"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
sábado, 22 de março de 2008
Mead, a Dúvida Pragmática e os Símbolos Significantes I
Tem dias que a gente exagera. Confesso que esta semana exagerei ao retroceder à filosofia escolástica para introduzir o pensamento de George Herbert Mead para meus alunos e alunas de graduação. Apesar do exagero, minhas intenções eram nobres: apresentar as bases do pragmatismo e sua divisão entre realistas e nominalistas, argumentar que este debate é uma das origens do problema individualismo versus coletivismo nas ciências sociais e possibilitar que eles e elas refletissem sobre a posição ambígua de Mead a este respeito. Tenho cá as minhas suspeitas de que a coisa toda deve ter ficado meio nebulosa. Por esta razão, resolvi atender ao apelo de Rafael e postar algo sobre o tema por aqui. Segura aí, Rafael!
De acordo com a visão mecanicista que dominou a filosofia a partir de Descartes, o mundo era como uma máquina determinada por leis naturais a serem reveladas pela razão humana. A fim de alcançar este objetivo, a ciência deveria se livrar de tudo aquilo que pudesse impedir a percepção e bloquear o acesso à ordem determinada por Deus, o grande relojoeiro do universo. O método estabelecido era a dúvida radical de Descartes, um tipo de dúvida espontânea e universal que supostamente permitiria estabelecer os fundamentos absolutamente certos do conhecimento. A idéia era duvidar de tudo o que dizia respeito ao mundo, inclusive de nossos próprios corpos (qualquer semelhança com abordagens mais recentes é mera coincidência!). A única coisa da qual não se podia duvidar era do ego pensante: o famoso “penso, logo existo”, embora alguém já tenha se perguntado por que não “ando, logo existo”, ou “como, logo existo”? Estavam lançadas as bases para uma concepção dualista do universo, a res extensa e a res cogitans, isto é, os domínios antagônicos da mente e da matéria. É bem verdade que os mecanismos que ordenavam o universo deveriam ser apreendidos pelo sujeito cognoscente, mas o seu papel se resumia a minimizar seu contato com o mundo real a fim de não contaminá-lo com idéias falsas. Os conceitos científicos expressariam idéias indubitáveis inerentes às nossas mentes e naturalmente adequadas às próprias coisas.
A partir do século XIX, diversas abordagens vão questionar o método cartesiano, perguntando-se sobre o papel do sujeito na construção da realidade. Dentre elas encontram-se a fenomenologia e o pragmatismo. O pragmatismo questiona a significância da dúvida cartesiana, argumentando em favor de uma dúvida mais substancial que diz respeito ao embasamento dos processos cognitivos em situações problemáticas reais, e não simplesmente na mente. A idéia de um ego que duvida (racionalismo) é substituída pela idéia de uma busca cooperativa da verdade, no sentido de se resolver problemas reais de ação. A dúvida verdadeira, para os pragmatistas, ocorre na ação (práxis), que é concebida como um fluxo contínuo. Para eles, toda percepção do mundo e toda ação estão ancoradas em crenças não refletidas, em condições auto-evidentes e em hábitos bem-sucedidos (neste sentido, a ação é concebida como a conclusão de uma inferência prática). Mas estas maneiras habituais de agir constantemente entram em contato com a “resistência” do mundo real (no mesmo sentido em que a sociedade apresenta uma resistência às vontades individuais, para Durkheim). Assim, o mundo real, que nos coloca problemas práticos, e não a razão, é considerado como a fonte de destruição de expectativas irrefletidas (e falsas).
Quando o mundo real destrói as expectativas irrefletidas, a dúvida real se estabelece e a percepção é obrigada a se orientar para aspectos da realidade até então não percebidos e a ação deve ser reorganizada. O que ocorre, então, é uma interrupção da ação como uma sucessão de fases e o contexto interrompido deve ser reconstituído. Esta reconstrução é tida como um ato criativo do ator. Se ele consegue prosseguir satisfatoriamente em suas ações, isto é, se a continuidade da ação é garantida através de uma mudança de suas percepções, então algo novo foi colocado no mundo: uma nova forma de ação que pode ser tornar institucionalizada e transformar-se em uma rotina irrefletida. Em resumo, os pragmatistas percebem toda a ação humana em termos de uma oposição entre hábitos irrefletidos e atos criativos. Isto significa que a criatividade diz respeito a ações em situações que requerem uma solução, e não à criação espontânea de algo novo que não se baseie em atos irrefletidos. O elo vital entre a mente e a matéria é, portanto, a ação: os sujeitos devem agir para conhecer o mundo (Shalin, 1991).
Estas concepções de conhecimento e de ação constituem a base do pensamento de Mead que, estritamente falando, não era um pragmatista, mas um “aplicador” de suas idéias à psicologia social. Para Mead, o erro de Descartes e de outros racionalistas era a tentativa de analisar o conteúdo da mente independentemente dos processos sociais nos quais ela emerge e atua, ou seja, independentemente da práxis humana. A mente, para ele, não era uma substância. Sua localização não deve ser procurada no sujeito individual, mas nos processos sociais que unem os indivíduos de uma dada comunidade. A mente é, portanto, definida como o funcionamento de “símbolos significantes” que só podem emergir nos processos sociais.
É esta noção de “símbolos significantes” que constitui a base de seus conceitos de mente, de self e de sociedade. Não entrarei em detalhes sobre eles aqui, apenas indicarei que, para Mead, a experiência individual só pode ser compreendida a partir da sociedade, ou do ponto de vista da comunicação como essencial à ordem social. Não existe um agente humano, uma personalidade ou um self sem linguagem, e não existe linguagem sem sociedade. Esta, por seu turno, deve ser entendida como uma estrutura que emerge a partir de um processo de atos de comunicação contínuos, a partir de interações entre pessoas que estão mutuamente orientadas por meio de “símbolos significantes” (ou de uma linguagem). Isto imediatamente coloca uma questão fundamental para a sociologia: se a mente é o funcionamento de símbolos significantes, onde buscar os significados? Para pragmatistas como William James, na experiência individual: a mente seria uma função biológica por meio da qual o organismo controla e ajusta os eventos em sua corrente ou fluxo de experiência (isto é, atribui-lhes significado). Ao conceber a mente como uma função social, em vez de biológica, os eventos do mundo adquirem significado apenas nas relações com outros indivíduos e com a sociedade mais ampla.
A distinção acima aponta para o fato de que a teoria do símbolo de Mead adquire um caráter realista que o afasta de uma concepção individualista de sociedade. É aqui que a compreensão da divisão entre duas vertentes principais do pragmatismo pode ser útil. Pode-se afirmar que o ponto fundamental que dividia pragmatistas como Charles Pierce, por um lado, e William James e John Dewey, por outro, era a distinção entre o símbolo e a coisa simbolizada. Outra forma de colocar o problema é formulá-lo em termos do status ontológico dos signos (aqui usado de maneira intercambiável com a noção de símbolo): eles existem na realidade, ou são apenas ficções úteis, criações da mente humana? A partir de agora, basearei minha exposição nos argumentos desenvolvidos por David Lewis e Richard Smith (1980).
Para esses autores, existem duas vertentes principais dentro do pragmatismo: o pragmatismo individualista da psicologia funcional de James e Dewey e o pragmatismo socialmente orientado de Pierce e Mead. Pierce é um dos únicos filósofos modernos cujas raízes não se encontram na filosofia moderna (a partir de Descartes), mas na filosofia escolástica da Idade Média que girava em torno da oposição realismo/nominalismo e não da oposição moderna racionalismo/empirismo. O debate realismo/nominalismo dizia respeito ao status ontológico dos universais, isto é, das leis, dos tipos (conceitos gerais) e classes.
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