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sábado, 22 de março de 2008

Mead, a Dúvida Pragmática e os Símbolos Significantes II



Para os nominalistas (em sua forma mais extrema), a única realidade são os particulares físicos e os universais não existem, a não ser como nomes. Esta visão foi particularmente influente no século XI como forma de se controlar o poder excessivo da Igreja por meio da negação de alguns de seus dogmas, particularmente o princípio da transubstanciação da eucaristia (ou a idéia de que o pão e o vinho são transformados no corpo e no sangue de Cristo quando o sacerdote faz as vezes de Cristo ao afirmar “esse é o meu corpo” etc). O que os nominalistas sustentavam é que o pão e o vinho permaneciam como pão e vinho e que o sacerdote não tinha o poder de transformar a substância pão na substância corpo de Cristo. Este tipo de realismo a que os nominalistas do século XI se opunham é conhecido como realismo predicativo, que defende a existência de universais de forma independente das coisas materiais particulares (Platonismo) ou como propriedades dessas coisas (Aristotelismo). Existem diversos outros tipos de realismo, mas, de forma geral, pode-se considerar que todas as formas de realismo defendem a existência de algum tipo de entidade (cuja existência esteja sob disputa, como buracos negros, quarks, mulheres, a sociedade etc) não diretamente acessível à percepção dado que não se refere a particulares físicos (Lawson, 1999). Neste sentido, já na Idade Média, o apelo a uma metafísica realista, notadamente através de S. Tomás de Aquino, mostrava uma afinidade entre a visão de mundo da ciência e da Igreja, já que concebia a realidade como ampla o bastante para considerar como reais coisas que não podem ser diretamente experimentadas (como “espíritos”, leis causais e, numa perspectiva um pouco mais contemporânea, a sociedade), isto é, os universais e as coisas que transcendem os objetos físicos particulares.

O pragmatismo de Pierce é uma conseqüência direta de seu realismo e seu problema mais fundamental era o de como conhecer o significado dos universais (os signos, os símbolos etc). Já antes de Pierce, a filosofia escolástica havia estabelecido que se conhece o significado de um universal através da separação (análise) e identificação mental das características relevantes (essenciais, na escolástica) para a caracterização de um objeto enquanto pertencente a um determinado tipo ou classe de objetos. Todos os universais teriam qualidades que podem ser extrapoladas de um objeto concreto a outro, enquanto que os particulares não teriam essas qualidades, mas apenas um nome em comum. De forma geral, os nominalistas do século XI aceitaram a definição de universais dos realistas, mas negavam que quaisquer tipos gerais fossem reais: apenas os particulares seriam reais. Isto era possível, os nominalistas argumentavam, porque as qualidades sensíveis dos objetos externos são todas relativas à mente humana (no sentido em que a forma pela qual esses objetos aparecem na mente é, em parte, devido à estrutura dos nossos órgãos dos sentidos e à nossa faculdade cognitiva). Sendo assim, realistas e nominalistas concordavam que as entidades teóricas são conceitos ou concepções que dependem da atividade cognitiva dos filósofos (e dos cientistas), mas extraíram conseqüências distintas deste fato. Para os nominalistas, os conceitos teóricos são produto da mente dos cientistas e só existem como fenômenos psicológicos (não encontram equivalente na realidade). Para os realistas, embora um conceito como o de “gravidade” seja fruto da mente humana, a gravidade (suas leis, propriedades etc), existem, quer as conceitualizemos ou não.

O realismo de Mead aparece claramente em sua teoria do símbolo (comum a Pierce e, em certa medida, a Dewey), segundo a qual todo significado é genérico ou universal dado que se refere a algo em comum entre quem fala, quem ouve e à coisa à qual o discurso se refere. Neste sentido, o significado (dos símbolos) preexiste aos indivíduos particulares e não depende (exclusivamente) da experiência individual.É esta visão dos símbolos como universais que caracteriza Mead como um realista, uma visão que ele estende ao conceito de sociedade (já que a sociedade é o uso compartilhado de símbolos significantes). Mas a crença de Mead na existência dos universais na realidade (e não apenas na mente dos indivíduos particulares) deve ser caracterizada como uma crença que se conhece como “universais limitados”, i.e., referentes a uma dada perspectiva ou comunidade. Por universal Mead entende, portanto, que o símbolo de linguagem (enquanto estímulo para a ação) pode ser endereçado a qualquer um dos membros do grupo social e gerar uma resposta que seja adequada à execução da ação social. A questão, então, é que se os gestos ou as ações de uma pessoa evocam gestos ou ações semelhantes por parte de outros, então o significado desses gestos e ações não é uma questão privada, mas uma realidade objetiva que não diz respeito aos conteúdos mentais individuais.

Mas esta posição realista nem sempre é mantida por Mead. Frequentemente ele escorrega para um nominalismo social (individualismo ou, talvez de forma mais adequada: situacionalismo) quando afirma, por exemplo, que a linguagem, ou o uso de símbolos significantes,

não simplesmente simboliza uma situação ou objeto que já está lá de saída; ela torna possível a existência ou a aparência daquela situação ou objeto, dado que ela é parte do mecanismo por meio do qual a situação ou objeto foi criada. [...] Os objetos dependem ou são constituídos por esses significados. (Mead apud Alexander, 1987: 206).

É aí, portanto, que ele abre a possibilidade de a sociedade existir apenas como os significados que estão presentes (ainda que de forma compartilhada) nas mentes daqueles que participam de uma dada interação, e não como algo sui generis e que é pelo menos relativamente independente desses significados ou concepções.

Referências

Alexander, Jeffrey (1987). Twenty Lectures: Sociological Theory Since World War II. Nova York: Columbia University Press.
Lawson, Tony (1999). “Feminism, Realism and Universalism”. Feminist Economics, 5, 2: 25-59.
Lewis, David; Smith, Richard (1980). American sociology and pragmatism: Mead, chicago sociology, and symbolic interaction. Chicago: University of Chicago Press, 1980).
Shalin, Dmitri (1991) The Pragmatic Origins of Symbolic Interactionism and the Crisis of Classical Science. Studies in Symbolic Interaction, vol 12, pp 223-51.

Cynthia

Mead, a Dúvida Pragmática e os Símbolos Significantes I



Tem dias que a gente exagera. Confesso que esta semana exagerei ao retroceder à filosofia escolástica para introduzir o pensamento de George Herbert Mead para meus alunos e alunas de graduação. Apesar do exagero, minhas intenções eram nobres: apresentar as bases do pragmatismo e sua divisão entre realistas e nominalistas, argumentar que este debate é uma das origens do problema individualismo versus coletivismo nas ciências sociais e possibilitar que eles e elas refletissem sobre a posição ambígua de Mead a este respeito. Tenho cá as minhas suspeitas de que a coisa toda deve ter ficado meio nebulosa. Por esta razão, resolvi atender ao apelo de Rafael e postar algo sobre o tema por aqui. Segura aí, Rafael!

De acordo com a visão mecanicista que dominou a filosofia a partir de Descartes, o mundo era como uma máquina determinada por leis naturais a serem reveladas pela razão humana. A fim de alcançar este objetivo, a ciência deveria se livrar de tudo aquilo que pudesse impedir a percepção e bloquear o acesso à ordem determinada por Deus, o grande relojoeiro do universo. O método estabelecido era a dúvida radical de Descartes, um tipo de dúvida espontânea e universal que supostamente permitiria estabelecer os fundamentos absolutamente certos do conhecimento. A idéia era duvidar de tudo o que dizia respeito ao mundo, inclusive de nossos próprios corpos (qualquer semelhança com abordagens mais recentes é mera coincidência!). A única coisa da qual não se podia duvidar era do ego pensante: o famoso “penso, logo existo”, embora alguém já tenha se perguntado por que não “ando, logo existo”, ou “como, logo existo”? Estavam lançadas as bases para uma concepção dualista do universo, a res extensa e a res cogitans, isto é, os domínios antagônicos da mente e da matéria. É bem verdade que os mecanismos que ordenavam o universo deveriam ser apreendidos pelo sujeito cognoscente, mas o seu papel se resumia a minimizar seu contato com o mundo real a fim de não contaminá-lo com idéias falsas. Os conceitos científicos expressariam idéias indubitáveis inerentes às nossas mentes e naturalmente adequadas às próprias coisas.

A partir do século XIX, diversas abordagens vão questionar o método cartesiano, perguntando-se sobre o papel do sujeito na construção da realidade. Dentre elas encontram-se a fenomenologia e o pragmatismo. O pragmatismo questiona a significância da dúvida cartesiana, argumentando em favor de uma dúvida mais substancial que diz respeito ao embasamento dos processos cognitivos em situações problemáticas reais, e não simplesmente na mente. A idéia de um ego que duvida (racionalismo) é substituída pela idéia de uma busca cooperativa da verdade, no sentido de se resolver problemas reais de ação. A dúvida verdadeira, para os pragmatistas, ocorre na ação (práxis), que é concebida como um fluxo contínuo. Para eles, toda percepção do mundo e toda ação estão ancoradas em crenças não refletidas, em condições auto-evidentes e em hábitos bem-sucedidos (neste sentido, a ação é concebida como a conclusão de uma inferência prática). Mas estas maneiras habituais de agir constantemente entram em contato com a “resistência” do mundo real (no mesmo sentido em que a sociedade apresenta uma resistência às vontades individuais, para Durkheim). Assim, o mundo real, que nos coloca problemas práticos, e não a razão, é considerado como a fonte de destruição de expectativas irrefletidas (e falsas).

Quando o mundo real destrói as expectativas irrefletidas, a dúvida real se estabelece e a percepção é obrigada a se orientar para aspectos da realidade até então não percebidos e a ação deve ser reorganizada. O que ocorre, então, é uma interrupção da ação como uma sucessão de fases e o contexto interrompido deve ser reconstituído. Esta reconstrução é tida como um ato criativo do ator. Se ele consegue prosseguir satisfatoriamente em suas ações, isto é, se a continuidade da ação é garantida através de uma mudança de suas percepções, então algo novo foi colocado no mundo: uma nova forma de ação que pode ser tornar institucionalizada e transformar-se em uma rotina irrefletida. Em resumo, os pragmatistas percebem toda a ação humana em termos de uma oposição entre hábitos irrefletidos e atos criativos. Isto significa que a criatividade diz respeito a ações em situações que requerem uma solução, e não à criação espontânea de algo novo que não se baseie em atos irrefletidos. O elo vital entre a mente e a matéria é, portanto, a ação: os sujeitos devem agir para conhecer o mundo (Shalin, 1991).

Estas concepções de conhecimento e de ação constituem a base do pensamento de Mead que, estritamente falando, não era um pragmatista, mas um “aplicador” de suas idéias à psicologia social. Para Mead, o erro de Descartes e de outros racionalistas era a tentativa de analisar o conteúdo da mente independentemente dos processos sociais nos quais ela emerge e atua, ou seja, independentemente da práxis humana. A mente, para ele, não era uma substância. Sua localização não deve ser procurada no sujeito individual, mas nos processos sociais que unem os indivíduos de uma dada comunidade. A mente é, portanto, definida como o funcionamento de “símbolos significantes” que só podem emergir nos processos sociais.

É esta noção de “símbolos significantes” que constitui a base de seus conceitos de mente, de self e de sociedade. Não entrarei em detalhes sobre eles aqui, apenas indicarei que, para Mead, a experiência individual só pode ser compreendida a partir da sociedade, ou do ponto de vista da comunicação como essencial à ordem social. Não existe um agente humano, uma personalidade ou um self sem linguagem, e não existe linguagem sem sociedade. Esta, por seu turno, deve ser entendida como uma estrutura que emerge a partir de um processo de atos de comunicação contínuos, a partir de interações entre pessoas que estão mutuamente orientadas por meio de “símbolos significantes” (ou de uma linguagem). Isto imediatamente coloca uma questão fundamental para a sociologia: se a mente é o funcionamento de símbolos significantes, onde buscar os significados? Para pragmatistas como William James, na experiência individual: a mente seria uma função biológica por meio da qual o organismo controla e ajusta os eventos em sua corrente ou fluxo de experiência (isto é, atribui-lhes significado). Ao conceber a mente como uma função social, em vez de biológica, os eventos do mundo adquirem significado apenas nas relações com outros indivíduos e com a sociedade mais ampla.

A distinção acima aponta para o fato de que a teoria do símbolo de Mead adquire um caráter realista que o afasta de uma concepção individualista de sociedade. É aqui que a compreensão da divisão entre duas vertentes principais do pragmatismo pode ser útil. Pode-se afirmar que o ponto fundamental que dividia pragmatistas como Charles Pierce, por um lado, e William James e John Dewey, por outro, era a distinção entre o símbolo e a coisa simbolizada. Outra forma de colocar o problema é formulá-lo em termos do status ontológico dos signos (aqui usado de maneira intercambiável com a noção de símbolo): eles existem na realidade, ou são apenas ficções úteis, criações da mente humana? A partir de agora, basearei minha exposição nos argumentos desenvolvidos por David Lewis e Richard Smith (1980).

Para esses autores, existem duas vertentes principais dentro do pragmatismo: o pragmatismo individualista da psicologia funcional de James e Dewey e o pragmatismo socialmente orientado de Pierce e Mead. Pierce é um dos únicos filósofos modernos cujas raízes não se encontram na filosofia moderna (a partir de Descartes), mas na filosofia escolástica da Idade Média que girava em torno da oposição realismo/nominalismo e não da oposição moderna racionalismo/empirismo. O debate realismo/nominalismo dizia respeito ao status ontológico dos universais, isto é, das leis, dos tipos (conceitos gerais) e classes.