saudável e atlético” (ETC, 2006, p. 14). E aqui não nos cabe analisar em que medida esses cenários são factíveis, factíveis a médio ou longo prazo. Como já observamos, essa já é a lógica que propõe a indústria farmacêutica para aqueles que podem pagar os seus medicamentos. Interessa-nos, por outro lado, o não refletido da própria idéia de melhoria aqui: a redução da vida ao seu aspecto biológico, a redução da vida biológica a sua regulação molecular, aos princípios que estabelecem tal regulação. Interessa-nos uma reflexão hegemônica da vida como problema técnico. Ora, analisando as ciências da vida do século dezenove, Foucault já alertava para a necessidade de abrir nosso esforço reflexivo para além dessa delimitação histórica. Há uma literatura sobre biopoder suficientemente extensa para que não nos preocupemos em acrescentar aqui esclarecimentos nessa direção. Em lugar disso, focaremos num aspecto específico dessa redução que se opera nas ciências da vida e que diz respeito à própria noção de risco como centro das polêmicas que hoje travam os mais diversos atores sociais em torno da inovação tecnológica.

A primeira constatação a esse respeito é admitir que, embora esse tenha sido um campo onde a ação de atores importantes da sociedade civil foi mais intensa - como tem sido o caso da atuação de entidades ambientalistas com respeito à produção e comercialização de alimentos geneticamente modificados -, o risco constitui um terreno em que embates políticos sempre cedem ao argumento técnico. E isso não ocorre por alguma qualidade racionalizadora de tais argumentos, mas pelos termos em que o debate acerca dos riscos é definido. A esse respeito convém escutar o que Ulrich Beck já dizia na década de 1980. Comecemos pois por uma definição clara: “Risco pode ser definido como uma forma sistemática de lidar com os perigos e inseguranças induzidos pela própria modernização” (1992, p. 21). A identificação de um risco não é a mera identificação de um perigo, mas uma forma sistemática, metódica, técnica de tratar com um efeito da civilização tecnológica. Trata-se, portanto, de uma noção que pressupõe um tratamento técnico para um problema induzido pela própria técnica. Para Beck, o risco não é um efeito colateral da sociedade contemporânea, mas um elemento fundamental na própria lógica reflexiva mediante a qual o capitalismo prospera. Mas há evidentemente muitos problemas que podem ser identificados na auto-referência a partir da qual o discurso do risco prospera: i. ele avalia e mede o efeito que uma substância tem sobre uma pessoa, mas não o que a acumulação de diferentes substâncias apresentar; ii. ele não leva em conta que certos riscos, especialmente os produzidos por novas tecnologias, podem ter efeitos que se colocam para além do ciclo de vida de uma indivíduo – podendo se manifestar em seus filhos e netos, por exemplo; iii. um mesmo agente poluente, por exemplo, pode ter efeitos bastante diversos em diferentes indivíduos – a determinação dos limites de risco desse agente, no entanto, padronizam uma espécie de tipo biológico médio; iv. no que diz respeito às tecnologias radicalmente inovadoras, como as nanotecnologias, a avaliação dos perigos ambientais, biológicos a partir de uma lógica de risco é claramente insuficiente na medida em que nos faltam referências técnicas para calcular o efeito que a introdução de novos materiais, com propriedades novas, teriam sobre a vida biológica.

Um efeito subliminar da lógica do risco, no entanto, seria a forma como ele se incorpora em nosso cotidiano. Se a lógica científica caiu do Olimpo de legitimidade em que vivia na sociedade tecnológica, ela o fez sobre a vida cotidiana, buscando delimitar nossas possibilidades de pensar politicamente o mundo em que estamos. O risco, em sua sistematicidade, em sua 'auto-referencialidade', penetra nossa relação com a ciência e a reduz a uma avaliação de custo-benefício. Não pensamos 'que tipo de sociedade é essa que polui e desmata, que instrumentaliza nossa relação com a natureza?'; limitamo-nos a procurar identificar se os meios técnicos para solucionar eventuais desastres estão disponíveis. O risco é uma questão técnica e, como tal, de competência da ciência especializada. Por esse motivo mesmo, prospera o número de periódicos e artigos científicos dedicados ao tema (ver, por exemplo, LINKOV et. Al, 2008, TERVONEN et al., 2008).

Mais recentemente, algumas releituras críticas do trabalho de Beck foram produzidas. Uma dessas críticas refere-se ao risco tecnológico ser concebido como um fato consumado, algo já produzido, uma caixa-preta já fechada. “Considerações históricas da ciência e da tecnologia têm frequentemente ignorado as particularidades técnicas da prática científica. De fato, as elaborações internas da ciência foram tradicionalmente fechadas numa “caixa-preta”. O pressuposto é que não pode haver 'má ciência', apenas 'má tecnologia' (KEARNES et al, 2006, p. 25). Em oposição a esse fechamento, Kearnes et al. falam da necessidade de engajar a opinião pública num diálogo antecipado com os cientistas acerca de suas práticas, produtos, dos sentidos éticos, políticos, sociais, econômicos dessas práticas e produtos. Essa seria a forma de evitarmos a delimitação do diálogo entre a ciência e a sociedade a um campo bastante restrito: o risco. E é claro que esse diálogo não pode evitar tal questão premente; sua virtude seria colocá-la num espectro mais amplo de problemas.

Nesta direção, gostaria de indicar, numa mesma direção teórica que tomam Kearnes et al. que nas nanociências e nanotecnologias a noção de risco não se estabilizou, ou seja, ela é objeto de controvérsias no campo de convergência tecnológica a partir do qual novos produtos, terapêutica etc. são criados. Esse é precisamente o caso que da rede brasileira de nanobiotecnologia, como vimos em depoimento de uma cientista no tópico anterior. Acreditamos que, de fato, a teoria do ator-rede (de Latour e Callon poderia dar uma contribuição importante para seguir as tensões que colocam a noção de risco em perspectiva. Seguir os cientistas em suas práticas aqui também também constitui a oportunidade de abrir uma discussão que apresenta implicações éticas, econômicas, políticas e culturais. E alguns desses pontos também nos foram indicados nas entrevistas indicadas ao longo do texto. A medida em que essas tensões vão se tornar políticas, no sentido produtivo da palavra, no entanto, dependerá de um envolvimento da opinião pública na discussão dos rumos que devem tomar a ciência e a tecnologia que não podem ser garantido nos limites estreitos dos laboratórios. Talvez seja ilustrativo lembrar das discussões que cercaram a votação da Lei de Biossegurança brasileira, especialmente no que toca a pesquisa com células tronco-embrionárias. Ali também cientistas, políticos, opinião pública, organizações não-governamentais, Igreja Católica etc. um ponto fundamental das discussões seria a busca de estabilização do estatuto ontológico do daquele tipo de célula. A não estabilização do significado ético, científico, econômico das pesquisas envolvendo embriões com poucos dias de desenvolvimento configurou grande parte da polêmica política em questão, embora o grau de democratização das discussões tenha sido limitado (FERREIRA e AMARAL, 2006 e 2008).

É preciso portanto aproveitar a polêmica gerada em torno dos riscos que cercam as nanotecnologias em geral, e as nanobiotecnologias, em particular, para abrir espaços políticos que se coloquem para além do espaço de legitimação técnica que a própria noção de risco implica. Se essa não estabilização é uma oportunidade política, nossa capacidade de garantir um processo de discussão democrático das relações entre sociedade civil e produção científica e tecnológica não estão garantidas apenas pela existência de tal oportunidade. Tampouco estariam ali garantidas a possibilidade de abrir discussões mais amplas acerca do sentido da tecnociência em nossa sociedade.


Referências


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FERREIRA, Jonatas e Aécio AMARAL. 2008. “A Lei de Biossegurança no Brasil: negociando a modernidade em corpos pré-humanos, humanos e não-humanos”. In (Costa Lima, editor) Dinâmica do Capitalismo Pós-Guerra Fria: Cultura tecnológica, espaço e desenvolvimento. São Paulo, UNESP.


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