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domingo, 7 de julho de 2013

Ágora Eletrônica e Renovação Política (1.0)



 Jonatas Ferreira e Breno Fontes

No dia 20 de junho, estávamos lá, no centro do Rio de Janeiro, Esplanada dos Ministérios, na Conde da Boa Vista, Avenida Paulista, e num grande número de artérias vitais dos grandes centros urbanos do Brasil, confrontando o que surgia nas ruas com o que noticiavam as grandes emissoras de TV. Para quem não estava de alguma forma conectado ou conectada às mídias sociais que povoam a Internet, as manifestações pareceram como um raio em céu azul. Em alguma medida, todos compartilhamos certa perplexidade, todavia. Os governos federal, estadual e municipal, 60% dos domicílios que não têm acesso à Internet, ou os 45% dos indivíduos que nunca acessaram a Internet em suas vidas (ver http://www.cetic.br/usuarios/tic/2012/), e mesmo aqueles que foram às ruas, sensíveis portanto a esse tipo de mídia, não tinham uma ideia muito exata do impacto que a mobilização até então predominantemente virtual poderia ter na vida social e política dessas grandes cidades e do país. Atônitos também estavam e estão as grandes emissoras de TV brasileiras: um famoso âncora de telejornalismo chegou a condenar o que se convencionou chamar de 'vandalismo', mais especificamente, a depredação e queima de um carro da TV Record: era preciso que os manifestantes soubessem que as emissoras de TV têm um papel fundamental na divulgação desses protestos. É verdade. De um modo bastante contundente, era isso mesmo que estava em questão, ou seja, uma forma alternativa de encontrar informação, de tornar visíveis pautas políticas, de mobilizar. Nesse contexto, o que se convencionou chamar 'vandalismo', por mais que o temamos, ainda merece uma explicação. O que significa? Como se tornou possível?
Na Conde da Boa Vista, por outro lado, o ambiente era de uma alegria cívica e tranquilidade comoventes. Os cartazes produzidos pelos manifestantes, em sua pluralidade, no seu caráter francamente artesanal, deram o tom desse clima que um militante carrancudo avaliou alguns dias depois como sendo carnavalesco – muito embora tenhamos que concluir que, força libidinal, energia de vida que busca confrontar formas sociais caducas, o depoimento coletivo que vimos deve ser relacionado intimamente a esse tipo de alegria. Nosso amigo, Alex de Jesus, que também estava na manifestação ocorrida no Recife, cede-nos um vídeo que fez. Registrou a própria participação na passeata, como vimos muita gente fazer – gente que quer se escutada e vista e que parece ter encontrado uma forma de conseguir as duas coisas. No vídeo, podemos ler alguns desses cartazes que transcrevemos: “Verás que um filho teu não foge à luta”, “Desculpe o transtorno, estamos mudando o Brasil!”, “Foda-se a Copa!”, “Saúde, Educação e Respeito”, “Winter is coming”, “Japão, trocamos nossa seleção por sua educação”, “Amor não tem cura”, “Não à PEC-37”, “Saúde padrão FIFA”, “Vem, vamos embora que esperar não é saber”, “E hoje mainha me bota pra dormir de couro quente”, “Dilma, me chama de copa e investe em mim”, “Tem tanta coisa errada no Brasil, que não cabe em um cartaz”, “Armaria! PEC 37, nann”, “Impunidade? Diga não”, “Dez centavos não compra nem um “Dudu””, “Ei, Dudu, pega os dez centavos e enfia lá no SUS”, “#vemprarua”, “São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade”, “Um passo à frente e você já não está no mesmo lugar”, “A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar”, “Governador, quer ser presidente? Cuida primeiro da gente”, “Quantas escolas cabem em um estádio?”, “De burro, eu só tenho a chibata”, “Abaixo o ato médico”, “Brasil, 500 anos de desigualdade!”, “Homofobia tem cura”, “O gigante acordou”, “Renan Calheiros, não esquecemos de você”.
O que aconteceu, bem sabemos, é um fenômeno relativamente novo, inédito no Brasil. Novo, primeiro, com respeito à sua forma de mobilização: o ativismo das ruas sendo convocado pelas mídias sociais (Facebook, Twitter, entre outras). Esse tipo de evento político, todavia, e os fatos que dele decorrem, vêm se repetindo no mundo - a exemplo das manifestações da primavera árabe, nos países do Noroeste da África; dos protestos em Portugal (“movimento geração à rasca”); na Espanha (“indignados”); nos Estados Unidos (“ocupe a Wall Street”). Em todos esses contextos é possível perceber a perplexidade dos analistas. A dita sociedade da informação estaria produzindo um tipo novo de ativismo, buscando estabelecer uma relação politicamente virtuosa entre virtual e atual? O que esperar dessas grandes mobilizações populares? É possível que este fenômeno se transforme em uma agenda política que possamos traduzir em categorias a partir das quais tradicionamente pensamos o político? Pensar em uma ágora eletrônica implica em ressignificar o conteúdo das nossas instituições, em especial aquelas que operam o modelo de democracia reperesentativa? Como transformar a articulação de demandas tão plurais em uma agenda política também articulada e factivel?
De fato, as novas tecnologias de informação e comunicação constituem-se tecnicamente a partir de uma potência de horizontalidade na interação entre os indivíduos até então desconhecida. A Internet está para as organizações sociais em rede, assim como a televisão e o rádio corresponderam tecnicamente ao modelo político do fordismo, no qual predominava recepção em massa e emissão centralizada. Se, no contexto das novas tecnologias de informação e comunicação, afirmamos que a relação entre emissão e recepção é bem mais simétrica do que o foram as mídias típicas do fordismo, de modo algum afirmamos que essa simetria seja perfeita, e que portanto a topografia que caracteriza o ciberespaço seja pefeitamente plana. A arquitetura da rede, contrariamente ao que inicialmente se pensava, não se estrutura a partir da possibilidade de acesso aleatório aos nós. Todos não são iguais, o ditado “os ricos ficam sempre mais ricos” reflete o fato de que, neste labirinto de conexões, é possível encontrar Hubs, atores centrais, que controlam e organizam o fluxo de informações. Não de uma forma tão centralizada quanto as antigas mídias, mas de forma alguma reproduzindo a utopia de perfeita simetria ou horizontalidade entre os participantes. Fato também que merece destaque é o fenômeno da exclusão digital – ou do autoritarismo digital, como preferem Ferreira, Pinto e Motta (ver, por exemplo, “Resistindo ao Niilismo pelas Novas Tecnologias: experiências de mídias livres”. In Marcos Costa Lima; Thales Novaes de Andrade. (Org.) Desafios da Inclusão Digital: teoria, educação e políticas públicas. São Paulo: Hucitec Editora, 2012). A internet também não espalha seus benefícios entre todos. Idade, classe social, gênero, etnia, divisões importantes nas sociedades contemporâneas, reproduzem-se no mundo virtual. Isso significa que também temos que ser cautelosos em relação à potência reformadora de uma ágora virtual: democracia não é uma mera conquista técnica, mas um chamado político.
Porém, o mais importante neste labirinto virtual são os que chamamos de mídias sociais, espaços cibernéticos onde é possível a interação social direta. Nos diversos fóruns onde a interação é praticada (Facebook, Twitter, blogs, entre outros) são reproduzidos igualmente laços, fortes e fracos, permitindo, com uma potência nunca vista, espelhar, mas também por em xeque, as sociabilidades cotidianas. Esta capacidade de a rede ampliar processos comunicativos implica consequências até hoje não totalmente compreendidas. Como sempre, qualquer tipo de inovação técnica e politica, sejamos claros, não ocorre num vazio político e a síntese que podemos obter entre forças de conservação e forças de transformação é sempre imprevisível.
Do ponto de vista ainda técnico, parece-nos equivocado pensar as dinâmicas sociais associadas às novas tecnologias de informação e comunicação como ocorrendo de forma completamente desterritorializadas – Nicholas Negroponte ajudou a disseminar este mito em seu hoje quase esquecido Being Digital. As mídias sociais ancoradas na Internet, embora apresentem também elementos desterritorializadores, alimentam-se de redes territorializadas. Isso significa que atender ou propor uma convocação é algo que ocorre normalmente em grupos que se apoiam em comunicações face a face. A teoria das redes aqui nos auxilia a entender que a mobilização das manifestações que começaram em junho de 2013 não ocorrem num vazio territorial, nem ocorrem a partir da articulação de indivíduos atomizados e conectados em igualdade política pela rede. Sem por em questão a especificidade dos eventos nos quais estamos envolvidos, este é um fato relativamente conhecido, registrado em outras ocasiões pelos teóricos das redes. A march of Dimes, uma grande mobilização popular que aconteceu nos Estados Unidos na década de 1950, é um exemplo conveniente. O objetivo era arrecadar dinheiro para financiar a pesquisa de uma vacina contra a poliomielite. E o momento de ápice aconteceu quando uma multidão de pessoas, vindas de todas as partes da América do Norte, se reuniu em Washington. Parte importante da campanha foi veiculada por rádio, respeitável veículo na época. Mas as pessoas se organizavam a partir de suas redes ancoradas territorialmente: amigos do bairro, membros de congregação religiosa, entre outros ingredientes de sua trama reticular. Era, então, possível, vislumbrar naquela multidão de pessoas, pequenos aglomerados de conhecidos, compartilhando aquele momento de suas biografias. Da mesma forma, os que foram à Avenida Paulista, Avenida Getúlio Vargas ou Avenida Conde da Boa Vista, em sua maior parte, não estavam sozinhos, mas sim em grupos, que fazem parte da trama reticular cotidiana.
Mesmo para quem participou de mobilizações como as “Diretas Já”, “Fora Collor”, entre tantas outras, impressiona a esmagadora maioria de pessoas com menos de 20 anos de idade que tem levado adiante essas marchas de agenda tão ampla. É de se supor que essa maioria seja também preponderante nas mídias sociais com base na Internet a partir das quais foram articuladas essa infinidade de manifestações enfeixadas nos espaços metropolitanos de todo o país. Nas ruas impressiona, portanto, a pluralidade de bandeiras que se articulavam num sentimento amplo de insatisfação. Basta que nos déssemos ao trabalho de arrolar, numa pesquisa mais exaustiva, as bandeiras levantadas nas ruas nos últimos trinta dias. Falou-se muito acerca de uma forma descentrada de agir politicamente. E as perguntas a que essa constatação deram ensejo não tardaram: como responder a essas inquietações, supondo que haja vontade ou competência institucional estabelecida para fazê-lo? A quem responder? Com quem negociar e exatamente o quê? Por mais que se negue esse fato, aprendemos a pensar política ainda a partir de um modelo em que a questão da soberania é central. “Soberano é aquele que decide entre quem é amigo e quem é inimigo”, ou seja, aquele, ou aquela instituição, ou conjunto de interesses, capaz ou capazes de estabelecer um espaço de pertencimento, de identidade, e contrapô-lo aos interesses daqueles que são considerados outros. Ora, esse tipo de pensar político é fundamentalmente conservador, todos sabemos. Parece inevitável traçar entre esse tipo de formulação política e a estruturação de agendas prioritárias no âmbito dos partidos políticos, ou seja, no contexto em que se decide entre questões ditas fundamentais e questões ditas secundárias, um elo claro. Em sua versão mais crua, cínica, esse tipo de compreensão converte-se facilmente em uma pragmática de como se manter no poder. E esse 'pragmatismo' se torna um elemento político ainda mais preocupante quando constatamos o afastamento hitórico de nossas instituições politicas do cidadão comum. Sintomático desse afastamento talvez seja o tom desesperado mediante o qual um Senador da República, Cristovam Buarque, cuja seriedade não temos razão para contestar, defendeu a dissolução dos partidos políticos e da convocação de uma Assembleia Constituinte para decidir que tipo de modelo político substituiria o tipo de representação que temos diante de nós. A perplexidade não pode ir muito mais longe. Mas devemos lembrar, com preocupação e a propósito, o fato de a hostilização aos partidos ter encontrado espaço nas ruas.
Se é possível entender que a forma como as instituições políticas tem se organizado guarda uma íntima relação com as questões relativas à identidade, ao estabelecimento de agendas prioritárias, de táticas e estratégias que levariam à sua efetivação, e os partidos políticos como materialização disso tudo, o que as ruas trouxeram não pode trazer outra sensação senão o estupor. Como agendas tão distintas podem se tornar objeto de negociação política? Ora, essa pluralidade sempre foi imaginada como fragmentação, como impotência política estimulada por aqueles que desejam governar - e aí vale o clássico ditado latino, divide et impera. No entanto, é inegável que a articulação de uma agenda tão diversa  configurou um acontecimento político de vulto e com algumas vitórias expressivas: a PEC 37, afinal, foi engavetada; o deputado João Campos, a pedido de seu partido, retirou o projeto que autorizava tratamentos psicológicos da homossexualidade – que tornou tristemente célebre o pastor e deputado Marcos Feliciano; fala-se na divisão dos royalties do petróleo entre as áreas de educação e saúde; fala-se, por vezes com incorrigível oportunismo, acerca do que todos sabiam há muito, a necessidade de reforma no modelo político.
Se a articulação de agendas tão distintas, quanto aquelas que se enfeixaram nas manifestações a que assistimos, podem se converter num evento político de consequências imediatas tão evidentes, é necessário que compreendamos um pouco da lógica das redes sociais, e sua dinâmica comunicativa potencializada pelas mídias veiculadas na internet. É necessário que compreendamos outras experiência semelhantes de mobilização política e do que podemos aprender com elas – com sua dinâmica que combina elementos desterritorializadores e territorializadores, uma forma nova de articular laços fracos e fortes etc. Há algum tempo, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe vêm insistindo no que chamam de “democracia radical”, ou seja, a compreensão do conflito como elemento fundamental nos processos democráticos, o entendimento de que o exercício da política pressupõe sempre encarar a questão da hegemonia, de como ela é obtida e como pode ser questionada. Reapropriação da teoria da soberania tal qual ela aparece na obra de Gramsci, esse último pressuposto significa que grupos de interesses diversos podem se reunir em torno de agendas que os beneficiem e representem na busca por influência e pressão política em áreas específicas. De acordo com tal reflexão, há, na luta por hegemonia, um grande espaço para táticas mais contingentes. Trata-se de uma concepção não essencialista do político em que a práxis concebida neste nível desempenha um papel fundamental. É possível, segundo pensamos, tirar aqui algumas lições que lacem alguma luz sobre o que ocorre hoje no Brasil, exemplo de articulação de interesses políticos tão diversos quantos oposição ao ato médico, condenação da homofobia, defesa da probidade na administração pública, melhoria da mobilidade urbana etc. O que impressiona exatamente tem sido o fato de as mídias sociais terem conseguido promover uma articulação de agendas que só podem estar num mesmo campo de luta se tivermos em mente ideias suficientemente amplas para expressar a insatisfação diante de algo que chamaríamos de arrogância e de viés autoritário que ainda definem o exercício da política em nosso país. Em que medida essas agendas continuarão a se articular no médio e longo prazos no contexto de uma luta contra-hegemônica é algo que não podemos avaliar ainda. Mas chama a atenção o fato de vários segmentos da população brasileira terem encontrado um espaço para exercer seu descontentamento, para condenar a distância histórica que separa a política profissional no Brasil de um sentido público, para questionar a dificuldade que os governantes tem tido em dar respostas ao clamor por uma vida mais justa. Essa dificuldade é técnica, política, cívica e moral.
Talvez não seja demais ilustrar com um exemplo o que afirmamos. Ora, diante de todo o clamor que se produziu nas ruas em defesa da probidade administrativa, o que dizer da insensibilidade do presidente da Câmara e do Senado nacionais de, em meio às mobilizações de junho, utilizarem aviões da FAB para atender a seus interesses particulares? O mea culpa do primeiro, Henrique Eduardo Alves, é risível. Retorna aos cofres públicos menos de R$ 10 mil dos R$ 150 mil que teria de pagar, caso fretasse um avião comercial para passar um final de semana com sua família no Rio de Janeiro e assistir ao final da Copa das Confederações. Quanto ao Presidente do Senado, responde-nos que não há ilegalidade no seu ato e que, por isso, nada restituiria. Pode até não ser ilegal, não conhecemos as tecnicalidades jurídicas envolvidas aqui, mas cassar parlamentar depois do AI-5 também não o era. Ambos os atos, porém, são rigorosamente ilegítimos e a sem-cerimônia com a qual Renan Calheiros lança mão do dinheiro do povo brasileiro é uma bofetada nos milhões que saíram às ruas por uma vida mais digna, por um tratamento mais respeitoso por parte daqueles que, hoje, ainda, decidem os destinos do país.

Em tempo: Renan Calheiros, segundo as últimas informações, voltou atrás em sua decisão. Vai pagar R$ 32 mil à Viúva. Caso vocês não saibam de quem se trata, Renan Calheiros é aquele que propôs tornar corrupção crime hediondo.

Em tempo dois: e tem também o Garibaldi Alves, rapaz...


[Nosso muito obrigado a Alex de Jesus, pela gentileza de nos conceder acesso ao registro que fez das manifestações; a Estefânia Gomes, Antônio Neto e a Artur Perrusi, amigos queridos, pelos comentários e por nos incentivarem a postar o texto - que consideramos apenas um esboço para discussão mais ampla].