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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Georg Simmel, Max Weber e o Trágico





Por Alyson Freire (Mestrando no Programa de Ciências Sociais – UFRN)

“Mas não é trágico que o homem seja levado pela divindade a experimentar o terrível, e sim que o terrível aconteça por meio do fazer humano” (SZONDI, 2004, p. 89).

“As épocas em que predominam crenças comparativamente estáveis não produzem tragédias de nenhuma intensidade, (...) O seu cenário histórico mais usual é o período que precede à substancial derrocada e transformação de uma importante cultura” (WILLIAMS, 2002, p. 79).


A Sociologia é um campo discursivo, formado não apenas por teorias, conceitos heurísticos e categorias científicas especializadas, mas igualmente por pressuposições gerais inarticuladas cujo caráter transcende o domínio dos valores e das regras estritamente vinculadas à prática científica. As generalizações teóricas e o conhecimento empírico sociológico existem, também, referidos a um horizonte de sentido prévio em relação aos quais os esquemas analíticos e proposições da Sociologia ganham significado, segundo determinadas concepções tácitas sobre a natureza da ação humana, da ordem social, da história, entre outras mais (ALEXANDER, 1986).

Nesse sentido, os repertórios simbólicos das Artes, das religiões e das filosofias, enfim, da cultura em geral fornecem um pano de fundo inarticulado de muitas das pressuposições fundamentais das teorias sociológicas sobre o mundo social e as condutas humanas.

Alvin Gouldner (1973), por exemplo, defende que a sociologia existe numa tensão entre uma concepção iluminista do moderno e uma concepção romântica do moderno. Num trabalho formidável e instigante sobre o florescimento dessa disciplina na Alemanha, França e Inglaterra, Wolf Lepenies (1996) não perdeu de vista esta ambivalência das origens intelectuais e culturais da sociologia, perseguindo o enredo de suas disputas e proximidades com as tradições artísticas e literárias nacionais e suas elites intelectuais.

Essas pressuposições tácitas integram o corpo de tradições de ideias e crenças que formaram e estruturam ainda hoje a imaginação conceitual da Sociologia e suas grandes linhas divisoras. São, com efeito, bem mais do que meras pré-condições históricas para o desenvolvimento desta ciência da ação e dos fenômenos sociais. Elas constituem dimensões inarticuladas do campo discursivo da Sociologia; “estruturas profundas”, como chama Alvin Gouldner (1973), as quais ainda não se tem dedicado à devida atenção no que diz respeito ao seu peso na configuração e alimentação dos esquemas cognitivos e metodológicos e das premissas normativas das diferentes formas de praticar sociologia e de pensar sociologicamente.

Essas dimensões latentes da Sociologia não se esgotam, todavia, no Classicismo racionalista e no Romantismo. Existem outras “estruturas profundas” inarticuladas, oriundas de tradições culturais e estilos de pensamento cujas fontes e repertórios de ideias e crenças não necessariamente coincidem ou derivam das destacadas por Gouldner em seu clássico artigo. Como, por exemplo, a visão trágica da existência que, do teatro grego até as filosofias neoromânticas da cultura passando pela dramaturgia renascentista e clássica, acompanha a cultura do Ocidente.

Neste artigo, proponho-me, de uma maneira despretensiosa e não-exaustiva, a apresentar e discutir em quais componentes do pensamento sociológico podemos identificar a atuação do trágico. Para isso, tomarei como exemplo alguns aportes teóricos de duas grandes figuras da Sociologia, a saber: Georg Simmel e Max Weber. Porém, ressalta-se, de saída, sem a ambição de esgotar todas as possibilidades e ocorrências em que se poderia verificar as afinidades eletivas dos conceitos e das análises desses autores com a sensibilidade trágica.

Tragédia e Trágico

Sem entrar nos detalhes das relevantes diferenças entre “tragédia” e “trágico”, entre a tragédia como gênero literário dos antigos e o trágico como filosofia dos modernos, entre arte trágica e teoria do trágico, basta-nos aqui, segundo nossos propósitos, acentuar que esses distintos elementos expressivos e argumentativos do campo do espírito encontram-se profundamente relacionados a uma tradição cultural, no caso da Grécia Antiga. E que, a despeito das especificidades e ênfases relativas, formam uma visão de mundo compartilhada, pois, seja no teatro grego, nas filosofias pré-socráticas e nas sistematizações teóricas dos românticos e nos aforismos nietzscheneanos, encontramos uma “estrutura profunda” relativamente comum, ou seja, pressuposições normativas e cosmológicas partilhadas, tais como a ideia de caos e de contingência do mundo, o agonismo da vida e a necessidade ética de enfrentamento do destino, a vulnerabilidade da liberdade e do conhecimento humano e os imperativos morais de uma ética heroica aristocrática, entre outros (LESKY, 2006).

Em linhas gerais, o trágico diz respeito a uma “concepção de mundo como sede da aniquilação absoluta de forças e valores que necessariamente se contrapõem, inacessível a qualquer solução e inexplicável por nenhum sentido transcendente” (LESKY, 2006, p. 38).

Como visão de mundo ou ontologia, o trágico designa um tipo peculiar de entendimento e sensibilidade acerca do lugar do homem e da ação humana face as inesgotáveis, imperscrutáveis e irremediáveis forças e poderes do universo e do destino, inclusive daquelas desencadeadas pelo finito engenho humano. Este entendimento e sensibilidade são traduzidos numa concepção da existência segundo a qual esta última é regida e selada pela experiência do paradoxo e da tensão entre intenções e forças irreconciliáveis em que a vida, o homem, a liberdade e o juízo humanos são expostos ao acaso, à contingência, ao inesperado.

É essa concepção do devir e do sentido do curso do mundo que pretendemos localizar nas interpretações da configuração da cultura moderna elaboradas por Simmel e Weber. Nosso propósito sobre o trágico consiste, com efeito, nesses conteúdos metafísicos e representações da existência, da condição humana e do curso do mundo que formam esta singular tradição cultural, e não os aspectos estéticos, históricos ou teóricos que vigoram e perpassam as formas artísticas e algumas filosofias da cultura do Ocidente.

Vejamos, então, como e onde este singular ponto de vista sobre a existência e a ação humana, o “ponto de vista trágico”, opera nos esquemas de análise das teorias sociológicas de Simmel e Weber, particularmente na interpretação dos autores acerca do desenvolvimento da cultura moderna.

Partiremos do pressuposto segundo o qual, tanto Simmel quanto Weber tomam a história e o processo de formação da cultura moderna como portadores e desencadeadores de paradoxos essenciais e distintivos. A nosso ver, o ponto de vista trágico repousa, precisamente, sobre este entendimento particular acerca da complexidade constitutiva da modernidade ocidental, isto é, sobre uma forma peculiar de abordar e compreender o desenvolvimento histórico e os processos sociais constitutivos da cultura moderna.

Simmel e o trágico como autocontradição e ambivalência

“O significado da tragédia se deixa conceber mais facilmente no paradoxo” (HOLDERLIN, 1994, p. 63).

O “ponto de vista” trágico na teoria social de Simmel manifesta-se na maneira como este autor compreende os efeitos dos fenômenos estruturantes da cultura e sociabilidade modernas. A modernidade, em Simmel, é modelada por forças sociais, formas significativas e conteúdos contraditórios e ambivalentes entre si, que foram engendradas e provenientes de um mesmo e único processo social. A análise das principais teses dos ensaios em que Simmel examina as tendências socio-históricas e os impulsos vitais da forma de vida moderna revelam, a nosso ver, que a autocontradição e o autoantagonismo - como marcas inerentes dos fenômenos e processos estruturantes da modernidade, tais como o dinheiro, a divisão do trabalho, a cisão radical entre cultura objetiva e cultura subjetiva - formam o selo batido da cultura moderna.

A tese que aqui sustentamos consiste na ideia de que a reflexão sociológica de Simmel assume uma espécie de princípio de autocontradição inerente aos processos e forças do mundo. Tal ideia não nos parece de todo arbitrária, pois, o próprio autor numa assertiva sobre a trágica contradição da condição do mundo afirmou que a existência é, “en ultima instancia una autocontradicción (...)” (SIMMEL, 1986, p. 52).

Jessé de Souza comentando a crítica do mundo moderno elaborado por Simmel, também apreende esta visão trágica da autocontradição que, nas análises do autor de A Filosofia do Dinheiro, está afivelada no seio das próprias coisas e processos do real. Em conformidade a definição de trágico que destacamos acima, diz Souza sobre o trágico em Simmel:
Ao contrário de indicar um destino triste ou desconsolador em sentido genérico, o destino trágico, na significação que nos interessa, aponta para o fato peculiar de que as forças destruidoras mobilizadas contra um ser foram produzidas pelas tendências mais profundas deste mesmo ser (SOUZA, 2005, p. 10).
No ensaio O dinheiro na cultura moderna (SIMMEL, 2005), o sociólogo alemão é contundente e direto com respeito à contradição da época moderna em relação e em oposição à época medieval. O advento e institucionalização da economia monetária ao destruir os constrangimentos orgânicos e comunais típicos do medievo e da propriedade feudal “possibilitou a autonomia da personalidade e deu a ela maior liberdade de movimentos interna e externa incomensurável” (id. Ibdem, p. 23). No entanto, este mesmo fenômeno produziu, em compensação, “um caráter objetivado incomensurável aos conteúdos práticos da vida” (id. Ibdem, p. 23).

O dinheiro é, de acordo com Simmel, o agente fundamental desta “grande transformação” na relação entre personalidade e comunidade, entre indivíduo e os produtos do seu trabalho, entre os indivíduos e suas as formas de associação. É sobre o dinheiro que podemos identificar em Simmel a operação de uma visão trágica como perspectiva explicativa e avaliativa. No dinheiro vige uma espécie de autocontradição fundamental, trágica, pois ele “confere, por um lado, um caráter impessoal, anteriormente desconhecido, a toda atividade econômica, por outro lado, aumenta, proporcionalmente, a autonomia e a independência da pessoa” (id. Ibdem, p. 24).

A autocontradição fundamental do dinheiro consiste em seu papel ambivalente na constituição da liberdade e objetivação modernas. A economia monetária gera, de uma só vez, constrangimentos positivos e negativos sobre a personalidade. Isto quer dizer que, na medida em que liberta esta última, expandido em suas possibilidades de desenvolvimento, vontade e associação, o dinheiro a aprisiona em relações sociais e atividades objetivadas e reificadas que dispensam a totalidade subjetiva da pessoa.

Esta mesma contradição incidente sobre a personalidade ou individualidade pode ser identificada no argumento de Simmel em sua análise dos efeitos da divisão do trabalho sobre a cultura e sobre a relação do indivíduo com os produtos de seu engenho e de sua subjetividade. Na visão de Simmel, os desdobramentos extraordinários da especialização da divisão do trabalho no âmbito da produção dos artefatos da vida em sociedade não acompanham exatamente em seu benefício os desdobramentos sobre a cultura subjetiva, quer dizer, os conteúdos significativos da existência e das capacidades dos indivíduos.

É certo que a divisão do trabalho proporcionou um desenvolvimento, um cultivo sem paralelo das coisas “que envolvem e preenchem objetivamente nossa vida (...), mas a cultura dos indivíduos, pelo menos nas classes altas, de maneira alguma progrediu, em muitos casos até regrediu” (SIMMEL, 2005ª, p. 44).

Assim como no caso do dinheiro, vigora na divisão do trabalho e no avanço da técnica uma autocontradição essencial, geradora da discrepância entre a cultura tornada objetiva e a subjetiva, isto é, entre a capacidade e os produtos da exteriorização humana e a capacidade individual e subjetiva de dotar tais produtos de sentido apropriando-se significativamente deles. Nas palavras do autor: “O acervo da cultura objetiva é aumentado diariamente e de todos os lados, enquanto o espírito individual somente pode estender as formas e conteúdos de sua constituição em uma aceleração contida, seguindo apenas de longe a cultura objetiva” (id. Ibdem, p. 45).

Não é gratuito, portanto, que Simmel intitule este descompasso entre intensificação da objetivação da cultura e a capacidade de apropriação/relacionamento significativo da subjetividade humana, de “tragédia da cultura”. Tragédia, aliás, que se acirra por realizar nos indivíduos, em suas estruturas mentais, o sentimento de que as criações e as construções humanas, que se sofisticam e se renovam cada vez mais, de que elas, em última instância, não coincidem como frutos da criatividade, cooperação e das energias humanas, mas como coisas que se autonomizaram e em face das quais aqueles não se reconhecem nem podem fazer frente em termos de qualidades e potencialidades.

Weber e o trágico como paradoxo das ações

Talvez, Max Weber seja entre os clássicos o mais trágico dos autores da Sociologia. O ponto de vista trágico percorre boa parte de sua obra e interpretação acerca do desenvolvimento histórico da modernidade ocidental. A presença da visão trágica se deixa ver, também, na atitude ética de enfrentamento exigida pelo mundo moderno, um mundo desprovido de fundamentos últimos, sublimes e transcendentes. É no confronto entre ética da responsabilidade e ética da convicção, onde cada qual “tem de decidir qual é para ele o Deus e o qual o demônio” que orienta e controla os “cordões da sua vida” que podemos compreender o quanto Weber abraça, inclusive para si, o espírito trágico (WEBER, 1984, p. 175; 183).

Os paradoxos éticos da responsabilidade e da convicção que pesam e lutam dentro do peito do homem moderno são uma perfeita tradução do trágico transposta dos palcos gregos para dentro da vida cotidiana moderna influenciada pelas diferentes e autônomas ordens da vida que orientam as condutas e posicionamentos valorativos humanos, pois; “o trágico traduz uma consciência dilacerada, o sentimento das contradições que dividem o homem contra si mesmo (VERNANT & VIDAL-NAQUET, 1999, p. 02).

Entre as diversas entradas para apreender o trágico na sociologia weberiana, enfatizaremos o problema da ação, mais precisamente, o tema das consequências não-intencionais da ação – um dos grandes motes de sua teoria e obra. O trágico da existência humana, em Weber, pode ser encontrado no peculiar e sofisticado tratamento que este sociólogo dispensa a ação social, entendida como dotada de sentido e subjetivamente visada (WEBER, 1993, p. 131).

Elucidar, cientificamente, o dilema da relação entre as intenções dos agentes e o sentido histórico de suas ações constitui, como sabemos, um dos propósitos mais caros da empresa teórica e metodológica de Max Weber. Para o autor da Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, o mundo é moldado por nossas intenções, mas não da forma como esperamos originalmente. Toda ação possui efeitos imprevistos que ultrapassam a capacidade de cálculo do sujeito e o escopo de seus propósitos.

A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é um exemplo contundente do tratamento deste dilema na busca de uma explicação da conexão de sentido entre as concepções religiosas do protestantismo ascético e a gênese de alguns dos elementos constitutivos decisivos do capitalismo moderno e sua cultura – o ethos da empresa racional burguesa de acumulação e de busca do lucro, a organização racional do trabalho, a profissão como dever, como dedicação de si (WEBER, 2004).

Em nenhum momento Weber sugere que a Reforma produziu o capitalismo ou o seu “espírito”, isto é, seu fundamento ético de conduta e comportamento em que se apoia sua significação cultural. Os crentes ascéticos e fiéis protestantes, e menos ainda Lutero ou Calvino, não tinham a intenção de modificar as condutas e instituições econômicas e remover os entraves - colocados pelo tradicionalismo - que pesavam sobre estas. A intenção dos reformadores e seus adeptos era clara e convictamente religiosa: buscar a salvação e o testemunho da graça divina neste mundo mas de olho no outro mundo (WEBER, 2004 p. 74; 81).

Assim, o “espírito do capitalismo” é, na verdade, o efeito não-previsto e não-proposital das ideias e dos comportamentos puritanos da ascese cristã. No entanto, o ponto de vista trágico em Weber e que anima seu clássico ensaio não se encerra no aleatório das ações, que faz das intenções e motivações dos homens um “joguete do destino”.

Quando o “espírito do capitalismo” livra-se dos apoios metafísicos do protestantismo, e passa a se sustentar e a mover-se sobre os seus próprios pés, de forma secular e mecanizada, os motivos, atitudes e concepções ético-religiosas dos ascetas reformados, convertem-se na “jaula de ferro” dos indivíduos modernos. Com amargor e ironia, afiança Weber: “Quis o destino, porém, que o manto virasse uma rija crosta de aço” (WEBER, 2004, p. 165).

Como um cosmos significativo, o capitalismo moderno transvalorou o manto ascético do protestantismo, de sorte que os fundamentos espirituais sublimes da ação e do viver, antes religiosos, morais e éticos foram suplantados por fundamentos econômicos, técnicos, mecânicos e racionais que, se, por um lado, orientam sobre como conduzir a vida, por outro, emudecem acerca do sentido último e significativo do porquê conduzir-se deste modo.

Desta maneira, a busca pela afirmação da glória de Deus, a devoção aos princípios éticos e mandamentos divinos, a confiança na providência, a satisfação orgulhosa e convicta do servir a Deus cedem o passo, no coração e nas mentes dos homens modernos, ao cálculo e utilidade das ações, a eficiência econômica, a satisfação e maximização dos interesses econômicos, a servidão e culto ao dinheiro e a ambição quase esportiva do lucro.

O trágico na análise de Weber consiste, seguramente, como nos revela as últimas páginas do seu clássico ensaio, em como, de modo imprevisto e indesejado, a ética protestante contribuiu, significativamente, para precipitar uma ética do trabalho que agrilhoou a cultura moderna nesta pesada crosta de aço; num tipo de vida em que o homem existe tão somente para seu trabalho ou negócio, para o dinheiro e o lucro, quando, na verdade, deveria ser o contrário conforme preconizava os propósitos iniciais.

A gênese do espírito do capitalismo moderno, apoiada no desenvolvimento cultural que lhe precipita historicamente, tal qual narrada por Weber bem pode ser entendida como a expressão dramática do trágico; pois o que nos ensina as tragédias senão as artimanhas, as ironias e a indiferença do destino, das forças e poderes mundanos e extramundanos em relação aos nossos propósitos e motivações?

Como as tragédias, as relações entre o homem, a ação e o mundo formam parte da questão primordial contra a qual Weber jamais deixou de se confrontar para atingir suas teses, posicionamentos éticos e generalizações teóricas. Para descrever o seu próprio pensamento, o sociólogo de Heidelberg bem poderia ter escrito as palavras abaixo, que estes estudiosos franceses dedicaram, sabiamente, às tragédias gregas:
A ação humana é, pois, uma espécie de desafio ao futuro, ao destino e a si mesma, finalmente um desafio aos deuses que ao que se espera, estarão ao seu lado. Neste jogo, do qual não é senhor, o homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas próprias decisões. Para ele, os deuses são incompreensíveis (VERNANT & VIDAL-NAQUET, 1999, p. 21).
Referências

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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

The return of the native



Tempos atrás, comecei a organizar minhas notas de aula sobre Durkheim em uma série de posts sobre esse autor (aqui, aqui e aqui). Por uma razão ou por outra, não concluí este trabalho. Agora que estamos estudando o positivismo de Durkheim no curso de metodologia científica da graduação, achei que seria uma boa ideia concluí-lo. Como estou sem tempo, vai uma solução de improviso: a republicação de um artigo que escrevi com Bob Brym e que consiste em uma crítica do Suicídio com base em uma comparação entre seus aspectos teóricos, metodológicos e dados empíricos relativos aos Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Embora o artigo não tenha sido escrito com o ensino de graduação em mente, pode ser que lance alguma luz sobre as questões que temos trabalhado no curso. Deixo para concluir a organização de minhas notas de aula em outra ocasião - e com uma linguagem mais adequada à graduação.

Cynthia


The Return of the Native: A Cultural and Social-Psychological Critique of Durkheim’s Suicide Based on the Guarani-Kaiowá of Southwestern Brazil

Cynthia Lins Hamlin
(Universidade Federal de Pernambuco) e Robert J. Brym (University of Toronto). Artigo originalmente publicado em Sociological Theory 24:1, March 2006.

More than a 100 years after its publication, Durkheim’s Suicide continues to inspire debate over its theoretical, methodological, and empirical claims. Yet few authors have ventured a critique that shows the impact of each of those claims on one another. The importance of such a critique lies in the fact that it is not possible to resolve some of the contradictions in Durkheim’s work unless one examines both the underlying meta-theoretical assumptions and the data that account for its explanatory limitations.

An especially interesting case for illustrating the explanatory limitations of Durkheim’s theory of suicide is the Guarani-Kaiowá people of Brazil. The Guarani are an ethnic group characterized by a unique religious system and language (Guarani). They reside in Argentina, Paraguay, Uruguay, and Brazil (in the states of Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná , São Paulo, Rio de Janeiro, and Mato Grosso do Sul). In 2003, 34,000 Guarani lived in Brazil, subdivided into three groups: the Kaiowá (between 18,000 and 20,000 individuals), the Ñandeva (8,000–10,000), and the Mbya (5,000–6,000) (Almeida and Mura 2003). The Guarani have become known worldwide for their extremely high suicide rate, particularly among the Kaiowá in Mato Grosso do Sul and Paraguay (where they are known as pai-tavyterã) and, to a lesser degree, the Ñandeva. The phenomenon is not known among the Mbya. The Kaiowá of Mato Grosso do Sul are the most prone to suicide,with estimated suicide rates varying between 43 per 100,000 population (between the 1940s and the 1980s) and 305 per 100,000 population (in 1995) (Levcovitz 1998). In 1995, the suicide rate among all indigenous peoples in Mato Grosso do Sul was nearly 21 times higher than the Brazilian annual rate of 3.6 per 100,000 people, and, in 2003, it reached 128 per 100,000 people (Table 1). At that time, 59 percent of the indigenous people were Guarani-Kaiowá, 38 percent were Terena, and 3 percent were of other ethnicities.

The high rate of suicide among the Kaiowá is puzzling. Many explanations have been proposed, but none covers the variety of situations in which suicide has been observed. Some explanations are anthropological, others historical, still others psychiatric-psychological, but most rely on the Durkheimian approach, either by classifying the form of suicide as altruistic (Meihy 1991) or anomic (Brand 1995) or by reformulating the anomic explanation so that suicide is seen as a result of maintaining certain cultural patterns in a greatly changed environment (Levcovitz 1998;Almeida 1998, 1995). In the latter view, the cause of the extremely high suicide rate among the Kaiowá is not a process of acculturation or social disintegration, a thesis that runs against the grain of most contemporary interpretations of suicide among aboriginal peoples. Instead, the decision to take one’s own life is explained with reference to Guarani "supernatural and cosmological themes" (Almeida 1998:21).

The partial character of the explanations listed above results from problems in Durkheim’s work. For one thing, Durkheim regarded "primitive" societies as harmonious and static. He did not consider that social norms, values, and beliefs are constantly reinterpreted by social actors without this leading to social disintegration. Moreover, although Durkheim always stressed that the moral rules governing society are grounded in the belief systems from which they emerge, it was not until The Elementary Forms of Religious Life that he started paying more attention to belief systems under the general category of collective representations. In this sense, Suicide largely overlooked cultural aspects of social life, with particularly damaging consequences for Durkheim’s own definition of suicide as a form of action. Here, we call for the integration of culture into any consideration of the causes of suicide: the return of the native, as it were.

Para baixar o artigo completo, clique aqui.

quarta-feira, 17 de março de 2010

O romantismo e as ciências sociais 2


Eugène Delacroix: La liberté guidant le peuple (1830)

Jonatas Ferreira

Entender o que significou o Romantismo nesse espaço mais restrito, ou seja, na França e na Alemanha, em todo caso, tampouco é uma tarefa simples. Basta que se considere o que pode ter representado essa reação ao classicismo em um e em outro contexto. A estética clássica, em sua busca pelo equilíbrio formal, pela ordem, pela contenção, por temas de bom gosto tem muito mais condições históricas de prosperar na França que na Alemanha. Com muito mais propriedade, ali se busca uma etiqueta da contenção, do gesto bem dosado, do gesto que em sua graça ateste a distância que separa a civilidade do cortesão da brutalidade na qual viviam as camadas pobres da população. A prosperidade e 'progresso' franceses, em contraste com a situação alemã (politicamente fragmentada, economicamente retardatária), requer formas sociais e culturais que falem em nome de uma razão abstrata, cosmopolita. A grande engrenagem absolutista naquele país demanda uma etiqueta e uma estética da contenção pois apenas elas manteriam harmonioso o corpo social.

E se ali se falava em um retorno à Antiguidade Clássica era precisamente porque o francês agora se percebia com reedição desse padrão máximo de civilidade. Em O Processo Civilizador, Elias nos ajuda a entender esse processo, dentro do qual poderíamos opor um cosmopolitanismo, humanismo, racionalismo francês a este outro processo cultural mais atento com a questão da identidade, do particular, do nacional. Em outras palavras, é possível opor a ideia francesa de civilização, e através dela um humanismo francês vindo da Renascença, ao conceito mais alemão de Kultur, onde a Reforma Protestante fala mais alto. Não é fortuito, portanto, que dois expoentes do classicismo alemão, como o são Goethe e Schiller, sejam também influências determinantes no romantismo daquele país (Bornheim, p. 84). O sentido da oposição romântico-clássico é melhor capturado através da análise do caso francês do que daquilo que ocorreu culturalmente na Alemanha, historicamente mais próxima próxima do romantismo.

A esse respeito, é ilustrativo a forma como Simmel (p. 49) contrasta o estilo germânico de Rembrant (esse holandês do século XVII) à arte clássica românica. (E eu estou com preguiça de traduzir isso:)

If Rembrandt’s art may be considered the highest embodiment of the Germanic side, the contrast between the two could be summed up as follows: where classicism seeks to present form in the appearance of life, Rembrandt sought to present life through the appearance of form. The artistic personality of the classical world always sees a particular form based on a lawful interrelationship of the parts of a surface, which more or less prescribes the outline of the subject matter, often schematically, but certainly in a wonderfully poised, harmonious and monumental manner; and this law predetermines the subject matter’s life to realize this form and to seek the meaning of its artistic becoming in this form.


É interessante citar e analisar esse olhar retrospectivo que Simmel produz acerca de uma certa força romântica que impede o estilo germânico de se render plenamente ao formalismo classicista. Entre outros motivos, o curioso é vê-lo produzir uma análise vitalista deste estilo, quando é o próprio estilo germânico, seu sentido histórico e cultural, que oferecem as condições de possibilidade de qualquer vitalismo. Entre o estilo românico, italiano, latino, se quiserem, e o estilo nórdico, germânico, há uma oposição entre duas alternativas opostas de produzir um equilíbrio entre energia vital e forma. Essa seria, para Simmel, a oposição mais fundamental que subjaz aos atributos que associamos mais acima às ideias de uma civilização francesa (abstração, racionalismo, pendor pela matemática) e uma cultura alemã (particularidade, nacionalidade, sentimento). Pensado a partir dessa chave, o vitalismo de Georg Simmel nada mais seria que uma manifestação tardia de um romantismo inerente à própria cultura germânica.

Vejamos isso mais claramente recorrendo ao próprio texto "Estilo Germânico e Clássico Românico" (publicado em 1918) – e, mais uma vez, o caboclo Macunaíma me impede de traduzir a citação, que não é pequena (“Ai, que preguiça!”).

At work here is the classical Romanic impulse toward lucid panorama and rational unity in the exterior realm of appearances. By contrast, in Rembrandt’s art, as in all typical Germanic art, no such overarching schema abstracts away from individuality: each picture retains its own form, in which no other content can be inserted, and only by inhering in this particular content can any form exist; a general form would be meaningless. It follows that it is life that determines representation – the life always of the individual human being, which can proceed only through this one canal. Individual life here so naturally rejects generalization that it does not even need to exhibit its difference from others. Wherever Italian art stresses the aspect of the individualized – most notably in the quattrocento – it does so always by means of an intentional accentuation, a deliberate foregrounding of the figure from the crowd, or through something like a principle of comparison, a yardstick or a common denominator of some kind, which stretches across even greatly heterogeneous objects (Simmel, p. 49; meus grifos)


O classicismo na França signfica Corneille, Molière, Racine, isto é, uma arte cortesã, cuidadosa, formal, matemática, num certo sentido. Pensemos no recurso constante que Racine faz aos temas consagrados da antiguidade clássica: Fedra, Andrômaca, Alexandre o Grande. Desses, li e me lembro de Fedra – vi Fernanda Montenegro fazer a personagem umas dez vezes; eu fazia um bico como fiscal da SBAT e não cansava de ver a grande dama do teatro nacional sofrer de amor (com muita dignidade, sem se rasgar, nem armar barraco) pelo enteado, Hipólito. Como já falamos acima, levava-se muito a sério nos tempos de Boileu e Racine a Poética de Aristóteles, seu apelo à ordem, proporção, ao equilíbrio entre imaginação e forma, ao “bom-gosto” na escolha dos temas. Essa era uma arte feita para o prazer da corte dos Richelieu, Mazarin, de Luís XIV. Pensemos também no genial Molière, no Burguês Fidalgo, por exemplo. Não é esse um libelo contra a falta de gosto do burguês, de sua vã tentativa de tornar-se um gentil-homem, um homem de gosto? Pobre Monsieur Jourdain, a tomar aulas de etiqueta e dicção que transformarão sua fala em um grotesco ornejar... Sobre quais pressupostos essa arte se produz? Jacques Barzun nos ajuda a entender isso. E uma vez mais recorrerei a uma citação que é a forma mais rápida de ir ao ponto.

What lent support to the seventeenth-century view that reason and nature are one is that the classical scheme os society coincided with a great scientific epoch; an epoch, moreover, specializing upon the one branch of science most congenial to the classical temper. I mean mathematics. For mathematics also abstractsand generalizes and yields simplicty and certainty while appearing to find these ready-made in nature.


A ideia de que a sociedade deva funcionar como um relógio, com suas engrenagens harmonica e equilibradamente funcionando, é clássica e, enquanto tal, adequada a um mundo político presidido por um relojoeiro maior, por um reio absoluto. Racionalismo, matemática, equilíbrio formal são aqui ideias políticas que se completam. O problema é que uma revolução burguesa em curso, coloca em xeque o aparato ideológico que legitima o absolutismo – permitam-me aqui simplificar as coisas. Sobre essa tensão histórica que monta, o Romantismo rousseauiano prospera. Contra as etiquetas, contra a formalidade da vida cortesã, de seu ideal de civilidade, Rousseau propõe um mergulho na própria fonte de vitalidade humana, em uma nudez sem artifícios que constituiria a própria essência e força da natureza humana, sufocada pelo artificialismo da cultura absolutista. O Romantismo francês é marcado por essa postura anti-classicista que pode ser capturada no seguinte trecho do Discurso sobre as Ciências e sobre as Artes.

“Como seria agradável viver entre nós, se a aparência fosse sempre a imagem das disposições do coração, se a decência fosse a virtude, se nossas máximas nos servissem de regras, se a verdadeira filosofia fosse inseparável do título de filósofo! Mas, tantas qualidades muito raramente vão refluídas, e a virtude não anda assim com tanta pompa. A riqueza do ornamento pode anunciar um homem opulento, e sua elegância um homem de gosto: o homem são e robusto é reconhecido por outros sinais; é sob a vestimenta rústica de um lavrador, e não sob os dourados do cortesão que se encontrarão a força e o vigor do corpo. O ornamento não é menos estranho à virtude, a qual é a força e o vigor da alma. O homem de bem é um atleta que tem prazer em combater nu; despreza todos esses vis ornamentos que dificultam o uso das suas forças e cuja maior parte só foi inventada para ocultar alguma deformidade” . http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000012.pdf).


Embora não devamos reduzir o Romantismo de Rousseau a algum tipo de irracionalismo, pois afinal esse é o escritor do Contrato Social, parece evidente que ao condenar o articialismo, o formalismo necrosado, ao arremeter sobre o Antigo Regime, ele se aproxima discursivamente desse tipo de postura. Mesmo aqui, no entanto, ao opor um “bom selvagem” ao “homem civilizado” ele é influente. Derrida, como já indicamos aqui no Cazzo, faz um estudo muito interessante dessa influência na obra de Claude Levi-Strauss. De qualquer modo, poderemos sempre afirmar acerca de J-JR o que constata Guinsburg (1978, p. 14):“Com Montesquieu e Rousseau, as instituições, costumes e normas sócio-jurídicas passam a ser entendidas como produto das condições, do comércio e contrato dos seres humanos”. E dessa perspectiva poderemos interpretar mais generosamente o techo abaixo.

“Com efeito, tanto ao folhear os anais do mundo como ao suprir crônicas incertas com pesquisas filosóficas, não se encontra uma origem dos conhecimentos humanos que corresponda à idéia que a respeito gostamos de formar. A astronomia nasceu da superstição; a eloqüência, da ambição, do ódio, da adulação, da mentira; a geometria, da avareza; a física, de uma vã curiosidade; todas, e a própria moral, do orgulho humano”. (Rousseau, http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000012.pdf)


Mas, se a separação entre um mundo clássico e absolutista e um mundo romântico e burguês é uma tarefa mais simples de ser realizada na França, o que dizer do Romantismo Alemão, cujas referências fundamentais estiveram de algum modo envolvidas em traduzir o mundo românico, latino, seu racionalismo, para uma cultura mais germânica? Ora essa questão é a questão que Kant se coloca na Crítica do Julgamento e a sua resposta é em certa medida esquizofrênica. Parte de sua terceira Crítica é dedicada a pensar as condições de possibilidade de uma estética fundada no sentimento de prazer diante do Belo, que descreveria a meu ver a trajetória do classicismo. Uma segunda parte dessa obra fundamental, entretanto, é dedicada a pensar o sentimento do Sublime, que constituirá não apenas o campo dentro do qual trafegará o Romantismo, mas em grande medida orientará o próprio modernismo como um todo. Se no sentimento do belo havia uma esperança de que o equilíbrio, a harmonia, a proporção e a ordem ainda pudessem falar acerca da relação do homem do século XVIII com o seu mundo, ao descrever o sentimento do sublime Kant percebe que a desproporção, a precariedade das formas, a finitude desamparada do ser humano irão sepultar as esperanças clássicas de um mundo equilibrado. E esse mundo em desequilíbrio é o mundo industrial.

Por sobre a contribuição kantiana, Schiller realiza a sua própria. Sobre essas duas, virão Novalis e os irmãos Schelegel que nos proporão uma arte reflexiva e vital.

(por editar)

segunda-feira, 15 de março de 2010

O romantismo e as ciências sociais 1


Théodore Géricault: Le radeau de la Meduse (1819)

Jonatas Ferreira

Para possível desespero de Cynthia, estou novamente às voltas com a questão da importância do Romantismo nas ciências sociais. Mais uma vez estou trabalhando nisso que entendo como primeira expressão de uma crítica à sociedade industrial que, entre os séculos XVIII e XIX, se formava na Europa a partir de ritmos bem variados. Sem o Romantismo fica complicado entender a emergência de uma sociologia não positivista no velho mundo, ou seja, fica difícil entender em que tradição se inscreveria a hermenêutica de Schleiermacher e Dilthey, o impressionismo que marca a obra de Simmel, o azedume de Weber em ensaios como Ciência como Vocação ou Política como Vocação. As referências, as pistas estão ali, aguardando um trabalho de investigação que, de algum modo, estou me propondo a fazer já faz algum tempo.

Falemos de alguns rastros que nos indicam estarmos no bom caminho. Weber cita explicitamente Tolstoi e Nietzsche naqueles dois escritos, como haveremos de lembrar. Diz-nos que a modernidade necessita abrir espaço para forças irracionais, carismáticas, que a retirem da ossificação que o industrialismo e a burocracia moderna implicam. Diz-nos que a racionalização da vida a que assiste a cultura ocidental não pode conferir sentido a nossa existência etc. etc. Fala-nos ali de temas caros à sensibilidade romântica, tais como a morte, o empobrecimento da vida nos processos de civilização etc.

De que modo entender o vitalismo simmeliano, sem aceitar a enorme contribuição que o movimento romântico confere à cultura modernista como um todo e ao vitalismo, em particular? E como falar em vitalismo sem mencionar Nietzsche; ou Nietzsche sem citar Wagner e Schopenhauer? Como discorrer acerca de temas como "interpretação endopática", entender exegese como diálogo, ou seja, como falar em Dilthey e Schleiermacher, sem passar pela contribuição fundamental dos irmãos Schlegel e de Novalis?

E, no entanto, o que é mesmo Romantismo?

A resposta a essa questão nos coloca diante de uma diversidade de contribuições considerável. O que as torna romântica? O que torna Lord Byron, Rousseau, Hamann, Herder, Novalis, Nietzsche, Tolstoi, Pushkin, Wagner, Brahms, Beethoven, Caspar David Friedrich, Stendhal, Burke, Goethe românticos? A literatura que trata do assunto parece unânime em reconhecer essa dificuldade e propor algumas soluções. A primeira delas, seria aceitar um corte cronológico, que iria das duas ou três últimas décadas do século XVIII à segunda metade do século XIX - o que coloca novas dificuldades. Não lembro ao certo se foi Novalis ou August Schlegel a afirmar que considerava o Dom Quixote, ou seja, uma obra do século XVI, o exemplo mais acabado de arte romântica. Os dois, em todo caso, acreditariam encontrar no trabalho de Cervantes uma forma perfeita daquela postura que eles afirmavam ser a essência da nova arte: reflexividade. A arte deve não apenas ser uma produção que visa ao prazer, à ilustração, ao aperfeiçoamento etc., mas realiza-se enquanto tal apenas quando for também capaz de pensar o próprio ato de produzir. O que seria da ideia modernista da vanguarda artística sem essa pressuposto fundamental: a arte tem de ser ao mesmo tempo artística e meta-artística, ou seja, deve ser reflexiva.

Jacques Barzun também acredita que Pascal, por seu turno, que sua insistência no caráter ambíguo da condição humana - fadada à miséria e à grandeza, à queda e ao mesmo tempo a ser o ponto mais alto da criação - o tornariam um romântico avant la lettre (perdoe-me, leitor(a), o hábito provinciano de usar expressões francesas, inglesas, alemãs em texto tupiniquim. Prometo tomar jeito e jamais voltar a repetir a graça). Pois, então, o gajo era romântico temporão.

Esse caminho esclarece, portanto, bem pouco e geralmente resulta em conclusões do tipo: romantismo é irracionalismo; romantismo é anti-industrialista; romantismo é buscar sempre o sentimento em lugar da razão; romantismo é fuga do real. Para todo romântico que se possa encontrar com uma ou outra ou todas essas características, ainda um segundo, terceiro, quarto e quinto será recordado que fugiriam aos chavões. Barzun acredita que uma melhor alternativa seria, então, falar em problemas típicos da cultura romântica, cujas soluções poderiam ser múltiplas. Assim, seriam questões gerais sobre as quais os mais diversos românticos se debruçaram: uma oposição a formas estéticas caducas, que perderam a vitalidade diante de situações históricas particulares, isto é, com a ascensão da burguesia ao poder, a percepção da necessidade de ir além das tarefas negativas do Esclarecimento, a percepção de um novo lugar do artista e do intelectual nessa nova sociedade.

Em todo caso, não evitaremos necessariamente uma abordagem esquemática a esse tema através do caminho proposto por Barzun. Procurando também questões centrais da cultura romântica, Ernst Fischer (183, p. 63) afirma: "O romantismo foi um movimento de protesto, de protesto apaixonado e contraditório contra o mundo burguês capitalista, contra o mundo das "ilusões perdidas", contra a prosa dos negócios e dos lucros".

O que se perde aqui, de partida, é a possibilidade de perceber que o Romantismo possa ter significado coisas relativamente distintas em realidades sociais por vezes bastante dessemelhantes. Até porque o capitalismo não avançou do mesmo modo na França, Inglaterra e Alemanha e um eventual protesto à emergência e consolidação da burguesia nesses contextos certamente significaria coisas distintas, mesmo da perspectiva marxista que orienta Fischer. Se falarmos especificamente da caducidade de certas formas estéticas que o movimento romântico tem em mira, ou seja, se falarmos de uma oposição à arte cortesã, ao classicismo, também aqui teremos casos bastante específicos. O pensamento clássico, seu formalismo, seu humanismo de inspiração greco-latina, penetrou bem mais na França, por exemplo, do que na Alemanha. Esta última muito mais marcada pela Reforma protestante que pela Renascença, segundo afirma Gerd Bornheim (1978).

Assim, embora nos próximos posts venha a falar do Romantismo francês, e especialmente na influência de Rousseau, como Bornheim, dedicarei especial atenção ao caso alemão, dada a sua inquestionável importância para o surgimento de uma tradição crítica nas ciências sociais.


Isso, porém, farei amanhã. Agora, vou ver se encontro algo bem romântico para ilustrar e fazer fundo musical a esse post.

(Por revisar)

quinta-feira, 11 de março de 2010

Max Weber e o trânsito brasileiro



Luciano Oliveira (Professor do DCS e do PPGD da UFPE)

Uma das teses que - parodiando o Macaco Simão - já defendi mais de uma vez neste espaço é a de que o Brasil é o país do artigo pronto! Hoje direi mais: o Brasil é o país do artigo acadêmico dado de bandeja. Por isso fico às vezes sem entender os nossos candidatos a mestres e doutores em Sociologia, desesperados por não conseguirem achar um tema para suas dissertações. Saiam às ruas e abram os olhos! – é a recomendação que lhes dou.

Esse abrir de olhos, naturalmente, não se refere ao olhar do senso comum. Para este, ainda hoje, o sol continua girando em torno da terra. Todos nós “vemos” isso. Mas todos nós sabemos também que essa é uma verdade apenas aparente, e que por trás da aparência, se me perdoam a redundância, há um nível de verdade mais verdadeira a que temos acesso através do saber produzido por figuras como Galileu, cujas descobertas se deram contra as evidências mais imediatas. Do mesmo jeito, o olhar sociológico, aquele que antevê artigos em cada esquina, também se vale de telescópios de outro tipo produzidos por figuras que “viram” o que normalmente não vemos. Max Weber foi uma delas.



terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Os Trastes de Brasília e o Suicídio Altruísta de Durkheim



Por Luciano Oliveira (Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPE)

Depois das esdrúxulas imagens dos corruptos de Brasília escondendo dinheiro nas meias e cuecas, e da surrealista oração conjunta de três desses cafajestes agradecendo a Deus a existência de um deles, a minha impressão é a de que não adianta esperar que cheguemos ao fundo do poço; que esse poço não tem fundo; que, portanto, qualquer indignação não tem mais sentido; e que, finalmente, para que os políticos brasileiros tomem jeito, é preciso romper a lengalenga das conclamações por “rigorosas punições” para esses trastes porque todos no país, eles em primeiro lugar, sabem que elas não virão. Que fazer então? Como dizia uma marchinha de carnaval dos anos 50 “pensar / professor / pensar...” Pois bem, comecei a fazê-lo. Sabiam os senhores que em outras plagas nos Estados Unidos, na França e mais recentemente até na Coréia do Sul acontece vez por outra de um corrupto suicidar-se? Foi por aí que o meu pensamento começou a desenvolver uma reflexão que não sei se classifico no departamento da chanchada ou do drama. O leitor que decida! Os fatos, em primeiro lugar.

Fato nº 1: em 1988, na Pensilvânia, Budd Dwyer, ex-secretário da fazenda daquele estado americano, na véspera de ouvir a sentença judicial num processo de corrupção em que estava enrolado, convocou a imprensa e, na frente das câmeras de televisão, jurou inocência, sacou rapidamente um revolver, enfiou na boca e estourou os miolos. Fato nº 2: em 1993, na França, num feriado de primeiro de maio, o ex-primeiro-ministro do segundo governo Mitterrand, um desconhecido entre nós chamado Pierre Bérégovoy (pronuncia-se “bêrrêgôvuá”), meteu também uma bala na cabeça por análogas razões: metido em acusações de corrupção, tinha sido duramente atacado pelos oposicionistas e sentia-se pessoalmente responsável pela fragorosa derrota do Partido Socialista nas eleições legislativas daquele ano. Fato nº 3: em junho deste ano, na Coréia do Sul, um certo Roh Moo-hyun (não sei como se pronuncia), ex-primeiro-ministro daquele país, depois de admitir publicamente ter recebido seis milhões de dólares de uma fabricante de tênis, não conseguiu conviver com a vergonha: pulou de uma ribanceira de 30 metros e morreu. Como fatos, basta. Vamos agora à teoria.

Não sei se o leitor já ouviu falar em Durkheim. Um dos pais da sociologia, ele é autor de um livro instigante, O Suicídio, onde tenta demonstrar a tese de que esse gesto extremo, o mais pessoal que possa haver, também está submetido a determinações sociológicas. Pois bem. Para Durkheim, a auto-imolação de pessoas como Dwyer, Bérégovoy e Moo-hyun entraria na categoria do “suicídio altruísta”, porque eles estariam de tal forma identificados com os valores socialmente aceitos, que não suportariam conviver com a acusação de tê-los infringido. Nesse caso, a inexistência de suicídios desse tipo na sociedade brasileira indicaria a ausência de valores cívicos suficientemente fortes para serem levados a sério. É nesse sentido que precisamos de uma ruptura, um gesto heróico que seja, e que se torne um marco. Como sou contra a pena de morte, comecei a delirar com a possibilidade de um desses corruptos se matar! Seria um choque, sem dúvida. E indicador de uma mudança cultural da maior importância. O sujeito poderia entrar para a história como um dos vultos importantes do Brasil! Infelizmente não acredito que nenhum deles tope a proposta. Para isso, seria necessário que dessem alguma importância a valores que justamente não têm... Como romper esse nó? Socorra-me, Robespierre!

Depois de ter escrito isso, fiquei pensando na hipótese, altamente improvável, é verdade, de um suicídio altruísta ocorrer na “mundiça” do governo do Distrito Federal. E agora? Será que eu poderia ser criminalmente processado? Remoto bacharel em direito que sou, lembrei-me de que no Código Penal tem um delito de “induzimento ou instigação” ao suicídio. Consultei meus advogados e eles me confirmaram. A pena não é tão horrível assim: de 2 a 6 anos de reclusão. Mas mesmo assim... É verdade que tem um dispositivo que vem em meu socorro: segundo o artigo 65 do mesmo Código, se o crime é cometido em razão de “relevante valor social ou moral”, a pena é reduzida. Nesse caso, com sorte, posso pegar uns 4 anos no máximo, e aí eu poderia me beneficiar das chamadas penas alternativas, que evitam que o sujeito vá parar na cadeia. Um juiz compreensivo poderia me condenar a prestar serviços comunitários. Como sou professor, poderia ser condenado a fazer conferências pelo Brasil relatando minha história... O que acha, leitor? Topo?

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Entrevista com Bernard Vernier; novembro 2009



Por : Tâmara de Oliveira

Bernard Vernier é etnólogo e sociólogo, professor-pesquisador da Université Lyon II e está no Brasil entre novembro e dezembro de 2009 para uma série de conferências em três universidades : Universidade Federal de Sergipe, Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal do Paraná. Seus principais trabalhos são : La prohibition de l'inceste et la dénégation des rapports sociaux. Critique de Françoise Héritier. Paris : Harmattan, 2009; Le visage et le nom. Contribution à l'étude des systèmes de parenté, Paris : PUF, 1999 ; La genèse sociale des sentiments: aînés et cadets dans l'île grecque de Karpathos, Paris : Editions de l'Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, C.N.R.S 1991. Ele concedeu-me gentilmente uma entrevista que cedo, também gentilmente, aos leitores do Cazzo.

TO : Suas pesquisas são estudos monográficos comparativos sobre diferentes sociedades vilarejas, objetivando porém a construção de hipóteses de largo alcance – incluíndo sua análise estatística da sociedade francesa contemporânea, sobre a qual o senhor afirma que a percepção das semelhanças entre crianças e parentes, longe de ser determinada apenas pelas características objetivas das crianças, é inconscientemente também estruturada por certos princípios (ao mesmo tempo cognitivos, afetivos e práticos) relacionados ao sistema de parentesco. O senhor sustenta essa abordagem em nome da interdependência epistemo-metodológica entre a sociologia e a antropologia. Poderia nos explicar como o senhor pensa essa interdependência ?

BV : Pierre Bourdieu denunciou frequentemente o caráter artificial da separação entre a antropologia e a sociologia. Ele demonstrou isso amplamente pelo exemplo de seu próprio trabalho. Foi a partir de seus estudos kabyles (admirados pelos antropólogos) que ele forjou a teoria do habitus e da ação humana que está no centro de sua sociologia. Seu trabalho sobre o celibato no Béarn (região onde ele nasceu) foi saudado como uma obra-prima de análise sócio-antropológica, utilizando ao mesmo tempo métodos estatísticos e observação participante – considerados, à época, como métodos de duas disciplinas diferentes. Sabe-se que a História, desde o movimento dos Anais, tem sido fortemente marcada pela antropologia. Sobre Bourdieu, pode-se com certeza dizer que ele é o mais antropólogo dos sociólogos. Poderíamos das inúmeros exemplos disso. Darei dois : sua análise das funções das grandes escolas e de suas classes preparatórias, tomando emprestado muito da análise dos ritos de iniciação feita por Van Gennep ; igualmente, sua preocupação em levar em conta a gênese social das categorias cognitivas. Esquece-se muito isso, mas Bourdieu foi muito influenciado pelo estruturalismo de Lévi-Strauss. Aliás, ele reivindica para si mesmo um estruturalismo genético que, diferentemente de Lévi-Strauss, analisa a gênese social das estruturas (inclusive das estruturas mentais, como as categorias do julgamento professoral, etc.) Aluno de Bourdieu, eu interiorizei sem esforço essa complementaridade fecunda entre duas abordagens. Eu inclusive fiz o esforço de sociologizar a bela análise do sentido da honra de seus estudos kabyles, mostrando que eles mantinham-se sob uma certa relação culturalista e que o sentido da honra pode variar segundo características sociológicas. Na ilha graga de Kárpathos o sentido da honra não é o mesmo, segundo se é primogênito ou caçula, camponês rico ou pobre. Falando rapidamente, a separação entre a sociologia e a antropologia constitui um obstáculo real para o progresso das ciências sociais. O sociólogo não pode encontrar melhor meio para escapar da cegueira à qual tende a condená-lo a imersão na sociedade que ele estuda que o de operar um desvio pela análise de uma das sociedades que interessam aos etnólogos. Quanto a estes, não há melhor meio para dar às suas descobertas seu verdadeiro alcance e para se curar da ilusão nociva segundo a qual eles estudam sociedades e práticas radicalmente diferentes que o de reinvestir, as questões e as problemáticas que eles elaboraram durante o estudo de uma dessas sociedades ditas exóticas, sobre sua sociedade de origem.

TO : O senhor sustenta que seu estudo sobre a gênese social da percepção das semelhanças entre crianças e parentes é um prolongamento do trabalho durkheimiano de Bourdieu, sobre as relações entre as estruturas sociais e as estruturas mentais. Como o senhor descreveria as relações teóricas e metodológicas entre Durkheim e Bourdieu ?

BV : Eu não posso responder realmente a essa questão de história das ciências – que merece uma reflexão muito aprofundada em poucas frases. Parece-me que Bourdieu tinha a mesma confiança contagiosa que Durkheim na possibilidade da sociologia explicar o mundo – aí compreendendo o mundo mental e afetivo. Durkheim dizia mais ou menos o seguinte : não é a existência anterior dos sentimentos familiares que explica a família, é a família (sua estrutura) que explica os sentimentos familiares. Seria necessário examinar as relações entre a noção de habitus e a extrema importância dada por Durkheim à socialização. Como o Durkheim de O Suicídio, Bourdieu esforça-se em utilizar as estatísticas de maneira demonstrativa – e não somente ilustrativa. Mauss, o sobrinho de Durkheim, quando analisa o dom nas sociedades primitivas, parece-me ter anunciado a superação, desejada por Bourdieu, entre subjetivismo e objetivismo. Sua análise faz-se ao mesmo tempo em termos de estrutura (ele extrai a noção de troca) e de práticas (existem de fato dons e contra-dons que precisam ser explicados pelos interesses em jogo). Mas vocês sabem que Bourdieu se reclamava também de outros mestres (Marx, Weber, etc.)

TO : Em seu último livro (VERNIER, B. La prohibition de l'inceste. Critique de Françoise Héritier. Paris : l'Harmattan. 2009), apresentando a herdeira de Lévi-Strauss na França como aquela que reproduz, sobre o incesto, o mesmo erro universalista/substancialista que seu mestre cometeu sobre a teoria dos matrimônios, o senhor afirma que há uma razão metodológica e uma epistemológica que explicam esse erro. Poderia nos explicar isso ?

BV : Quando eu falo dos erros metodológicos e epistemológicos de Françoise Héritier, eu quero dizer o seguinte : essa antropóloga afirma muitas vezes, em seu livro As Duas Irmãs e Sua Mãe que é preciso « escutar o que as pessoas dizem ». É um excelente princípio metodológico (mas também epistemológico). Ora, cada vez que as pessoas ou os textos explicam as razões políticas (no sentido largo), econômicas ou simbólicas das proibições com uma aliada, Héritier as invalida ou as declara secundárias. A Bíblia diz explicitamente em O Levítico « Não tomarás a irmã de sua mulher para fazer dela uma rival ». Françoise Héritier evacua o que põe problema à sua teoria, traduzindo rival por co-esposa e dá como razão da proibição o contato entre idênticos (duas irmãs), lá onde a Bíblia fala explicitamente de uma proibição pela rivalidade gerada entre duas irmãs. O caso das Danaídes (tragédia grega), do qual eu falei, é exemplar : Héritier pula uma frase que não cola com sua teoria. No caso dos Hititas, ela utiliza um verseto, o 191, interpretando-o mal (mulher livre tornando-se mulher não casada), embora o texto seja claro : trata-se de uma mulher livre em oposição a uma mulher escrava. E ela não leva em consideração os versetos seguintes que contradizem sua teoria. Seu erro epistemológico maior é, com certeza, o de dissolver a antropologia social na antropologia do simbólico. Na importância sem medidas que ela confere ao simbólico, pode-se ler a expressão de uma espécie de etnocentrismo profissional, ligado ao professorado de alto nível. Sua colocação entre parênteses das relações sociais repete de maneira caricatural a posição estruturalista da autonomização dos objetos de estudo (a língüa de Saussure, a troca das mulheres de Lévi-Strauss, etc.). Ela pretende ultrapassar Lévi-Strauss, conservando-o. Entretanto, afirmando que a razão da proibição do incesto de primeiro tipo (com consanguíneos) deve ser buscada no incesto de segundo tipo (pois o que é proibido no primeiro tipo seria também um contato entre idênticos), ela toma por totalmente secundária a noção de função social que Lévi-Strauss tinha dado, seguindo Santo Agostinho, à proibição do incesto e que ele utilizou (apesar de seu desprezo às explicações funcionalistas), inclusive em suas construções mais abstratas, como a de seu átomo de parentesco ou do equilíbrio lógico (duas relações positivas e duas negativas), tendo por função o equilíbrio da estrutura social. O que eu lhe reprovo [a Héritier], em sua análise dos textos, é de ter negligenciado os dois imperativos categóricos da análise : a regra do co-texto (não se seleciona a parte do texto que nos é cômoda) e a do contexto (deve-se referir os textos à sociedade e às relações sociais que os produziram e que lhes dão sentido).

TO : O senhor faz uma relação entre a recepção positiva extraordinária da tese « unidemensional e autonomizada » de Héritier sobre o incesto e, a visibilidade contemporânea da homossexualidade. Poderia nos explicar essa relação ?

BV : A questão das relações homossexuais é uma das grandes questões sociais do momento. Ela encontra sua expressão na rua, com a Gay Pride. Adotar o ponto de vista dos dominados (as classes populares com Marx há muito tempo, as mulheres e os homossexuais mais recentemente), fez a sociologia progredir e esses temas estão, digamos assim, no « ar dos tempos ». Então não é completamente impossível que exista um pouco de fascinação pela questão homossexual na insistência dessa antropóloga em descobrir relações homossexuais escondidas (por exemplo, entre Édipo e seu pai), lá onde o senso comum via apenas relações heterossexuais (a relação sexual de Édipo com sua mãe).

TO : Para cientistas sociais brasileiros, sua argumentação sobre a posição acadêmica de Françoise Héritier pode surpreender, sugerindo que o estruturalismo lévi-straussiano ainda é hegemônico no campo etnológico francês. O Senhor acredita que se trata realmente de uma verdadeira hegemonia (epistemológica e metodológica) ou trata-se apenas de hegemonia « das redes », quer dizer, de uma herança dos territórios acadêmicos graças a relações estratégicas entre antigos estruturalistas e jovens pesquisadores – no fundo indiferentes às implicações teóricas do estruturalismo?

BV : Em grande parte, vocês têm razão. Ainda existe uma boa quantidade de pesquisadores estruturalistas. Mas a dominação do estruturalismo, declarada morta em Maio de 68, ainda existia institucionalmente de fato na França, até recentemente. Foi Françoise Héritier, discípula de Lévi-Strauss, quem lhe sucedeu como professor de antropologia no Collège de France. Lévi-Strauss elaborou sua teoria das diversas formas de troca de mulheres apoiando-se sobre a análise do que se chama as estruturas elementares do parentesco, onde existem cônjuges prescritos (sabe-se de antemão quem deve-se casar com tal tipo de parente ou membro de tal classe matrimonial). O livro O Exercício do Parentesco, aquele que tornou Françoise Héritier célebre, esforça-se em demonstrar que, como tinha suspeitado Lévi-Strauss, os sistemas de parentesco semi-complexos (que funcionam como o nosso, sob proibições e não sob obrigações, mas onde as proibições recaem sobre numerosos grupos de parentes), conhecem as mesmas formas de trocas que os sistemas elementares. Isso ampliava consideravelmente o campo de aplicação da teoria lévi-straussiana, porque os sistemas onde os cônjuges são realmente prescritos (e não preferenciais ) são raros. Dessa forma, o cargo do Collège de France foi ocupado até muito recentemente por uma estruturalista. Parece-me que isso tinha uma certa influência sobre o recrutamento dos pesquisadores do Laboratório de antropologia social – que era o mais importante da França. Isso também exercia efeitos sobre o recrutamento dos professores da EHESS, onde as relações de força eram entretanto mais complicadas devido a importância dos historiadores, mas o candidato antropólogo era aconselhado a fazer uma visita ao professor do Collège de France para se assegurar de seu apoio. Isso também exercia influência sobre o conteúdo da principal revista francesa de antropologia, L’Homme. Darei apenas meu próprio exemplo : essa revista recusou publicar o artigo crítico que eu enviei para explicar que a teoria de Françoise Héritier dava uma importância considerável à relação homossexual, sem se perguntar em nenhum momento se as sociedades consideravam essa relação como uma relação entre idênticos. Trata-se de detalhes significativos. Também quando eu publiquei meu livro sobre Kárpathos, La genèse sociale des sentiments en 1991, eu quis mencionar na apresentação que meu trabalho criticava o estruturalismo lévi-straussiano. O livro não foi censurado de maneira alguma, mas pediram-me encarecidamente para retirar essa menção « indelicada ». Mas isso refere-se à história das ciências sociais e o que eu digo é apenas uma impressão pessoal.
TO : O senhor seria um bourdieusiano “pur et dur”?

BV : Pierre Bourdieu foi um dos grandes sociólogos de seu tempo. Para mim, ele está um pouco para a sociologia como Proust está para a literatura. Um encontro raro entre uma grande sensibilidade e uma potente vontade científica. Mas não se deve jamais continuar prisioneiro de seus mestres. Para um discípulo, a crítica se faz principalmente de duas maneiras. Pela leitura intensiva da obra, permitindo reparar as contradições lógicas ; pelo trabalho de campo que às vezes traz um desmentido à teoria. Às vezes é o próprio trabalho de campo que, contradizendo certos aspectos da teoria, permite notar as contradições lógicas – foi o que aconteceu comigo com a noção de estratégia. Eu utilizei bastante essa noção em meu trabalho sobre Kárpathos. Mas eu vi claramente que os karpathiotas desenvolviam estratégias conscientes – enquanto Bourdieu falava mais frequentemente em estratégias inconscientes.

TO : Muito obrigada por ter estado conosco na Universidade Federal de Sergipe e por esta entrevista para os colaboradores do Cazzo. Esperamos seu retorno para falar mais especificamente da sociologia de Pierre Bourdieu.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Sociologia Musical II

Nós do PPGS levamos nosso trabalho muito a sério. Tanto que qualquer tarefa envolve pesquisas profundíssimas, como a que Paulo Marcondes vem desenvolvendo sobre o positivismo a fim de escrever a letra do Pancadão do Durkheim. Vejam só a pérola que ele nos enviou, como resultado preliminar de suas investigações sociológicas:




Positivismo
Composição: Noel Rosa / Orestes Barbosa

A verdade, meu amor, mora num poço
É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz
E também faleceu por ter pescoço
O autor da guilhotina de Paris

A verdade, meu amor, mora num poço
É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz
E também faleceu por ter pescoço
O infeliz autor da guilhotina de Paris

Vai, orgulhosa, querida
Mas aceita esta lição:
No câmbio incerto da vida
A libra sempre é o coração

O amor vem por princípio, a ordem por base
O progresso é que deve vir por fim
Desprezastes esta lei de Augusto Comte
E fostes ser feliz longe de mim

O amor vem por princípio, a ordem por base
O progresso é que deve vir por fim
Desprezastes esta lei de Augusto Comte
E fostes ser feliz longe de mim

Vai, coração que não vibra
Com teu juro exorbitante
Transformar mais outra libra
Em dívida flutuante
A intriga nasce num café pequeno
Que se toma pra ver quem vai pagar
Para não sentir mais o teu veneno
Foi que eu já resolvi me envenenar

domingo, 13 de setembro de 2009

Sociologia Musical

No último Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Sociais, em João Pessoa, presenciei um momento histórico: Nelson Tomazi (UEL) requisitou a Paulo Marcondes Soares (UFPE), nosso sociólogo da arte e letrista de plantão, que fizesse uma letra para uma música sobre Durkheim. Em outro momento histórico, numa reunião com o grupo de Estudos Africanos do PPGS na casa de Eliane Veras, na última sexta feira, presenciamos a concepção do Pancadão do Durkheim que, esperamos, esteja sendo devidamente gestado por Paulo neste exato momento. A idéia é fechar o círculo musical sobre os três porquinhos, iniciativa de Sérgio Silva (Unicamp) e Gabriel Cohn (USP). Abaixo, "Critica e Resignação na Manhã de Carnaval", com música de Sérgio Silva e letra de Gabriel Cohn, e o mundialmente famoso "Samba da Mais Valia" (letra e música de Sérgio Silva) – com legendas em francês para contemplar a ala Radical Chic do Cazzo. Olha o tamanho da responsabilidade de Paulo Marcondes, tadinho.

Cynthia




quarta-feira, 6 de maio de 2009

OUTROSSIM É A PUTA QUE O PARIU! O humor no mau humor de Graciliano Ramos (I)



Luciano Oliveira . Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPE. Professor de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito do Recife. E-mail: jlgo@hotlink.com.br


O impropério que dá título a este ensaio faz parte do vasto anedotário envolvendo Graciliano Ramos e seu antológico pavio curto, capaz de perpetrar grosserias e palavrões contra tudo que lhe parecesse inautêntico, bajulatório ou simplesmente estúpido. Provavelmente é o mais conhecido deles. Faz parte de minhas lembranças de um longínquo curso colegial, quando estava descobrindo a literatura brasileira. Teria sido contado pelo professor? Teria ele dito o palavrão em classe ou substituído-o por um “senhora sua mãe”? Não lembro.

A nebulosidade da lembrança adequa-se bem à própria atmosfera incerta de versões que existem sobre o episódio. O que geralmente se conta é que Graciliano, trabalhando como revisor num jornal, teria embatucado ao deparar-se com a palavra “outrossim” usada por um repórter na matéria que lhe entregara para a redação final. Intrigado – e já se irritando... – com o uso daquele termo típico de ofício num texto jornalístico, teria resmungado e finalmente exclamado: “Outrossim é a puta que o pariu!” – riscando com raiva o termo impróprio. Verdade? Lenda? A crer-se no seu biógrafo, o episódio seria verdadeiro e teria ocorrido na redação do Correio da Manhã, tendo sido testemunhado por Franklin de Oliveira:

“Uma noite, Graciliano interromperia a leitura de um original, ergueria a cabeça, parecendo perdido no vácuo. Súbito, rugiria:
– Outrossim... Outrossim é a puta que o pariu!” [1]

Estranhamente, nessa mesma biografia, com ligeiras variações, o autor conta outra versão dessa mesma história ─ a qual, já agora, teria se passado na redação da revista Cultura Política mantida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo, onde Graciliano era também revisor. Eis a segunda versão:

“O poeta Lêdo Ivo testemunharia uma de suas explosões de impaciência diante da burrice alheia. Na ânsia de bajular, o autor do artigo fora abundante em conjunções adversativas: ‘Mas, no entanto, contudo, todavia, o Estado Nacional...’ Graciliano não se conteria:
─ Mas, no entanto, contudo, todavia... é a puta que o pariu!” [2]

O mais curioso vem agora: Lêdo Ivo, que teria testemunhado e contado a versão acima, conta uma outra! O espírito do impropério é o mesmo, mas o desfecho da história é diferente:

“O autor, no auge do seu entusiasmo pelo regime (como se dizia então) e pela figura providencial de Vargas, assim começava uma frase: ‘Mas, no entanto, contudo, todavia, o Estado Nacional...’ Diante dessa magnífica sucessão de conjunções, Graciliano Ramos não se conteve. Fez uma alusão bastante desprimorosa à genitora daquele cientista político e disse-me baixando a voz: ‘Vou deixar só uma’”. [3]

Que episódio teria finalmente ocorrido? Ou de um – pois afinal “quem conta um conto, aumenta um ponto” – nasceu o outro? A dúvida, se de um lado põe em xeque a veracidade dessa e de outras histórias envolvendo o Velho Graça, de outro atesta a existência de um Graciliano Ramos enquanto figura mitológica ─ um tipo, em suma. Como sempre acontece nesses casos, o tipo é urdido tanto de fatos quanto de suas versões, a ponto de muitas vezes não conseguirmos mais desenrolar o emaranhado de fios e encontrar o seu começo. Veja-se esse outro exemplo. Outra vez o seu biógrafo reporta um diálogo que ele teria tido com José Lins do Rego a respeito do custo de vida. “Desse jeito, vamos acabar pedindo esmolas” – teria dito José Lins. “A quem?” – teria fulminado Graciliano [4]. Ora, num depoimento a respeito do Velho Graça dado por Otto Maria Carpeaux, ele refere-se a essa mesmíssima história, aduzindo um comentário sobre uma versão em que ele, e não José Lins, figurava como o interlocutor de Graciliano ─ negando a versão: “não sei por que me atribuíram o papel de ter sido o parceiro do diálogo.” [5]. É o caso de se perguntar: com quem finalmente a história teria ocorrido? Ou mesmo: teria de fato ocorrido? A dúvida vai por conta de que, para complicar ainda mais o imbroglio, história igual a essa é contada por ninguém menos que o próprio Graciliano! Numa das crônicas que escreveu para a revista Cultura Política sobre tipos pitorescos do interior das Alagoas, ao referir-se aos “balcões das vilas” onde “sujeitos ociosos” passam os dias conversando lorotas, Graciliano reporta um diálogo que segundo ele teria sido inventado por um seu amigo de infância, Pedro Mota Lima:

“– Seu compadre, se esta miséria continuar, nós acabamos pedindo esmola.
– A quem?” [6]

A difusão a torto e a direito desse tipo que Graciliano sem dúvida encarnou termina produzindo uma rabugice de anedota capaz de se reproduzir por conta própria, dando margem a novas histórias que enriquecem o anedotário do Velho Graça, independentemente de terem ocorrido ou não. Eventualmente, é-lhe imputada a paternidade de epigramas que outros cometeram. Um exemplo disso – surpreendente pela sua autoria – está no Prefácio escrito para o livro de Dênis de Moraes por um intelectual da importância de Carlos Nelson Coutinho. Lá pelas tantas, escreve ele: “Contam que, quando lhe pediam a opinião sobre um livro, Graciliano respondia sempre, com sua habitual causticidade: ‘Não li e não gostei’” [7]. Surpreendente em primeiro lugar porque, como é relativamente sabido, essa é uma das boutades mais célebres não de Graciliano, mas de um autor que, para além da inegável importância que teve na modernização da arte brasileira no século XX, notabilizou-se também por ser um célebre fazedor de piadas, muitas delas ferinas e até cruéis: Oswald de Andrade [8]. E em segundo lugar, mas não menos importante, porque a atitude atribuída a Graciliano, ainda que coerente com o tipo rabugento construído em torno de sua personalidade, de forma alguma seria compatível com o Graciliano real que, sem chegar a possuir o espírito missionário de um Mário de Andrade, foi sempre um atencioso leitor de autores desconhecidos que lhe enviavam originais em busca de reconhecimento. Mais de uma vez o Velho Graça queixou-se do tempo que perdia lendo obscuros provincianos em busca da glória literária:

“– É maçada. Recebo dezenas de originais. São principiantes, geralmente dos Estados, que desejam, é claro, alguns elogios. Já me aconteceu receber, na mesma semana, originais do Piauí e de Goiás. Eu devia fazer como José Lins [do Rego]: afirmar, sem leitura, que tudo é magnífico.” [9]

Por essas e outras ─ muitas outras ─, criou-se a figura de um Graciliano Ramos protagonizando verdadeiros “causos” que provocam riso. Não apesar da rabugice, mas justamente por causa dela. O fenômeno, embora pouco teorizado, é relativamente conhecido. Pessoas enfezadas, distribuindo impropérios muitas vezes por tolices, costumam provocar reações desse tipo. Há uma espécie de humor embutido no mau humor, e o fenômeno tem várias vertentes, indo desde a explosão de palavrões ─ que também causa riso ─ de pessoas que são vítimas de trotes em programas radiofônicos de grande audiência popular, até o descontrole de personagens literários célebres como, entre nós, o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, impagável personagem do Fogo Morto de José Lins do Rêgo que a meninada do Pilar atormentava gritando seu apelido quando ela passava pelas estradas:

─ Vitorino Papa-Rabo!
Ao que ele respondia irado, de chicote na mão espumando de raiva contra o vento:
─ É a mãe!

Quem, lendo Fogo Morto, não riu com essas passagens? Ora, o fenômeno é múltiplo, e Vitorino Papa-Rabo tem companhias ilustres. Há também algo do seu destempero ─ certamente num nível bem diferenciado de elaboração ─ nas frases demolidoras de famosos mal humorados presentes na cultura moderna, e que garantem o sucesso de tantas antologias reunindo seus melhores momentos. A cultura de massa americana ─ a de boa qualidade! ─ contém vários nomes de notórios ranzinzas que assestam suas línguas de trapo contra o lado “jeca” dos seus compatriotas. São exemplos conhecidos o crítico de arte George Jean Nathan [10], o ator W. C Fields [11], o jornalista H. L. Mencken [12] ─ e assim por diante ─, todos donos de uma pena ao mesmo tempo erudita e venenosa, capaz de provocar estrago e... riso! [13]

Causa assim espécie que o Graciliano escritor, cujo texto também está cheio de imprecações, não seja visto como um autor a quem se possa atribuir a faculdade do humor. Ausência notável, tanto mais que o surgimento do Velho Graça para o mundo das letras se deu pela publicação dos famosos Relatórios que elaborou enquanto prefeito de Palmeira dos Índios ─ o primeiro de 1929, o segundo de 1930 ─, nos quais a irritação de um administrador honesto com os desmandos que encontrou transmuda-se rapidamente em notas de humor. Veja-se, a título de exemplo, o trecho delicioso em que ele ironiza o costume de enviar inúteis telegramas ao governador do Estado a propósito de qualquer coisa e seu contrário:

“Porque se derrubou a Bastilha ─ um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua ─ um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela ─ um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1559 D. Pero Sardinha foi comido pelos caetés.” [14]

É curiosa essa menção aos caetés que comeram o bispo. Ela verbera, certamente, o romance de estréia de Graciliano, Caetés, ainda inédito à época da redação dos Relatórios, mas já pronto na gaveta. Quando do aparecimento do romance, em 1933, não escapou a um crítico do quilate de Agripino Grieco a notação bem humorada do livro. Numa entusiasmada resenha de 1934, Grieco observa que o seu autor ─ “se não estou equivocado” ─ é o mesmo que “foi prefeito, por sinal que prefeito pouco panglossiano quanto aos frutos da própria administração, aludindo com um desdém meio swiftiano à sua municipalidade e respectivos munícipes” [15]. Grieco não foi o único a ressaltar a presença de elementos cômicos em Caetés. Escrevendo nos anos 50, quando toda a obra romanesca de Graciliano já fora publicada, o crítico paraibano Gama e Melo realça esse aspecto, já aí, porém, para sustentar a hipótese de que haveria dois Graciliano: o sujeito apesar de tudo integrado a Palmeira dos Índios, quando produziu Caetés, e o errante Graciliano posterior, quando escreveu o resto ─ e na verdade o essencial ─ de sua obra. Teria se operado aí uma ruptura importante: “depois de Caetés, o romancista perdeu uma de suas qualidades melhores [...], qualidade que reveste todo o romance de Palmeira dos Índios ─ o humorismo.” Para o crítico, daí em diante Graciliano vai “entrar no território absoluto das sombras, nos mundos de desencanto e terror, sem o arejamento humorístico que pusera em Caetés.” [16]

A tese é discutível. Caetés não é todo “humor sadio”, como sustenta Gama e Melo, e a obra posterior de Graciliano não é desprovida de elementos humorísticos. Insalubre, talvez, mas mesmo assim, humor. Álvaro Lins, aliás, também aceita a existência de humor no Graciliano posterior a Caetés, numa interessante aproximação, pela via do humour ─ grafado assim ─ entre o autor de São Bernardo e o de Dom Casmurro: enquanto o humour de Machado seria “destruidor, mas sereno”, o de Graciliano seria “sombrio e áspero” ─ além de ser, como acrescenta Lins, “muito raro” [17]. É discutível também essa raridade, ainda que reconheça que devemos qualificar a que tipo de humor (ou seria humour?) estamos nos referindo. Lins chamou-o de áspero. A designação pode convir. Que seja, então. Esse tipo recobriria o humor do enfezado, do rabugento a que me referia no começo. Se, afinal, rimos de um impropério do Graciliano revisor de jornais, como rimos da cólera desmedida de Vitorino Papa-Rabo, podemos também, pela enorme desproporção da coisa, rir dos vários despautérios de Luís da Silva ─ o também enfezado narrador de Angústia ─, como na cena em que ele, irritando-se com uma honesta “mulher da vida” que não quer cobrar a companhia que lhe fez porque ele já lhe pagou o jantar, deixa-a estupefata com a sua reação: “A senhora é relógio para trabalhar de graça?”

Humor áspero, sem dúvida. Eventualmente, injusto. Nesse caso, por exemplo, o objeto da cólera desmedida de Luís da Silva não é nenhum moleque treloso do Pilar, nem um jornalista bajulador do governo, mas uma pobre mulher vítima de uma estrutura social iníqua da qual ela nem tem consciência. De um lado, nos sentimos mal com a grosseria aparentemente gratuita que Luís lhe despeja; de outro, a própria grosseria, pelo seu inusitado, é capaz de provocar em nós um riso embaraçoso. Por quê?

Inútil procurar uma menção direta a esse tipo de comicidade na mais célebre das teorias sobre o assunto, a do filósofo francês Henri Bergson [18]. O seu argumento, bem conhecido, é que o riso seria uma sanção social a um esclerosamento de comportamentos. Um homem, correndo pela rua, tropeça e cai. Os transeuntes riem. Por quê? Porque, segundo o autor, a sociedade reprova “toda rigidez do caráter, do espírito e mesmo do corpo” [19], pois tal rigidez conspira contra a maleabilidade que a sociedade exige de seus membros para funcionar bem. É visível nessa teoria a influência da sociologia de Durkheim, para quem os fenômenos sociais, na medida mesma em que existem, cumprem alguma função ─ até o crime, que o sociólogo francês, numa afirmação escandalosa para a época, considerava um fato social “normal”. O riso cumpriria, na teoria de Bergson, uma função análoga à que a pena cumpriria na teoria do crime de Durkheim: sancionar a infração à regra, contribuindo com isso para o avivamento da consciência coletiva. Semelhantemente, o riso sancionaria a rigidez de comportamentos, contribuindo assim para o avivamento da flexibilidade necessária ao bom funcionamento da sociedade.

(continua)