Jonatas Ferreira e Breno Fontes
No dia 20 de junho, estávamos lá, no centro do Rio de Janeiro, Esplanada dos Ministérios, na Conde da Boa Vista, Avenida Paulista, e num grande número de artérias vitais dos grandes centros urbanos do Brasil, confrontando o que surgia nas ruas com o que noticiavam as grandes emissoras de TV. Para quem não estava de alguma forma conectado ou conectada às mídias sociais que povoam a Internet, as manifestações pareceram como um raio em céu azul. Em alguma medida, todos compartilhamos certa perplexidade, todavia. Os governos federal, estadual e municipal, 60% dos domicílios que não têm acesso à Internet, ou os 45% dos indivíduos que nunca acessaram a Internet em suas vidas (ver http://www.cetic.br/usuarios/tic/2012/), e mesmo aqueles que foram às ruas, sensíveis portanto a esse tipo de mídia, não tinham uma ideia muito exata do impacto que a mobilização até então predominantemente virtual poderia ter na vida social e política dessas grandes cidades e do país. Atônitos também estavam e estão as grandes emissoras de TV brasileiras: um famoso âncora de telejornalismo chegou a condenar o que se convencionou chamar de 'vandalismo', mais especificamente, a depredação e queima de um carro da TV Record: era preciso que os manifestantes soubessem que as emissoras de TV têm um papel fundamental na divulgação desses protestos. É verdade. De um modo bastante contundente, era isso mesmo que estava em questão, ou seja, uma forma alternativa de encontrar informação, de tornar visíveis pautas políticas, de mobilizar. Nesse contexto, o que se convencionou chamar 'vandalismo', por mais que o temamos, ainda merece uma explicação. O que significa? Como se tornou possível?
Na Conde da Boa Vista, por outro lado, o ambiente era de uma alegria
cívica e tranquilidade comoventes. Os cartazes produzidos pelos
manifestantes, em sua pluralidade, no seu caráter francamente
artesanal, deram o tom desse clima que um militante carrancudo
avaliou alguns dias depois como sendo carnavalesco – muito embora
tenhamos que concluir que, força libidinal, energia de vida que
busca confrontar formas sociais caducas, o depoimento coletivo que
vimos deve ser relacionado intimamente a esse tipo de alegria. Nosso
amigo, Alex de Jesus, que também estava na manifestação ocorrida no Recife, cede-nos um vídeo
que fez. Registrou a própria participação na passeata, como vimos muita gente fazer – gente que quer se escutada e vista e que parece ter
encontrado uma forma de conseguir as duas coisas. No vídeo, podemos
ler alguns desses cartazes que transcrevemos: “Verás que um
filho teu não foge à luta”, “Desculpe o transtorno, estamos
mudando o Brasil!”, “Foda-se a Copa!”, “Saúde, Educação e
Respeito”, “Winter is coming”, “Japão, trocamos nossa
seleção por sua educação”, “Amor não tem cura”, “Não à
PEC-37”, “Saúde padrão FIFA”, “Vem, vamos embora que
esperar não é saber”, “E hoje mainha me bota pra dormir de
couro quente”, “Dilma, me chama de copa e investe em mim”, “Tem
tanta coisa errada no Brasil, que não cabe em um cartaz”,
“Armaria! PEC 37, nann”, “Impunidade? Diga não”, “Dez
centavos não compra nem um “Dudu””, “Ei, Dudu, pega os dez
centavos e enfia lá no SUS”, “#vemprarua”, “São demônios
os que destroem o poder bravio da humanidade”, “Um passo à
frente e você já não está no mesmo lugar”, “A gente quer ter
voz ativa, no nosso destino mandar”, “Governador, quer ser
presidente? Cuida primeiro da gente”, “Quantas escolas cabem em
um estádio?”, “De burro, eu só tenho a chibata”, “Abaixo o
ato médico”, “Brasil, 500 anos de desigualdade!”, “Homofobia
tem cura”, “O gigante acordou”, “Renan Calheiros, não
esquecemos de você”.
O que aconteceu, bem sabemos, é um fenômeno relativamente novo, inédito no Brasil. Novo, primeiro, com respeito à sua forma de
mobilização: o ativismo das ruas sendo convocado pelas mídias
sociais (Facebook, Twitter, entre outras). Esse tipo de evento
político, todavia, e os fatos que dele decorrem, vêm se repetindo
no mundo - a exemplo das manifestações da primavera árabe, nos
países do Noroeste da África; dos protestos em Portugal (“movimento
geração à rasca”); na Espanha (“indignados”); nos Estados
Unidos (“ocupe a Wall Street”). Em todos esses contextos é
possível perceber a perplexidade dos analistas. A dita sociedade da
informação estaria produzindo um tipo novo de ativismo, buscando
estabelecer uma relação politicamente virtuosa entre virtual e
atual? O que esperar dessas grandes mobilizações populares? É
possível que este fenômeno se transforme em uma agenda política
que possamos traduzir em categorias a partir das quais
tradicionamente pensamos o político? Pensar em uma ágora
eletrônica implica em ressignificar o conteúdo das nossas
instituições, em especial aquelas que operam o modelo de democracia
reperesentativa? Como transformar a articulação de demandas tão
plurais em uma agenda política também articulada e factivel?
De fato, as novas tecnologias de informação e comunicação
constituem-se tecnicamente a partir de uma potência de
horizontalidade na interação entre os indivíduos até então
desconhecida. A Internet está para as organizações sociais em
rede, assim como a televisão e o rádio corresponderam tecnicamente
ao modelo político do fordismo, no qual predominava recepção em
massa e emissão centralizada. Se, no contexto das novas tecnologias
de informação e comunicação, afirmamos que a relação entre
emissão e recepção é bem mais simétrica do que o foram as mídias
típicas do fordismo, de modo algum afirmamos que essa simetria seja
perfeita, e que portanto a topografia que caracteriza o ciberespaço
seja pefeitamente plana. A arquitetura da rede, contrariamente ao que
inicialmente se pensava, não se estrutura a partir da possibilidade
de acesso aleatório aos nós. Todos não são iguais, o ditado “os
ricos ficam sempre mais ricos” reflete o fato de que, neste
labirinto de conexões, é possível encontrar Hubs, atores
centrais, que controlam e organizam o fluxo de informações. Não de
uma forma tão centralizada quanto as antigas mídias, mas de forma
alguma reproduzindo a utopia de perfeita simetria ou horizontalidade
entre os participantes. Fato também que merece destaque é o
fenômeno da exclusão digital – ou do autoritarismo digital, como
preferem Ferreira, Pinto e Motta (ver, por exemplo, “Resistindo ao
Niilismo pelas Novas Tecnologias: experiências de mídias livres”.
In Marcos Costa Lima; Thales Novaes de Andrade. (Org.) Desafios da
Inclusão Digital: teoria, educação e políticas públicas. São
Paulo: Hucitec Editora, 2012). A internet também não espalha seus
benefícios entre todos. Idade, classe social, gênero, etnia,
divisões importantes nas sociedades contemporâneas, reproduzem-se
no mundo virtual. Isso significa que também temos que ser cautelosos
em relação à potência reformadora de uma ágora virtual:
democracia não é uma mera conquista técnica, mas um chamado
político.
Porém, o mais importante neste labirinto virtual são os que
chamamos de mídias sociais, espaços cibernéticos onde é possível
a interação social direta. Nos diversos fóruns onde a
interação é praticada (Facebook, Twitter, blogs, entre outros) são
reproduzidos igualmente laços, fortes e fracos, permitindo, com uma
potência nunca vista, espelhar, mas também por em xeque, as
sociabilidades cotidianas. Esta capacidade de a rede ampliar
processos comunicativos implica consequências até hoje não
totalmente compreendidas. Como sempre, qualquer tipo de inovação
técnica e politica, sejamos claros, não ocorre num vazio político
e a síntese que podemos obter entre forças de conservação e
forças de transformação é sempre imprevisível.
Do ponto de vista ainda técnico, parece-nos equivocado pensar as
dinâmicas sociais associadas às novas tecnologias de informação e
comunicação como ocorrendo de forma completamente
desterritorializadas – Nicholas Negroponte ajudou a disseminar este
mito em seu hoje quase esquecido Being Digital. As mídias
sociais ancoradas na Internet, embora apresentem também elementos
desterritorializadores, alimentam-se de redes territorializadas.
Isso significa que atender ou propor uma convocação é algo que
ocorre normalmente em grupos que se apoiam em comunicações face a
face. A teoria das redes aqui nos auxilia a entender que a
mobilização das manifestações que começaram em junho de 2013 não
ocorrem num vazio territorial, nem ocorrem a partir da articulação
de indivíduos atomizados e conectados em igualdade política pela
rede. Sem por em questão a especificidade dos eventos nos quais
estamos envolvidos, este é um fato relativamente conhecido,
registrado em outras ocasiões pelos teóricos das redes. A march
of Dimes, uma grande mobilização popular que aconteceu nos
Estados Unidos na década de 1950, é um exemplo conveniente. O
objetivo era arrecadar dinheiro para financiar a pesquisa de uma
vacina contra a poliomielite. E o momento de ápice aconteceu quando
uma multidão de pessoas, vindas de todas as partes da América do
Norte, se reuniu em Washington. Parte importante da campanha foi
veiculada por rádio, respeitável veículo na época. Mas as
pessoas se organizavam a partir de suas redes ancoradas
territorialmente: amigos do bairro, membros de congregação
religiosa, entre outros ingredientes de sua trama reticular. Era,
então, possível, vislumbrar naquela multidão de pessoas, pequenos
aglomerados de conhecidos, compartilhando aquele momento de suas
biografias. Da mesma forma, os que foram à Avenida Paulista,
Avenida Getúlio Vargas ou Avenida Conde da Boa Vista, em sua maior
parte, não estavam sozinhos, mas sim em grupos, que fazem parte da
trama reticular cotidiana.
Mesmo para quem participou de mobilizações como as “Diretas Já”,
“Fora Collor”, entre tantas outras, impressiona a esmagadora
maioria de pessoas com menos de 20 anos de idade que tem levado
adiante essas marchas de agenda tão ampla. É de se supor que essa
maioria seja também preponderante nas mídias sociais com base na
Internet a partir das quais foram articuladas essa infinidade de
manifestações enfeixadas nos espaços metropolitanos de todo o
país. Nas ruas impressiona, portanto, a pluralidade de bandeiras que
se articulavam num sentimento amplo de insatisfação. Basta que nos
déssemos ao trabalho de arrolar, numa pesquisa mais exaustiva, as
bandeiras levantadas nas ruas nos últimos trinta dias. Falou-se
muito acerca de uma forma descentrada de agir politicamente. E as
perguntas a que essa constatação deram ensejo não tardaram: como
responder a essas inquietações, supondo que haja vontade ou
competência institucional estabelecida para fazê-lo? A quem
responder? Com quem negociar e exatamente o quê? Por mais que se
negue esse fato, aprendemos a pensar política ainda a partir de um
modelo em que a questão da soberania é central. “Soberano é
aquele que decide entre quem é amigo e quem é inimigo”, ou seja,
aquele, ou aquela instituição, ou conjunto de interesses, capaz ou
capazes de estabelecer um espaço de pertencimento, de identidade, e
contrapô-lo aos interesses daqueles que são considerados outros.
Ora, esse tipo de pensar político é fundamentalmente conservador,
todos sabemos. Parece inevitável traçar entre esse tipo de
formulação política e a estruturação de agendas prioritárias no âmbito dos partidos políticos, ou seja, no contexto em que se decide entre questões ditas fundamentais e questões ditas
secundárias, um elo claro. Em sua versão mais crua, cínica, esse tipo de
compreensão converte-se facilmente em uma pragmática de como se
manter no poder. E esse 'pragmatismo' se torna um elemento político
ainda mais preocupante quando constatamos o afastamento hitórico de
nossas instituições politicas do cidadão comum. Sintomático desse
afastamento talvez seja o tom desesperado mediante o qual um Senador
da República, Cristovam Buarque, cuja seriedade não temos razão para
contestar, defendeu a dissolução dos partidos políticos e da
convocação de uma Assembleia Constituinte para decidir que tipo de
modelo político substituiria o tipo de representação que temos
diante de nós. A perplexidade não pode ir muito mais longe. Mas
devemos lembrar, com preocupação e a propósito, o fato de a
hostilização aos partidos ter encontrado espaço nas ruas.
Se é possível entender que a forma como as instituições políticas
tem se organizado guarda uma íntima relação com as questões
relativas à identidade, ao estabelecimento de agendas prioritárias,
de táticas e estratégias que levariam à sua efetivação, e os
partidos políticos como materialização disso tudo, o que as ruas trouxeram
não pode trazer outra sensação senão o estupor. Como agendas
tão distintas podem se tornar objeto de negociação política? Ora,
essa pluralidade sempre foi imaginada como fragmentação, como
impotência política estimulada por aqueles que desejam governar - e aí
vale o clássico ditado latino, divide
et impera. No
entanto, é inegável que a articulação de uma agenda tão diversa configurou um acontecimento político de vulto e com
algumas vitórias expressivas: a PEC 37, afinal, foi engavetada; o
deputado João Campos, a pedido de seu partido, retirou o
projeto que autorizava tratamentos psicológicos da homossexualidade
– que tornou tristemente célebre o pastor e deputado Marcos
Feliciano; fala-se na divisão dos royalties do petróleo entre as
áreas de educação e saúde; fala-se, por vezes com incorrigível
oportunismo, acerca do que todos sabiam há muito, a necessidade de
reforma no modelo político.
Se a articulação de agendas tão distintas, quanto aquelas que se
enfeixaram nas manifestações a que assistimos, podem se converter
num evento político de consequências imediatas tão evidentes, é
necessário que compreendamos um pouco da lógica das redes sociais,
e sua dinâmica comunicativa potencializada pelas mídias veiculadas
na internet. É necessário que compreendamos outras experiência
semelhantes de mobilização política e do que podemos aprender com
elas – com sua dinâmica que combina elementos
desterritorializadores e territorializadores, uma forma nova de
articular laços fracos e fortes etc. Há algum tempo, Ernesto Laclau
e Chantal Mouffe vêm insistindo no que chamam de “democracia
radical”, ou seja, a compreensão do conflito como elemento
fundamental nos processos democráticos, o entendimento de que o
exercício da política pressupõe sempre encarar a questão da
hegemonia, de como ela é obtida e como pode ser questionada.
Reapropriação da teoria da soberania tal qual ela aparece na obra
de Gramsci, esse último pressuposto significa que grupos de
interesses diversos podem se reunir em torno de agendas que os
beneficiem e representem na busca por influência e pressão política
em áreas específicas. De acordo com tal reflexão, há, na luta por
hegemonia, um grande espaço para táticas mais contingentes.
Trata-se de uma concepção não essencialista do político em que a
práxis concebida neste nível desempenha um papel
fundamental. É possível, segundo pensamos, tirar aqui algumas
lições que lacem alguma luz sobre o que ocorre hoje no Brasil,
exemplo de articulação de interesses políticos tão diversos
quantos oposição ao ato médico, condenação da homofobia, defesa
da probidade na administração pública, melhoria da mobilidade
urbana etc. O que impressiona exatamente tem sido o fato de as mídias
sociais terem conseguido promover uma articulação de agendas que só
podem estar num mesmo campo de luta se tivermos em mente ideias
suficientemente amplas para expressar a insatisfação diante de algo
que chamaríamos de arrogância e de viés autoritário que ainda
definem o exercício da política em nosso país. Em que medida essas
agendas continuarão a se articular no médio e longo prazos no
contexto de uma luta contra-hegemônica é algo que não podemos
avaliar ainda. Mas chama a atenção o fato de vários segmentos da
população brasileira terem encontrado um espaço para exercer seu
descontentamento, para condenar a distância histórica que separa a política profissional
no Brasil de um sentido público, para questionar a dificuldade que os governantes tem tido em dar respostas ao clamor por uma vida mais justa. Essa dificuldade é técnica, política, cívica e
moral.
Talvez não seja demais ilustrar com um exemplo o que afirmamos. Ora, diante de todo o clamor que se produziu nas ruas em defesa da probidade
administrativa, o que dizer da insensibilidade do presidente da
Câmara e do Senado nacionais de, em meio às mobilizações de junho,
utilizarem aviões da FAB para atender a seus interesses
particulares? O mea culpa do primeiro, Henrique Eduardo Alves, é risível. Retorna aos
cofres públicos menos de R$ 10 mil dos R$ 150 mil que teria de
pagar, caso fretasse um avião comercial para passar um final de
semana com sua família no Rio de Janeiro e assistir ao final da Copa
das Confederações. Quanto ao Presidente do Senado, responde-nos que
não há ilegalidade no seu ato e que, por isso, nada restituiria.
Pode até não ser ilegal, não conhecemos as tecnicalidades
jurídicas envolvidas aqui, mas cassar parlamentar depois do AI-5 também não o era.
Ambos os atos, porém, são rigorosamente ilegítimos e a
sem-cerimônia com a qual Renan Calheiros lança mão do dinheiro do
povo brasileiro é uma bofetada nos milhões que saíram às ruas por
uma vida mais digna, por um tratamento mais respeitoso por parte daqueles que,
hoje, ainda, decidem os destinos do país.
Em tempo: Renan Calheiros, segundo as últimas informações, voltou
atrás em sua decisão. Vai pagar R$ 32 mil à Viúva. Caso vocês não saibam de quem se trata, Renan Calheiros é aquele que propôs tornar corrupção crime hediondo.
Em tempo dois: e tem também o Garibaldi Alves, rapaz...
14 comentários:
Jonatas e Breno,
O texto de vocês é ao mesmo tempo leitura obrigatória e prazeirosa sobre as manifestações no Brasil. Estarei hoje mesmo inserindo-o no sistema da UFS (o tal do SIGAA) para meus alunos de Sociologia V).
Não tenho tempo agora para relê-lo com cuidado (tenho que trabalhar o dia inteiro na reformulação de cronograma, avaliação e conteúdos de minhas disciplinas depois das manifestações). Mas uma ideia me veio quando vocês dividem especialistas das redes entre os que conceituam uma “exclusão digital” ou um “autoritarismo digital”: cientistas sociais de outros domínios da vida urbana contemporânea têm refletido sobre novas formas de desigualdades ou de segregação social: no espaço público, com estudiosos da gentifrication e suas re-terriorialidades; dupla segregação entre sociólogos da educação,etc.
Fico aqui pensando que a noção de segregação também pode ser um instrumento descritivo/analítico das marcas de desigualdades e diferenças nas redes. É uma noção que escapa à rigidez da noção de exclusão, posto que quem trabalha atualmente com segregação assinala que ela não isola absoluta ou necessariamente os segregados, mas pode funcionar sob a inclusão dos negativamente segregados no mesmo espaço dos positivamente segregados – como por exemplo a segregação escolar na França, onde até numa mesma sala de aula de uma escola pública você pode observar territórios institucionalmente diferentes – alunos “classe européia” e alunos “classe normal”. Jonatas parece optar pelo conceito de “autoritarismo digital”. Pois bem, eu proponho anarquicamente uma possibilidade conceitual que não exclui necessariamente o autoritarismo digital: formas de segregação digital.
Acho que disse um monte de doidice, mas queria realmente marcar como o texto de vocês parece-me muito bom e pertinente (vou realmente utilizá-lo em exercício empírico que propus a meus alunos sobre as manifestações de junho)
Abraço, Tâmara
Tâmara,
Como já te falei, acho a ideia de segregação mais interessante que a de exclusão. O segregado ainda é considerado como parte da dinâmica política - Agamben fala algo como exclusão inclusiva, ou inclusão exclusiva, em um outro contexto. Mas, em distinção a uma série de análises que tenho lido, que reduzem todos esses eventos políticos ao seu sentido econômico, crise de um projeto desenvolvimentista, por exemplo, gostaríamos de enfatizar uma dimensão cultural e política que não deve ser reduzida ao âmbito econômico, embora também não faça qualquer sentido concebê-lo desgarrado deste. Seu comentário, aliás, estimula a levarmos mais a sério esse aspecto. E, assim, obrigado por tê-lo postado. Abraço, Jonatas
De fato, o texto de vocês é muito bem-vindo para mim porque meu olhar é orientado pela sociologia dos movimentos sociais que, embora não seja necessariamente economicista, longe disso, quando pensa nas redes está mais preocupado com as consequências disso para os movimentos sociais – ou seja, para ações coletivas organizadas. E concordo também que a ênfase nas dimensões política e cultural não precisa desembocar no desprezo do âmbito econômico: as várias expressões de movimentos que explodem sob a mediação das redes (Occupy Wall Street, Indignados, Primavera árabe, nossa “revolução dos centavos” como belamente definiu nosso Luciano Oliveira) têm articulação com os impasses econômicos do novo capitalismo – em contextos diversos, é claro. Parece-me tão significativo e complexo que um dos meios mais importantes de efervescência dessas manifestações seja de propriedade de um dos donos do mundo (Mark Zuckerberg)...Parabéns pelo texto. Abraço.
Exclusão digital ou "internet divide" remete realmente a uma divisão entre os que estão e aqueles que não participam das mídias sociais o fato de não ter acesso a rede (que é reflexo de uma série de processos sociais que promovem a desigualdade social) significa simplesmente que as pessoas não estão presentes na tessitura reticular das mídias sociais. e que, portanto, não participam do debate que acontece no ciberesapaço. Concordo que a noção de segregação é mais rica, implicando inclusive em um conteúdo relacional (aqueles que têm e os que não têm acesso, e o que pode significar do ponto de vista de uma dinâmica social mais ampla: os segregados e os não segregados participam de uma mesma trama social..), mas, rigorosamente, um, sociograma mostra somente aqueles que lá fazem parte - e consequentemente - acessam os veículos inscritos na net
Vixe que estou monopolizando esse debate! Será que sou uma autoritária digital?
Brincadeirinha.
Volto porque preciso relativizar o que eu disse sobre exclusão.Precisaria do socorro de um Luciano Oliveira (preguiça de rever o que ele escreveu sobre), mas acho que minha pequena implicância é mais de ordem metodológica: exclusão, a depender de como usamos,pode obscurecer o fato de que os excluídos são parte da dinâmica que se procura analisar. Mas por outro lado, os próprios dados de vocês (60% sem internet nos domicílios e 45% sem nunca a terem acessado)demonstra que exclusão tem sentido empírico, sim - no caso de nosso Brasil varonil.
Eu, particularmente, resisto à ideia de exclusão, sobretudo quando falamos de exclusão digital. Essa ideia pressupõe o outro sempre como alguém desprovido, faltante, e acha que o problema político da desigualdade e da diferença pode ser resolvido através de estratégias de "justiça distributiva" (como fala Iris Marion Young), sem considerar que um dos problemas políticos centrais neste contexto é entender o que se distribui e como se distribui. Young falaria da necessidade de reconhecimento. Assim, "incluir", para alguns, significaria ensinar um pacote da Microsoft ou oferecer um tablet para estudantes de segundo grau. Certamente, temos um problema de justiça distributiva nestes casos ou quando vemos os números que citamos em nosso pequeno texto, mas o problema político é muito maior. O artigo que citamos em nosso texto elabora esses aspectos. Pois no final das contas, excluído mesmo dessa tal sociedade da informação pouca gente está: quando vi hoje um aposentado tendo acesso à sua conta bancária com o auxílio de uma funcionária do banco onde tenho uma conta, rigorosamente não podemos dizer que ele está excluído. Mas uma questão importante é saber que posição ele ocupa e que posição ele poderia ocupar em mídias, em princípio, plástica como são as novas tecnologias de informação e comunicação. E há aqui um problema de reconhecimento, deixando-me levar por um certo hegelianismo de formação. Jonatas
Jonatas,
Agora sim, estou convencida de que minha implicância com exclusão é mais do que metodológica. Quando disse que precisaria de um Luciano Oliveira, foi porque sei que ele tem uma argumentação sólida a respeito, ainda feita, acho, nos anos 1990. Pois bem, a sua hegeliana é tão sólida quanto. E, como meu pouquíssimo Hegel tem relação com Marx e até com o M.A.U.S.S., minha implicância com exclusão tem até caráter ideológico (ou crítico, para ser mais chic): acho que é conceito que se casa muito bem com o chamado "desenvolvimentismo" e suas mazelas que, quanto a aspectos mais econômicos do que vivemos, entra no fogo das manifestações de junho. Re-abraço então minha própria sugestão pelo conceito de solidariedade e agradeço a Breno por ter lembrado de seu conteúdo relacional. Abraço
Prezados Jonatas e Breno,
parabéns pelo texto. O mesmo nos apresenta uma série de inquietações teóricas sobre as esferas políticas e midiáticas. Penso que além de uma mera etnografia dos movimentos, que não seria nada fácil e tampouco inoportuno, vocês lançam uma série de questões metodológicas. Confesso que acompanhei de longe esta movimentação aqui em Aracaju, embora esteja atento para as movimentações similares de caráter religioso que têm se formado junto as redes virtuais, como o exemplo das mulheres judaicas que fizeram manifestação mais recente em Jerusalém. Lembro também que no ano passado a campanha para reitor aqui na UFS foi iniciada pelo Facebook. De fato, somente com estas manifestações começamos a ter noções sobre a dimensão e a importância deste fenômeno. Não há como ignorá-lo.
Não escrevi muito, deixo isso para minha querida colega professora Tâmara, resistente as ditas redes virtuais mas que se tornou uma famosa "socióloga blogueira", algo similar a "sociologia pública" de estilo Pierre Bourdieu, alguém que possui uma visibilidade construída a distância. Esse comentário não é irônico!
Artigo bom para discussão. Eu fui às ruas do Recife no dia 20 de junho e deixo aqui algumas impressões. Tenho refletido sobre a relação que vem sendo feita entre essas manifestações e as redes sociais da internet, como se elas estivessem PROMOVENDO articulações em diversas partes do mundo. O que penso é que essas mídias têm funcionado como meio de comunicação, assim como antes esses atos eram divulgados e convocados através de panfletos, rádio etc. (como na March of Dimes). Visto desta forma, são as PESSOAS que promovem, não as mídias ou redes sociais. O que a tecnologia faz é amplificar o poder de multiplicação e rápida disseminação dessas convocações (a comunicação de muitos para muitos), e aí de forma independente e aparentemente sem o controle dos grandes grupos que exploram os meios de comunicação tradicionais, ou fordistas, como vocês colocaram. As mídias amplificam, mas não criam manifestações.
Diria, ainda, que o único sentimento que tem unido esses manifestantes é a indignação. Castells diz algo semelhante. Está indignado com alguma coisa? Vá à rua protestar. Não enxergo uma identidade coletiva nem bandeiras, como houve no Diretas Já e no Fora Collor. A fragmentação que vocês apontam impede a definição de uma agenda, ou de agendas, pois os motivos da indignação são díspares, indo desde a corrupção à criminalização da maconha. No campo político, isso dificulta o diálogo, pela falta agendas e de lideranças, principalmente se levarmos em conta a máscara de V de Vingança que se tornou um adereço comum nesses atos. Quer dizer, é um movimento sem cara,
Afora isso, vi uma multidão perdida nas ruas, sem rumo, tirando fotos de si mesmos para postar no Instagram e/ou no Facebook. E muita falta de informação. Gente pedindo pelo fim da PEC 37 sem saber o que de fato isso significa. Ou significava, já que felizmente foi arquivada na pressão.
Tâmara,
Mais uma vez, obrigado pelos comentários e incentivo generoso.
Péricles,
Obrigado pelos mesmos motivos. Com certeza há muito o que dizer sobre a forma como a igreja vem utilizando as novas tecnologias da informação e comunicação.
Micheline,
Acho que você captou alguns elementos daquilo que consideramos importante nessas manifestações - o que não é de estranhar, visto que eu, particularmente, tenho aprendido com você e sua pesquisa. Acho que concordamos que as novas mídias não criam em si um evento político. Por isso mesmo, falamos da "territorialidade" e da "topografia" por trás dessas grandes manifestações. Mas onde você identifica apenas fragmentação (que certamente existiu), chamamos atenção para a novidade que é a articulação dessa diversidade. Parece claro que o que vimos é completamente diferente de manifestações como "Fora Collor" ou "Diretas Já" - manifestações com bandeiras claras, programação bem definida, começo, meio e fim etc. Mas o que surpreende é precisamente a possibilidade de algo em princípio tão fragmentado ter o impacto político que teve - digo isso para além dos resultados de médio prazo que essas manifestações possam ter.
Neste sentido, não podemos simplesmente negligenciar a dimensão política que uma possibilidade técnica pode abrir. Caso contrário, voltaríamos à compreensão da techné que nos fornece o velho Aristóteles: apenas um meio para atingir fins definidos pelos seres humanos. Creio que essa lição de possibilidade política certamente associada às novas tecnologias não vai ser esquecida tão rapidamente.
E, por isso, sou um pouco mais otimista do que você pareceu nas linhas finais de seu comentário. É possível que haja um aprendizado em curso - mesmo acreditando que o nível de informação entre os manifestantes tenha sido variado. Dizendo isso, claro, estou longe de acreditar que as instituições que com tanta luta ajudamos a construir, como os partidos políticos, por exemplo, devam ser simplesmente abandonadas. Abraço, Jonatas
Eita Péricles,
Você me inspirou: acabo de criar o MBSSTV: Movimento d@s Blogueir@s Sociológic@s Sem Território Virtual, ocupantes dos territórios virtuais de colegas generosos como Jonatas, Cynthia e Artur (que nunca mais nos brindou com seus ótimos drops sociológicos). Mas espero contribuir com a chamada sociologia pública mais no estilo da teoria do dom do que no de Bourdieu – quem, embora respeite, acho demasiadamente raivoso.
Jonatas,
Acho que estamos exercitando uma combinação criativa entre a teoria do dom e a do reconhecimento: tenho muito o que agradecer a você também – quem me ofereceu o espaço do Cazzo.
Micheline,
Fui lendo seu comentário e lembrando de minhas primeiras impressões da primeira manifestação aqui de Aracaju (“ou do Alabama”?) Ela dividiu-se em duas e eu, que sou ainda do tempo das Diretas Já, acreditei que fossem se reencontrar em algum lugar, alguma instituição vinculada às demandas básicas da manifestação (prefeitura, palácio do governo, polícia militar...) Pois não, terminei ficando inadvertidamente na rabada de uma delas e senti a maior decepção. Nada daquele contágio, daquela efervescência cívica de outrora; parecia que eu estava apenas passeando lado a lado da maioria dos membros das classes médias aracajuanas. Ou então no meio de um imenso bloco carnavalesco que perdera seu trio elétrico (tipo o Eva de Salvador, cujos membros são em geral jovens com renda familiar maior do que 10 salários mínimos). Depois de acompanhá-los por muitos quarteirões da mesma avenida onde aqui se organiza anualmente o cansativo Pré-Caju, olhei para meus companheiros de marcha (dois cientistas políticos e um antropólogo) e disse: gente, vamos sair dessa chatice e tomar uma cerveja em João do Alho? No bar encontramos estudantes nossos que vinham da outra manifestação e a narrativa deles era outra: movimentos sociais, partidos (discretos, mas presentes), efervescência coletiva, etc. Mas não só isso, ou seja, não apenas a reprodução das manifestações de outrora, porque nossos alunos notaram heterogeneidade e horizontalidade, também lá. Um de nossos estudantes chegou inclusive a conversar com um grupo de monarquistas parlamentares...Como a resposta de Jonatas ao seu comentário exprime muito do que penso e melhor do que eu (só faltou desenvolver mais as tensões dessa heterogeneidade que podem ser politicamente muito perigosas), não vou repeti-lo. Termino tentando reproduzir uma frase de meu amigo e colega Caio Amado (um de meus companheiros da manif.): “é esquisito. Mas é bom: as formas anteriores estavam desgastadas e o novo sempre aparece sem forma e esquisito”.
Muito bom o texto e as indicações para análises mais aprofundadas.
Espero não ter chegado muito tarde no debate, rs. Aqui em Natal, acompanhei as manifestações e participei das plenárias da #RevoltadoBusão. Juntamente com os outros amigos que compõem o site Carta Potiguar, tenho intervindo no debate sobre as manifestações.
Um dos pontos fortes de discussão e dissenso aqui em Natal reside na avaliação do apartidarismo e do anarquismo que, de um modo geral e em todos os movimentos recentes citados no texto, tem informado parte significativa das manifestações, com sua ênfase no espontaneísmo, na ação direta, na horizontalidade, na estética, na performance, etc..
Nas plenárias e assembleias a disputa e divisão entre os movimentos anarquistas e libertários e os militantes partidários e sindicatos é notória; discussão sobre a permissão dos usos de bandeiras partidárias, usos de capuz e máscaras, carros de som e microfones, tática de enfrentamento em rua. Creio que tudo isso é bastante sintomático acerca do, por assim dizer, "espírito do tempo" presente.
A preocupação dos amigos militantes e dos analistas mais inclinados ao institucionalismo da ciência política recai sobre as consequências de tais movimentos e de seu espontaneísmo anti-instituição sobre as correlações de força da disputa partidária entre esquerda e direita. O que aconteceu na Espanha, Grécia e Egito são exemplos de como esses movimentos reforçaram posições e atores conservadores.
Por outro lado, os mais simpáticos ou otimistas ao movimento tem ressaltado a crítica as instituições representativas (partidos, sindicatos, etc..), e seu incômodo por não liderar tais mobilizações.
Particularmente, parece-me que temos o seguinte impasse; de um lado, o discurso apartidário, espontaneísta é, hoje, extremamente mobilizador, porque apela para os sentimentos de indignação, descontentamento, e os desejos de liberdade e autoafirmação individual. O mesmo já não ocorre com o discurso tradicional da esquerda dos partidos e dos sindicatos. Porém, o discurso que é forte para a mobilização social mostra-se, quando adentra nas correlações de força da disputa política no interior das instituições, extremamente frágil, sendo enquadrado pelas forças conservadoras ou anulado pelo refluxo.
Penso que falta à esquerda política a criação de uma nova linguagem na qual os sentimentos e as energias políticas contemporâneas encontrem sentido e coerência, consigam habitar. Assim como, penso, que falta a esses movimentos contemporâneos um entendimento mais realista da luta política e de como as instituições podem e devem ser utilizadas inclusive para desconstruí-las e reinventa-las.
Enfim, este conflito entre o novo, intempestivo político que emerge, e o velho, o tradicional, possui, de fato, diversas dimensões para ser analisadas. Há muito trabalho por se fazer. Abraços,
Alyson Freire
Oi, Alyson.
Claro que você não chega tarde ao debate. Ele está apenas começando. Ele está apenas começando. No que nos concerne, pretendemos refazer esse texto a partir das críticas e colaborações a que tivemos acesso - algumas pessoas preferiram nos enviar seus comentários diretamente. Você então está escrevendo sobre esse tema. Por favor, envie-nos o link para o artigo que você escreveu. E obrigado pelos comentários. Abraço, Jonatas
Olá, prof. Jonatas,
Minhas intervenções no site Carta Potiguar foram mais de avaliação política do que propriamente sociológicas, embora essas fronteiras não sejam tão rígidas quanto se pense ou se gostaria. A meu ver, uma análise sociológica demanda maior maturação sobre dados e distanciamento, requisitos os quais a urgência do momento e o engajamento político, por vezes, não podem esperar, o que não significa deixar de mão. Muito pelo contrário. Dito isso, eis um pequeno artigo onde posiciono-me em relação uma disputa do debate local em torno do tema dos partidos políticos e o apartidarismo no movimento:
http://www.cartapotiguar.com.br/2013/07/30/as-jornadas-de-junho-partidos-politicos-e-apartidarismo/
Abração,
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