"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
sábado, 26 de maio de 2012
Desastres em áreas urbanas brasileiras: uma reflexão a partir das ideias de risco e catástrofe
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Risco como questão política, versão 2.0: minimamente revisado

Jonatas Ferreira
[Esse texto curto seria a base de minha participação num seminário internacional sobre nanotecnologia. Iria falar sobre nanobiotecnologia e risco. Infelizmente a doença da qual ainda me recupero, uma hérnia de disco, não me permitiu comparecer ao tal seminário. Publico então no Cazzo a parte mais teórica de minha comunicação, deixando de lado as questões técnicas e empíricas da discussão para a qual pretendia contribuir. Procurei ser bastante pomposo e sociólogo nesse texto, mas a inspiração me faltou. Espero ao menos ter sido suficientemente obscuro.]
Pensar o desenvolvimento e introdução das novas tecnologias a partir da categoria risco tem sido uma constante ao longo dos últimos 50 anos e isso parece particularmente verdadeiro quando consideramos as nanotecnologias. A introdução de novos materiais, com suas novas propriedades químicas e físicas, a possibilidade de nanopoluição e a constatação de que nosso organismo não estaria sequer habilitado biologicamente para identificar alguns desses materiais radicalizam a percepção de um mundo técnico extremamente arriscado. É claro que a reconfiguração radical da natureza promovida pela Revoluçaõ Industrial já traz em si esse fantasma. A criação de seguros, da previdência pública constituíram uma evidência de que seria preciso compartilhar, democratizar eventuais danos atrelados ao desenvolvimento capitalista: custos sociais, tais como, saúde, emprego, danos ao meio ambiente. O cálculo de risco consolidou a crença de que, embora haja efeitos não-pretendidos no progresso do capitalismo, esses efeitos poderiam ser submetidos a um cálculo probabilístico que viesse a capacitar o sistema como um todo a arcar com eventuais desastres ambientais, sociais, econômicos. Creio, porém, que é a partir da invenção das armas de destruição em massa que fica mais claro que capitalismo e risco, modernidade e risco, se quiserem, andam de mãos dadas. E, no entanto, que tipo de cálculo pode democratizar, socializar os custos econômicos, sociais, ambientais e morais de algo como a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Guerra Mundial? Que tipo de cálculo pode estabelecer um colchão de proteção contra eventos como o acidente ocorrido em 1986 em Chernobil, Ucrânia? Como equacionar e assimilar o aquecimento de 4 ou 5 graus do clima na terra? Há um paradoxo no cálculo de risco: ele se torna mais urgente precisamente num cenário cultural, político e técnico em que esse tipo de cálculo se torna inócuo. O futuro já não se apresenta como destino, porém a tentativa de calculá-lo, de antecipá-lo não nos torna mais confiantes. Pelo contrário, esse gesto nos impõe a ansiedade, o pânico. O sonho por um tipo de controle que constatamos ser cada vez mais irrealizável, paradoxalmente, reforça o lugar do cálculo de risco em nossa cultura. Para o bem e para o mal, a ação das novas tecnologias nas sociedades contemporâneas se apresenta em uma escala cuja racionalização se apresenta sempre como um desafio. Mas quem haverá de tomar para si tal desafio senão a tecnociência?
Apesar da íntima relação que desastres como o acontecido recentemente no Golfo do México apresentam com o desenvolvimento técnico e científico, não é a uma outra potência que não à científica, não é a um deus ex-machina, que a maioria de nós recorre quando confrontados com o acidente, a catástrofe tecnologicamente determinada. É à própria lógica científica, ao cálculo de risco que recorremos para procurar uma alternativa: do risco maior para o risco menor, do maior dano para o dano negligenciável. Mas o que é mesmo negligenciável quando deixamos o ambiente controlado e micro dos laboratórios e passamos a atuar em escala global? O raciocínio e o cálculo de risco, insiste Ulrich Beck, de Sociedade de Risco (década de 1980) até O Mundo em Risco (2007), são sempre pensados como questões técnicas, que envolvem uma racionalidade instrumental e uma certa matematização do pensar. Em outro texto, publicado recentemente no Cazzo, falei que essa matematização significa a busca de um saber antecipado, um saber que se opõe à contingência da vida, um saber que age no sentido da automatização da realidade e que, desse ponto de vista, agiria contra a possibilidade de um pensar legítimo, um pensar diferente das regras que nos são impostas: seja produtivo, responda rápido, dedique-se a refletir apenas sobre o que é relevante (para quem?).
Em sintonia com isto, Beck também afirma que o risco e a cultura do risco que se constituem nas sociedades contemporâneas estão diretamente ligados ao fenômeno da reflexividade. Todos conhecemos esse último conceito e o que ele significa para Giddens: a capacidade que um dado ator, indivíduo, teria de manter sua coerência interna mesmo diante dos inúmeros desafios e percalços que as estruturas macrossociais nos impõem. Giddens é um conhecido liberal e como tal tem no indivíduo, no ator social o fundamento moral e político das sociedades contemporâneas. Em sua teoria da estruturação, esse ator perde um pouco de sua capacidade de determinar politicamente seu mundo mediante a vontade e a razão e procurando, antes, viabilizar sua coerência psíquica interna diante de um mundo que ele pode transformar minimamente. Creio que o que Beck entende por reflexividade é um pouco menos otimista. Acredito que é possível ser reflexivo sem pensar, sem exercer a atividade crítica diante do mundo onde determinadas formas de questionar parecem ser inevitáveis. Aprendi isso lendo Beck, embora não esteja certo de que isso é exatamente Beck. O 'risco' da reflexividade é que ela possa significar sempre adaptação acrítica, sempre investir na solução de problemas que não são necessariamente os nossos, nem os problemas mais fundamentais ou relevantes a serem considerados. Em seu projeto fenomenológico, Husserl já nos confrontava com algo semelhante: quando estamos envolvidos naquilo que ele chama de atitude natural, é possível raciocinar sem pensar. Para realizar pensar, devemos questionar, colocar sob suspeita ou suspensão, alguns pressupostos com os quais assumimos automaticamente uma forma de ver o mundo. Para que isso ocorra, devemos vivenciar uma crise com relação a esses pressupostos, devemos aceitar que eles são insuficientes para tocarmos tranquilamente nossas vidas. Creio que a lógica do risco significa tal automatismo que precisa ser posto em suspensão e a sociologia de Ulrich Beck nos permite considerar esse problema político.
Foi também Husserl que nos ensinou que o raciocínio científico, no que pese todo um arseanal argumentativo em oposição, é demasiadamente preso a uma noção naturalizada da experiência. É possível, pois, ser extremamente reflexivo sem realizar o que Husserl chamaria, tomo aqui a liberdade, de pensar criticamente, ou simplesmente pensar. A esse respeito, diria ser bastante preocupante o fato de que, no momento em que mais precisamos desse tipo de exercício capaz de perceber possibilidades fora do senso comum, as humanidades estejam sendo asfixiadas, como na Inglaterra, onde seu orçamento foi drasticamente reduzido pelo Governo conservador David Cameron.
E assim, voltemos ao nosso argumento central e indaguemos, ainda com Beck, se seria possível que na reflexividade que se instala com a lógica do cálculo de risco estejamos sendo mobilizados pela perspectivas de ter diante de nós sempre algumas poucas opções sem jamais termos de fato uma decisão a tomar. É possível que por trás da opção entre cortar investimentos nas humanidades, como ocorre hoje no Reino Unido, ou contar com menos dinheiro para fazer face à corrida pela inovação tecnológica, ou ainda para fazer face à crise financeira que entrava o capitalismo, nada esteja sendo decidido? É possível que em decisões técnicas acerca do quão arriscado e o quão aceitável são as nanotecnologias que encontramos em avaliações técnicas nada esteja de fato sendo decidido? E não seria o caso de que ao tomar essa categoria sem o devido cuidado crítico as ciências humanas estejam de algum modo legitimando uma forma conservadora de pensar as possibilidades de nossa cultura? Esse aparente paradoxo, optar sem decidir, evidentemente, está associado àquele que acabamos de mencionar, ou seja, ser 'reflexivo' sem pensar.
A questão da decisão na teoria política é hoje um assunto quase tabu. E isso por um motivo simples: esse tema foi tradicionalmente tratado a partir da contribuição anti-democrática, anti-liberal de Carl Schmitt. Todos conhecemos sua teoria da soberania e os elementos autoritários ali encapsulados. 'Soberano é aquele que decide quem é amigo e quem é inimigo, entre o bem e o mal'; 'soberano é aquele que, a partir de um lugar político que se situa acima dessa legislação, decide o que é a lei'. Conhecemos também o caráter corrosivo de suas críticas à democracia parlamentarista, liberal. No seio desssa forma de governo se encontraria uma aporia: sob o império da lei já não se pensa claramente quem a aplica e se coloca, dessa perspctiva, acima dela; já não se pode pensar a política como exercício da soberania, mas como mero exercício reflexivo. A política se torna um exercício verbal estéril pois no seu campo já nada se decide.
Se vocês estão bem lembrados e lembradas, esse também era o problema fundamental que Max Weber tratou em seu célebre ensaio sobre a vocação política. O ethos burocrático, ele dizia, ameaça contaminar o exercício político com sua incapacidade de ser substantivamente responsável pelos destinos da nação alemã, destruída durante a Primeira Guerra Mundial, por sua reflexividade de curto alcance, por sua incapacidade de formular a questão: quais valores fundamentais deveriam orientar as sociedades modernas? Weber evocava a figura de líderes carismáticos nesse contexto, Benjamin vai falar da acedia que predomina nas modernas democracias etc. etc. E é claro que esse tipo de elaboração acerca do político mostram enorme limitação quando percebemos que questões centrais como ambientais, o risco de contaminação por nanomateriais, por exemplo, são questões globais e, portanto, inadequadamente tratáveis sob a ótica da soberania nacional.
Aprendemos com intelectuais como Foucault que a soberania já não era a questão sobre a qual gravitava o exercício político moderno, mas precisamente as implicações de uma forma burocrática de pensar, que já não se estrutura em torno da decisão de quem é amigo ou inimigo, mas em torno da administração da vida biológica. No coração da política não encontramos mais o jurídico, o religioso, a decisão como supunha Schmitt, mas a administração científica da vida - o pesadelo weberiano torna-se realidade que a bem poucos espanta. Não precisarei desenvolver um tema tão conhecido como o tema foucauldiano da biopolítica. Enfatizo apenas que há aqui também um diagnóstico que postula a incapacidade moderna de conceber a política a partir da questão dos valores que seriam fundamentais ao nosso processo de civilização, ainda que Focault, como eu próprio, não tenha saudades da figura de um Führer, ou de um soberano que viesse a decidir entre o bem e o mal, preferindo discorrer sobre exercícios micropolíticos que tornariam nossa história algo aberto, onde nenhum Messias faria sentido.
Aprendemos com Luciano Oliveira em seu livro sobre Lefort, que é possível ver aqui uma oportunidade: a questão da democracia é a questão de deixar as nossas possibilidades sociais, políticas abertas, indeterminadas. A pergunta sobre a decisão como base do exercício político, porém, não se deixa apanhar tão facilmente quando nos perguntamos: em que medida esses exercícios micropolíticos podem nos ajudar a pensar na possibilidade de um mundo radicalmente diferente desse que temos, como seu primado da velocidade, da dilapidação dos recursos naturais, da comodificação da vida? Nesse sentido, percebemos que a oposição que formulamos entre pensar e ser reflexivo nos leva diretamente à dicotomia política que temos diante de nós. Em que medida nossa ação sobre o mundo pode ser concebida como algo mais que a adaptação a tendências inexoráveis da sociedade capitalista contemporânea? Em que medida poderemos pensar a questão ambiental a partir de uma perspectiva mais substantiva que o mero cálculo científico da minimização de riscos?
Vejamos como essa questão se apresenta na obra de Beck. Ao pensar o tema do risco, que sempre nos remete ao globo e não mais a uma comunidade de valores, Beck se pergunta: quem decide o que é arriscado? Uma sociedade que se estrutura a partir de uma postura reflexiva sobre o que é e o que não é arriscado necessariamente também se coloca a questão: quem é responsável pelos desastres, pelos danos ambientais com os quais teremos de conviver. Pensar a accountability do risco, no entanto, já não é mais indagar acerca de quem decide, de quem é responsável pela decisão, posto que já não há decisões a serem tomadas, mas apenas um conjunto de opções em que, como diria Weber, a irresponsabilidade técnica se impõe como única saída. E assim, “the question of accountibility always arises for large scale industrial risks – the question of whom society makes accountable for the occurrenced of the catastrophe (a question that arises even for events for which such an assignment of accountability is scarcely possible according to the rules of science and law)” (Beck, 2006, p. 26)
Diferentemente de Schmitt, portanto, não espero o Messias que venha oferecer um sentido para a existência, mas pergunto se a lógica instrumental, a reflexividade que preside a lógica do risco ainda nos permite estabelecer a relação política-responsabilidade, tal como propunha o célebre ensaio weberiano. Essa dificuldade, por seu turno, parece ser indicadora de uma outra e que também encontramos na obra de Beck: formular o político a partir de uma lógica que se coloque para além do cálculo técnico do risco. Uma vez mais, Ulrich Beck se mostra herdeiro da sociologia weberiana, da oposição que ele produz entre ética de fins últimos e ética de responsabilidade. É impossível não considerar esta última dimensão de nossos envolvimentos éticos e políticos, mas o verdadeiro ato político não pode se limitar aos seus limites. Pensando talvez para além de Beck e de Weber, é possível propor que o político começa quando a relação política-responsabilidade se torna problemática, quando passamos a pensar criticamente no lugar central que o cálculo de risco assume em nossa cultura. A possibilidade do político não é um lugar soberano a partir do qual valores fundamentais possam ser realizados nem o reverso desta medalha, ou seja, sua redução à administração da vida biológica. Como nos mostra Agamben em diversos livros, mas consideremos aqui o Homo Saccer como ilustração, a animalização da política sob os regimes biopolíticos pertencem radicalmente à concepção do político como prática de soberania. É a partir desta última que a vida indigna de ser vivida pode ser concebida e vice-versa.
Apenas a indeterminação do político pode fazer justiça ao seu chamado mais essencial. Neste sentido, entendemos porque a própria ideia de risco seja hoje objeto de tantas disputas discursivas. Um certo governador musculoso do Estado da Califórnia, e envolvido em problemas com o fisco, queria acionar o Governo Federal dos Estados Unidos pelos efeitos do aquecimento global sobre a costa. daquele estado. O Governo Federal daquele país solicita provas de tais efeitos. Empresários, cientistas, ambientalistas e consumidores também tem visões bastante distintas do que seja ou não arriscado. Ora, um dos elementos fundamentais da cultura de risco, como mostramos acima, é o horizonte temporal que ela propõe. A ansiedade com relação ao futuro é sua marca fundamental, dissemos. Mas o que é futuro para o empresário e o que é futuro para um ambientalista são coisas completamente distintas. O primeiro pensa no balanço anual que terá que fazer para seus acionistas, ou no retorno de investimentos realizados, quando considera risco. O esforço que a indústria farmacêutica vem fazendo no sentido de agilizar, encurtar o máximo possível o processo de testagem e liberação de novos medicamentos, de modo a fazer face à aceleração do capitalismo contemporâneo, é um caso a ser considerado. A noção de futuro dos empresários deste setor obviamente não coincidirá com a percepção de ambientalistas, ou de Governos de Estado, preocupados que deverão estar estes últimos com o surgimento de superbactérias em um horizonte temporal mais dilatado que os balanços anuais das empresas, mas nem por isso menos importante. Mesmo entre os cientistas, não há consensos acerca do que é ou não arriscado e sobre qual o horizonte de tempo que a prudência deve levar em consideração quando pensamos em efeitos não-pretendidos da ação técnica e científica. E aqui não me refiro simplesmente à tradicional diferença de perspectivas que há entre aqueles que se dedicam às ciências da natureza e aqueles que se dedicam às ciências humanas, mas a enfoques distintos que podemos encontrar dentro do campo das ciências naturais. Pela própria ênfase que a especialização impõe, um farmacêutico, um físico, um químico e um zoólogo tendem a perceber risco em aspectos completamente diferentes de um mesmo experimento científico. Pude constatar esse fato ao entrevistar cientistas dedicados a um mesmo projeto nanobiotecnológico, mas provenientes de áreas distintas.
Sugiro que é nesse campo, ou seja, no dissenso, que a possibilidade do político prospera. Se acredito ser essa a condição necessária para construção de saídas democráticas para impasses tecnológicos contemporâneos, bem sei que o dissenso não é condição suficiente para tal. Tomando o exemplo acima, não há como negar que os cientistas em questão podem muito simplesmente encontrar a possibilidade de consenso nos projetos comerciais da indústria farmacêutica que venham a lhes remunerar satisfatoriamente. Mas se isso é verdadeiro, também o é o fato de que na ausência de perspectivas transcendentais que venham a instalar a soberania política, abre-se o espaço crítico ao afirmar implicitamente que o mundo pode ser diferente.
Referências
Beck, U. 2009. World at Risk. London, Polity Press.
------------. 2000. Risk Socity. London, Sage.
Weber, Max. "Politics as a Vocation". In From Max Weber: Essays in Sociology. London, Routledge.
quarta-feira, 10 de junho de 2009
Nanobiotecnologia
Jonatas Ferreira

O estado da arte da nanobiotecnologia no Brasil deve ser apreciado no contexto dos horizontes em que este campo de conhecimento abrem no campo da saúde. Em 2003, tomando como base um workshop realizado no estado da Vírginia, e que reuniu “cientistas, engenheiros, e físicos”, a National Nanotechnology Initiative produziu um relatório elencando os principais avanços científicos e tecnológicos que são esperados no campo da saúde como decorrência do progresso das nanociências. Foram identificados sete grandes tópicos onde se esperam progressos: i. na produção novas tecnologias de imagens em nível molecular; ii. “ferramentas analíticas quantitativas” capazes de aprender como a célula regula seu funcionamento e como esse funcionamento “pode ser manipulado de modo previsível”; iii. “integração quantitativa de informação derivada da aplicação de nanosensores combinados com novas tecnologias de imagem”; iv. interação entre genômica, proteômica e nanotecnologia de modo a permitir a obtenção de um “modelo físico da célula como máquina”; v. melhores testes ex vivo e “melhoria na atuais técnicas de laboratório”, de modo a permitir uma detecção e prevenção em estágios iniciais das doenças; vi. Avanços na disponibilização de medicamentos e terapêuticas inteligentes; vii. “em última instância, a nanomedicina irá além da função de restaurar a um estado normal e saudável e proporcionará meios de guiar a regeneração de tecidos, órgãos e sistemas de órgãos com capacidades avançadas de auto-reparação e prevenção de doenças” (NNI, 2003, p. vi e vii).
O cenário apontando especialmente nesse último tópico, cenário de longo prazo, horizonte para onde deveriam se encaminhar o conjunto dos esforços da nanobiotecnologia, parece em grande medida utópico: um mundo de perfeita saúde e neguentropia biológica, um mundo do controle tecnológico. Essas utopias são intensamente exploradas por uma literatura dita pós-humanista ou trans-humanista. Acerca do contra-senso desse tipo de discurso tivemos a oportunidade de nos manifestar anteriormente (FERREIRA, 2004) e silenciaremos aqui. Mas é claro que também podemos falar da importância da elaboração dessas utopias - não apenas no processo de legitimação do discurso tecnocientífico, para quem um controle virtualmente perfeito sobre o mundo natural é um horizonte regulador da própria atividade científica -, como também na garantia de polêmicas - em que utopias para uns são consideradas distopias radicais para outros - que ao fim e ao cabo reforçam a imagem de controle que a tecnociência pretende construir para si.
Acredito que um elemento fundamental desse tipo de legitimação que buscam as ciências da vida está relacionado a uma mudança de ênfase na própria idéia de qual é a missão da medicina e que diz respeito a passagem de um modelo de intervenção restauradora para uma intervenção potencializadora. Para ser claro, não precisamos esperar por um cenário de ficção científica para perceber essa transformação. O uso de medicamento psicofarmacológico ou daqueles que tratam da impotência masculina já se submetem em larga medida a esse novo modelo. O uso de ansiolíticos ou moderadores de humor, o uso de medicamentos que combatem a disfunção erétil, não se restringem ao tratamento de doenças, mas a melhoria da performance. Comentando acerca da idéia de convergência tecnológica nas nanociências, Roco & Bainbridge (2002), observam a esse respeito:
A convergência fornece explicitamente um valor moral comprometido. Esse conceito implica que nanociência e convergência irá romper (deva romper) as fronteiras entre o homem, a natureza e os artefatos tecnológicos. Convergência diz respeito à metáfora de uma máquina pensante e ao ideal de melhoramento.
Em um relatório da Erosion, Technology and Concentration Group, obtemos um comentário semelhante: “É na esfera da performance humana […] que a convergência produzirá seu maior impacto e lucro. O que se tem em mente não é apenas eliminar a incapacidade e curar a doença, mas corpos mais fortes, mais velozes, que apresentarão um melhor desempenho que o corpo que hoje é considerado o mais saudável e atlético” (ETC, 2006, p. 14). E aqui não nos cabe analisar em que medida esses cenários são factíveis, factíveis a médio ou longo prazo. Como já observamos, essa já é a lógica que propõe a indústria farmacêutica para aqueles que podem pagar os seus medicamentos. Interessa-nos, por outro lado, o não refletido da própria idéia de melhoria aqui: a redução da vida ao seu aspecto biológico, a redução da vida biológica a sua regulação molecular, aos princípios que estabelecem tal regulação. Interessa-nos uma reflexão hegemônica da vida como problema técnico. Ora, analisando as ciências da vida do século dezenove, Foucault já alertava para a necessidade de abrir nosso esforço reflexivo para além dessa delimitação histórica. Há uma literatura sobre biopoder suficientemente extensa para que não nos preocupemos em acrescentar aqui esclarecimentos nessa direção. Em lugar disso, focaremos num aspecto específico dessa redução que se opera nas ciências da vida e que diz respeito à própria noção de risco como centro das polêmicas que hoje travam os mais diversos atores sociais em torno da inovação tecnológica.
A primeira constatação a esse respeito é admitir que, embora esse tenha sido um campo onde a ação de atores importantes da sociedade civil foi mais intensa - como tem sido o caso da atuação de entidades ambientalistas com respeito à produção e comercialização de alimentos geneticamente modificados -, o risco constitui um terreno em que embates políticos sempre cedem ao argumento técnico. E isso não ocorre por alguma qualidade racionalizadora de tais argumentos, mas pelos termos em que o debate acerca dos riscos é definido. A esse respeito convém escutar o que Ulrich Beck já dizia na década de 1980. Comecemos pois por uma definição clara: “Risco pode ser definido como uma forma sistemática de lidar com os perigos e inseguranças induzidos pela própria modernização” (1992, p. 21). A identificação de um risco não é a mera identificação de um perigo, mas uma forma sistemática, metódica, técnica de tratar com um efeito da civilização tecnológica. Trata-se, portanto, de uma noção que pressupõe um tratamento técnico para um problema induzido pela própria técnica. Para Beck, o risco não é um efeito colateral da sociedade contemporânea, mas um elemento fundamental na própria lógica reflexiva mediante a qual o capitalismo prospera. Mas há evidentemente muitos problemas que podem ser identificados na auto-referência a partir da qual o discurso do risco prospera: i. ele avalia e mede o efeito que uma substância tem sobre uma pessoa, mas não o que a acumulação de diferentes substâncias apresentar; ii. ele não leva em conta que certos riscos, especialmente os produzidos por novas tecnologias, podem ter efeitos que se colocam para além do ciclo de vida de uma indivíduo – podendo se manifestar em seus filhos e netos, por exemplo; iii. um mesmo agente poluente, por exemplo, pode ter efeitos bastante diversos em diferentes indivíduos – a determinação dos limites de risco desse agente, no entanto, padronizam uma espécie de tipo biológico médio; iv. no que diz respeito às tecnologias radicalmente inovadoras, como as nanotecnologias, a avaliação dos perigos ambientais, biológicos a partir de uma lógica de risco é claramente insuficiente na medida em que nos faltam referências técnicas para calcular o efeito que a introdução de novos materiais, com propriedades novas, teriam sobre a vida biológica.
Um efeito subliminar da lógica do risco, no entanto, seria a forma como ele se incorpora em nosso cotidiano. Se a lógica científica caiu do Olimpo de legitimidade em que vivia na sociedade tecnológica, ela o fez sobre a vida cotidiana, buscando delimitar nossas possibilidades de pensar politicamente o mundo em que estamos. O risco, em sua sistematicidade, em sua 'auto-referencialidade', penetra nossa relação com a ciência e a reduz a uma avaliação de custo-benefício. Não pensamos 'que tipo de sociedade é essa que polui e desmata, que instrumentaliza nossa relação com a natureza?'; limitamo-nos a procurar identificar se os meios técnicos para solucionar eventuais desastres estão disponíveis. O risco é uma questão técnica e, como tal, de competência da ciência especializada. Por esse motivo mesmo, prospera o número de periódicos e artigos científicos dedicados ao tema (ver, por exemplo, LINKOV et. Al, 2008, TERVONEN et al., 2008).
Mais recentemente, algumas releituras críticas do trabalho de Beck foram produzidas. Uma dessas críticas refere-se ao risco tecnológico ser concebido como um fato consumado, algo já produzido, uma caixa-preta já fechada. “Considerações históricas da ciência e da tecnologia têm frequentemente ignorado as particularidades técnicas da prática científica. De fato, as elaborações internas da ciência foram tradicionalmente fechadas numa “caixa-preta”. O pressuposto é que não pode haver 'má ciência', apenas 'má tecnologia' (KEARNES et al, 2006, p. 25). Em oposição a esse fechamento, Kearnes et al. falam da necessidade de engajar a opinião pública num diálogo antecipado com os cientistas acerca de suas práticas, produtos, dos sentidos éticos, políticos, sociais, econômicos dessas práticas e produtos. Essa seria a forma de evitarmos a delimitação do diálogo entre a ciência e a sociedade a um campo bastante restrito: o risco. E é claro que esse diálogo não pode evitar tal questão premente; sua virtude seria colocá-la num espectro mais amplo de problemas.
Nesta direção, gostaria de indicar, numa mesma direção teórica que tomam Kearnes et al. que nas nanociências e nanotecnologias a noção de risco não se estabilizou, ou seja, ela é objeto de controvérsias no campo de convergência tecnológica a partir do qual novos produtos, terapêutica etc. são criados. Esse é precisamente o caso que da rede brasileira de nanobiotecnologia, como vimos em depoimento de uma cientista no tópico anterior. Acreditamos que, de fato, a teoria do ator-rede (de Latour e Callon poderia dar uma contribuição importante para seguir as tensões que colocam a noção de risco em perspectiva. Seguir os cientistas em suas práticas aqui também também constitui a oportunidade de abrir uma discussão que apresenta implicações éticas, econômicas, políticas e culturais. E alguns desses pontos também nos foram indicados nas entrevistas indicadas ao longo do texto. A medida em que essas tensões vão se tornar políticas, no sentido produtivo da palavra, no entanto, dependerá de um envolvimento da opinião pública na discussão dos rumos que devem tomar a ciência e a tecnologia que não podem ser garantido nos limites estreitos dos laboratórios. Talvez seja ilustrativo lembrar das discussões que cercaram a votação da Lei de Biossegurança brasileira, especialmente no que toca a pesquisa com células tronco-embrionárias. Ali também cientistas, políticos, opinião pública, organizações não-governamentais, Igreja Católica etc. um ponto fundamental das discussões seria a busca de estabilização do estatuto ontológico do daquele tipo de célula. A não estabilização do significado ético, científico, econômico das pesquisas envolvendo embriões com poucos dias de desenvolvimento configurou grande parte da polêmica política em questão, embora o grau de democratização das discussões tenha sido limitado (FERREIRA e AMARAL, 2006 e 2008).
É preciso portanto aproveitar a polêmica gerada em torno dos riscos que cercam as nanotecnologias em geral, e as nanobiotecnologias, em particular, para abrir espaços políticos que se coloquem para além do espaço de legitimação técnica que a própria noção de risco implica. Se essa não estabilização é uma oportunidade política, nossa capacidade de garantir um processo de discussão democrático das relações entre sociedade civil e produção científica e tecnológica não estão garantidas apenas pela existência de tal oportunidade. Tampouco estariam ali garantidas a possibilidade de abrir discussões mais amplas acerca do sentido da tecnociência em nossa sociedade.
Referências
BECK, Ulrich. 1992. Risk Society. Towards a new modernity. London, Sage.
DURÁN, Nelson, Priscyla D. MARCATO e Zaine TEIXEIRA. “Nanotechnologia e Nanobiotecnologia: conceitos básicos. http://www.cienciaviva.org.br /arquivo/cdebate/ 012nano/Nanotecnologia_e_Nanobiotecnologia.pdf. Acessado em 03/06/2009.
FERREIRA, Jonatas. 2004. “A condição pós-humana: ou 'como pular sobre nossa própria sombra'”. Política e Trabalho. No. 21: 31-42.
FERREIRA, Jonatas e Aécio AMARAL. 2006. “Das Gesetz zur Biologishen Sicherheit in Brasilien: Prähumane, humane und nichthumane Körper als Verhandlungszonen der Moderne”. In Das Moderne Brasilien. Gesellshaft, Politik und Kultur in der Peipherie des Westens. Berlin, Verlag für Sozialwissenschaften.
FERREIRA, Jonatas e Aécio AMARAL. 2008. “A Lei de Biossegurança no Brasil: negociando a modernidade em corpos pré-humanos, humanos e não-humanos”. In (Costa Lima, editor) Dinâmica do Capitalismo Pós-Guerra Fria: Cultura tecnológica, espaço e desenvolvimento. São Paulo, UNESP.
FERREIRA, Jonatas e Rosa PEDRO. 2009. “Biossociabilidade e biopolítica: reconfigurações e controvérsias em torno dos híbridos nanotecnológicos”. Redes. No prelo.
INVERNIZZI, Noela e Guillermo FOLADORI. 2005. “¿La nanotecnología como solución a los problemas de los países en desarrollo? Una respuesta y tres moralejas”. http://www.euroresidentes.com/futuro/nanotecnologia/articulos/la_nanotecnologia_como_solucion_a_los_problemas_de_los_paises_en_desarrollo.htm. Acessado em 04/06/2009.
KAY, Luciano e Philip SHAPIRA. 2009. “Developing nanotechnology in Latin America”. Journal of Nanoparticule Research. 11: 259-278.
KEARNES, Matthew, Phil MACNAGHTEN e James WILSDON. 2006. Governing at the Nanoscale. People, policies and emerging technologies. London, Demos.
LINKOV, Igor; Jeffery Steevens; Gitanjali Adlakha-Hutcheon; Erin Bennett; Mark CHAPPEL; Vicki COLVIN; J. Michael DAVIS; Thomas DAVIS; Alison ELDER; Steffen Foss HANSEN; Pertti Bert HAKKINEN; Saber M. HUSSAIN; Delara KARKAN; Rafi KORENSTEIN; Iseult LYNCH; Chris METCALFE; Abou Bakr RAMADAN; F. Kyle SATTERSTROM. 2009. “Emerging methods and tools for environmental risk assessment, decision-making, and policy for nanomaterials: summary of NATO Advanced Research Workshop”. Journal of Nanoparticule Research. 11: 513-527.
MARTINS, Paulo Roberto (coordenador). 2005. Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente. São Paulo, Humanitas.
MCHUGHEN, Alan. 2008. “Learning from mistakes: missteps in public acceptance issues with GMOs. In What Can Nanotechnology Learn from Biotechnology.Holanda, Elsevier.
RANDLES, Sally. 2008. “From Nano-ethicswash to Real-Time Regulation. Journal of Industrial Ecology. 12(3): 270-274.
REIJNDERS, Lucas. 2008. “Hazard Reduction in Nanotechnology”. Journal of Industrial Ecology. 12(3): 297-306.
TSAI, Chuen-Jinn e D.Y.H. PUI. 2008. “Recent Advances and New Challenges of Occupational and Environmental Health of Nanotechnology. Journal of Nanoparticle Research. 11: 1-4.
SMITH, Sara E. S., H.D.HOGSGOOD, E.S. MICHELSON, M.H. STOVE. 2008. “Americans' Nanotechnology Risk Perception: Assessing Opinion Change. Journal of Industrial Ecology. 12 (3): 459-473.
TERVONEN, Tommi; Igor LINKOV; Jose Rui FIGUEIRA; Jeffery STEEVENS; Mark CHAPPELL; Myriam MERAD. 2009. “Risk-based classification system of nanomaterials”. Journal of Nanoparticule Research. 11: 757-766.