quarta-feira, 6 de maio de 2009

OUTROSSIM É A PUTA QUE O PARIU! O humor no mau humor de Graciliano Ramos (I)



Luciano Oliveira . Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPE. Professor de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito do Recife. E-mail: jlgo@hotlink.com.br


O impropério que dá título a este ensaio faz parte do vasto anedotário envolvendo Graciliano Ramos e seu antológico pavio curto, capaz de perpetrar grosserias e palavrões contra tudo que lhe parecesse inautêntico, bajulatório ou simplesmente estúpido. Provavelmente é o mais conhecido deles. Faz parte de minhas lembranças de um longínquo curso colegial, quando estava descobrindo a literatura brasileira. Teria sido contado pelo professor? Teria ele dito o palavrão em classe ou substituído-o por um “senhora sua mãe”? Não lembro.

A nebulosidade da lembrança adequa-se bem à própria atmosfera incerta de versões que existem sobre o episódio. O que geralmente se conta é que Graciliano, trabalhando como revisor num jornal, teria embatucado ao deparar-se com a palavra “outrossim” usada por um repórter na matéria que lhe entregara para a redação final. Intrigado – e já se irritando... – com o uso daquele termo típico de ofício num texto jornalístico, teria resmungado e finalmente exclamado: “Outrossim é a puta que o pariu!” – riscando com raiva o termo impróprio. Verdade? Lenda? A crer-se no seu biógrafo, o episódio seria verdadeiro e teria ocorrido na redação do Correio da Manhã, tendo sido testemunhado por Franklin de Oliveira:

“Uma noite, Graciliano interromperia a leitura de um original, ergueria a cabeça, parecendo perdido no vácuo. Súbito, rugiria:
– Outrossim... Outrossim é a puta que o pariu!” [1]

Estranhamente, nessa mesma biografia, com ligeiras variações, o autor conta outra versão dessa mesma história ─ a qual, já agora, teria se passado na redação da revista Cultura Política mantida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo, onde Graciliano era também revisor. Eis a segunda versão:

“O poeta Lêdo Ivo testemunharia uma de suas explosões de impaciência diante da burrice alheia. Na ânsia de bajular, o autor do artigo fora abundante em conjunções adversativas: ‘Mas, no entanto, contudo, todavia, o Estado Nacional...’ Graciliano não se conteria:
─ Mas, no entanto, contudo, todavia... é a puta que o pariu!” [2]

O mais curioso vem agora: Lêdo Ivo, que teria testemunhado e contado a versão acima, conta uma outra! O espírito do impropério é o mesmo, mas o desfecho da história é diferente:

“O autor, no auge do seu entusiasmo pelo regime (como se dizia então) e pela figura providencial de Vargas, assim começava uma frase: ‘Mas, no entanto, contudo, todavia, o Estado Nacional...’ Diante dessa magnífica sucessão de conjunções, Graciliano Ramos não se conteve. Fez uma alusão bastante desprimorosa à genitora daquele cientista político e disse-me baixando a voz: ‘Vou deixar só uma’”. [3]

Que episódio teria finalmente ocorrido? Ou de um – pois afinal “quem conta um conto, aumenta um ponto” – nasceu o outro? A dúvida, se de um lado põe em xeque a veracidade dessa e de outras histórias envolvendo o Velho Graça, de outro atesta a existência de um Graciliano Ramos enquanto figura mitológica ─ um tipo, em suma. Como sempre acontece nesses casos, o tipo é urdido tanto de fatos quanto de suas versões, a ponto de muitas vezes não conseguirmos mais desenrolar o emaranhado de fios e encontrar o seu começo. Veja-se esse outro exemplo. Outra vez o seu biógrafo reporta um diálogo que ele teria tido com José Lins do Rego a respeito do custo de vida. “Desse jeito, vamos acabar pedindo esmolas” – teria dito José Lins. “A quem?” – teria fulminado Graciliano [4]. Ora, num depoimento a respeito do Velho Graça dado por Otto Maria Carpeaux, ele refere-se a essa mesmíssima história, aduzindo um comentário sobre uma versão em que ele, e não José Lins, figurava como o interlocutor de Graciliano ─ negando a versão: “não sei por que me atribuíram o papel de ter sido o parceiro do diálogo.” [5]. É o caso de se perguntar: com quem finalmente a história teria ocorrido? Ou mesmo: teria de fato ocorrido? A dúvida vai por conta de que, para complicar ainda mais o imbroglio, história igual a essa é contada por ninguém menos que o próprio Graciliano! Numa das crônicas que escreveu para a revista Cultura Política sobre tipos pitorescos do interior das Alagoas, ao referir-se aos “balcões das vilas” onde “sujeitos ociosos” passam os dias conversando lorotas, Graciliano reporta um diálogo que segundo ele teria sido inventado por um seu amigo de infância, Pedro Mota Lima:

“– Seu compadre, se esta miséria continuar, nós acabamos pedindo esmola.
– A quem?” [6]

A difusão a torto e a direito desse tipo que Graciliano sem dúvida encarnou termina produzindo uma rabugice de anedota capaz de se reproduzir por conta própria, dando margem a novas histórias que enriquecem o anedotário do Velho Graça, independentemente de terem ocorrido ou não. Eventualmente, é-lhe imputada a paternidade de epigramas que outros cometeram. Um exemplo disso – surpreendente pela sua autoria – está no Prefácio escrito para o livro de Dênis de Moraes por um intelectual da importância de Carlos Nelson Coutinho. Lá pelas tantas, escreve ele: “Contam que, quando lhe pediam a opinião sobre um livro, Graciliano respondia sempre, com sua habitual causticidade: ‘Não li e não gostei’” [7]. Surpreendente em primeiro lugar porque, como é relativamente sabido, essa é uma das boutades mais célebres não de Graciliano, mas de um autor que, para além da inegável importância que teve na modernização da arte brasileira no século XX, notabilizou-se também por ser um célebre fazedor de piadas, muitas delas ferinas e até cruéis: Oswald de Andrade [8]. E em segundo lugar, mas não menos importante, porque a atitude atribuída a Graciliano, ainda que coerente com o tipo rabugento construído em torno de sua personalidade, de forma alguma seria compatível com o Graciliano real que, sem chegar a possuir o espírito missionário de um Mário de Andrade, foi sempre um atencioso leitor de autores desconhecidos que lhe enviavam originais em busca de reconhecimento. Mais de uma vez o Velho Graça queixou-se do tempo que perdia lendo obscuros provincianos em busca da glória literária:

“– É maçada. Recebo dezenas de originais. São principiantes, geralmente dos Estados, que desejam, é claro, alguns elogios. Já me aconteceu receber, na mesma semana, originais do Piauí e de Goiás. Eu devia fazer como José Lins [do Rego]: afirmar, sem leitura, que tudo é magnífico.” [9]

Por essas e outras ─ muitas outras ─, criou-se a figura de um Graciliano Ramos protagonizando verdadeiros “causos” que provocam riso. Não apesar da rabugice, mas justamente por causa dela. O fenômeno, embora pouco teorizado, é relativamente conhecido. Pessoas enfezadas, distribuindo impropérios muitas vezes por tolices, costumam provocar reações desse tipo. Há uma espécie de humor embutido no mau humor, e o fenômeno tem várias vertentes, indo desde a explosão de palavrões ─ que também causa riso ─ de pessoas que são vítimas de trotes em programas radiofônicos de grande audiência popular, até o descontrole de personagens literários célebres como, entre nós, o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, impagável personagem do Fogo Morto de José Lins do Rêgo que a meninada do Pilar atormentava gritando seu apelido quando ela passava pelas estradas:

─ Vitorino Papa-Rabo!
Ao que ele respondia irado, de chicote na mão espumando de raiva contra o vento:
─ É a mãe!

Quem, lendo Fogo Morto, não riu com essas passagens? Ora, o fenômeno é múltiplo, e Vitorino Papa-Rabo tem companhias ilustres. Há também algo do seu destempero ─ certamente num nível bem diferenciado de elaboração ─ nas frases demolidoras de famosos mal humorados presentes na cultura moderna, e que garantem o sucesso de tantas antologias reunindo seus melhores momentos. A cultura de massa americana ─ a de boa qualidade! ─ contém vários nomes de notórios ranzinzas que assestam suas línguas de trapo contra o lado “jeca” dos seus compatriotas. São exemplos conhecidos o crítico de arte George Jean Nathan [10], o ator W. C Fields [11], o jornalista H. L. Mencken [12] ─ e assim por diante ─, todos donos de uma pena ao mesmo tempo erudita e venenosa, capaz de provocar estrago e... riso! [13]

Causa assim espécie que o Graciliano escritor, cujo texto também está cheio de imprecações, não seja visto como um autor a quem se possa atribuir a faculdade do humor. Ausência notável, tanto mais que o surgimento do Velho Graça para o mundo das letras se deu pela publicação dos famosos Relatórios que elaborou enquanto prefeito de Palmeira dos Índios ─ o primeiro de 1929, o segundo de 1930 ─, nos quais a irritação de um administrador honesto com os desmandos que encontrou transmuda-se rapidamente em notas de humor. Veja-se, a título de exemplo, o trecho delicioso em que ele ironiza o costume de enviar inúteis telegramas ao governador do Estado a propósito de qualquer coisa e seu contrário:

“Porque se derrubou a Bastilha ─ um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua ─ um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela ─ um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1559 D. Pero Sardinha foi comido pelos caetés.” [14]

É curiosa essa menção aos caetés que comeram o bispo. Ela verbera, certamente, o romance de estréia de Graciliano, Caetés, ainda inédito à época da redação dos Relatórios, mas já pronto na gaveta. Quando do aparecimento do romance, em 1933, não escapou a um crítico do quilate de Agripino Grieco a notação bem humorada do livro. Numa entusiasmada resenha de 1934, Grieco observa que o seu autor ─ “se não estou equivocado” ─ é o mesmo que “foi prefeito, por sinal que prefeito pouco panglossiano quanto aos frutos da própria administração, aludindo com um desdém meio swiftiano à sua municipalidade e respectivos munícipes” [15]. Grieco não foi o único a ressaltar a presença de elementos cômicos em Caetés. Escrevendo nos anos 50, quando toda a obra romanesca de Graciliano já fora publicada, o crítico paraibano Gama e Melo realça esse aspecto, já aí, porém, para sustentar a hipótese de que haveria dois Graciliano: o sujeito apesar de tudo integrado a Palmeira dos Índios, quando produziu Caetés, e o errante Graciliano posterior, quando escreveu o resto ─ e na verdade o essencial ─ de sua obra. Teria se operado aí uma ruptura importante: “depois de Caetés, o romancista perdeu uma de suas qualidades melhores [...], qualidade que reveste todo o romance de Palmeira dos Índios ─ o humorismo.” Para o crítico, daí em diante Graciliano vai “entrar no território absoluto das sombras, nos mundos de desencanto e terror, sem o arejamento humorístico que pusera em Caetés.” [16]

A tese é discutível. Caetés não é todo “humor sadio”, como sustenta Gama e Melo, e a obra posterior de Graciliano não é desprovida de elementos humorísticos. Insalubre, talvez, mas mesmo assim, humor. Álvaro Lins, aliás, também aceita a existência de humor no Graciliano posterior a Caetés, numa interessante aproximação, pela via do humour ─ grafado assim ─ entre o autor de São Bernardo e o de Dom Casmurro: enquanto o humour de Machado seria “destruidor, mas sereno”, o de Graciliano seria “sombrio e áspero” ─ além de ser, como acrescenta Lins, “muito raro” [17]. É discutível também essa raridade, ainda que reconheça que devemos qualificar a que tipo de humor (ou seria humour?) estamos nos referindo. Lins chamou-o de áspero. A designação pode convir. Que seja, então. Esse tipo recobriria o humor do enfezado, do rabugento a que me referia no começo. Se, afinal, rimos de um impropério do Graciliano revisor de jornais, como rimos da cólera desmedida de Vitorino Papa-Rabo, podemos também, pela enorme desproporção da coisa, rir dos vários despautérios de Luís da Silva ─ o também enfezado narrador de Angústia ─, como na cena em que ele, irritando-se com uma honesta “mulher da vida” que não quer cobrar a companhia que lhe fez porque ele já lhe pagou o jantar, deixa-a estupefata com a sua reação: “A senhora é relógio para trabalhar de graça?”

Humor áspero, sem dúvida. Eventualmente, injusto. Nesse caso, por exemplo, o objeto da cólera desmedida de Luís da Silva não é nenhum moleque treloso do Pilar, nem um jornalista bajulador do governo, mas uma pobre mulher vítima de uma estrutura social iníqua da qual ela nem tem consciência. De um lado, nos sentimos mal com a grosseria aparentemente gratuita que Luís lhe despeja; de outro, a própria grosseria, pelo seu inusitado, é capaz de provocar em nós um riso embaraçoso. Por quê?

Inútil procurar uma menção direta a esse tipo de comicidade na mais célebre das teorias sobre o assunto, a do filósofo francês Henri Bergson [18]. O seu argumento, bem conhecido, é que o riso seria uma sanção social a um esclerosamento de comportamentos. Um homem, correndo pela rua, tropeça e cai. Os transeuntes riem. Por quê? Porque, segundo o autor, a sociedade reprova “toda rigidez do caráter, do espírito e mesmo do corpo” [19], pois tal rigidez conspira contra a maleabilidade que a sociedade exige de seus membros para funcionar bem. É visível nessa teoria a influência da sociologia de Durkheim, para quem os fenômenos sociais, na medida mesma em que existem, cumprem alguma função ─ até o crime, que o sociólogo francês, numa afirmação escandalosa para a época, considerava um fato social “normal”. O riso cumpriria, na teoria de Bergson, uma função análoga à que a pena cumpriria na teoria do crime de Durkheim: sancionar a infração à regra, contribuindo com isso para o avivamento da consciência coletiva. Semelhantemente, o riso sancionaria a rigidez de comportamentos, contribuindo assim para o avivamento da flexibilidade necessária ao bom funcionamento da sociedade.

(continua)

Um comentário:

Le Cazzo disse...

Graciliano Ramos.Conheço pouco, para meu infortúnio e vergonha. Mas não é aquele de Alexandre e Outros Heróis? Na minha adolescência, adorava esse livro - e odiava que Chico Anísio tivesse feito um genérico dele (lembra disso, Luciano). Jonatas