domingo, 10 de maio de 2009

A Cora Semiótica ou Em Redor do Buraco, Tudo é Beira


A conversão de Ariano Suassuna ao Pós-Estruturalismo

Ontem foi uma data histórica: o grupo de teoria e epistemologia feminista, composto por professoras e alun@s da UFPE e por pesquisadoras da ONG SOS Corpo, reuniu-se pela primeira vez, dando início a um estimulante debate intelectual sobre o estado da arte nessa área.

Iniciamos nossas discussões a partir de um texto de Terry Lovell (1996) que consiste numa revisão geral das principais teorias feministas, mostrando as tensões entre elas. Em uma das passagens mais difíceis, acerca da relação entre feminismo e psicanálise, deparamo-nos com o conceito de Cora Semiótica, de Julia Kristeva. Este conceito deriva da apropriação e reformulação da distinção lacaniana entre o imaginário e o simbólico que, como sabemos, marca a emergência do sujeito (sexuado) para o psicanalista francês (ô inferno esses pós-estruturalistas!).

De forma bastante resumida, o argumento lacaniano consiste na idéia de que a subjetividade e a identidade emergem por meio da ausência, da falta, da separação e da proibição. Na fase pré-edipiana, a criança ainda não opera uma distinção entre ela própria, sua mãe e o mundo ao seu redor. Apesar disso, em torno dos seis meses de idade, naquilo que Lacan denomina de “fase do espelho”, a criança já é capaz de identificar sua imagem refletida – o estágio inicial de formação do ego por meio da objetivação ou alienação (no que poderíamos considerar o sentido hegeliano do termo). Mas dado que ainda lhe falta coordenação motora, a imagem refletida contrasta fortemente com seu corpo descoordenado, prestes a se fragmentar a qualquer instante. A tensão entre o ego incipiente e sua imagem especular é “resolvida” quando, ao voltar o olhar para sua mãe, a criança, que ainda a percebe como extensão de si própria, consegue restabelecer sua imagem como um todo coerente. A este estágio Lacan se refere como o imaginário (embora mais tarde, em sua obra, o imaginário não seja mais considerado um simples estágio no desenvolvimento infantil, mas uma instância psíquica constitutiva e estruturante da subjetividade).

A subjetividade só se firma, de fato, quando a criança deixa a ordem do imaginário para entrar na ordem do simbólico, ou seja, da representação e da linguagem. Isso ocorre porque, a fim de compensar as ausências ocasionais da mãe, a criança começa a desenvolver suas primeiras representações. Assim, o desejo pela mãe, ocasionado pela perda e por suas ausências eventuais, “expulsam” a criança da ordem do imaginário, inserindo-a na ordem do simbólico. Mas a entrada definitiva na ordem do simbólico só ocorre à medida que um terceiro, o pai, é introduzido na relação da criança com a mãe, proibindo seu desejo por ela.

Esta proibição é acompanhada, na imaginação infantil, pelo medo da castração (não confundir com privação do pênis), isto é, da ausência do falo. Ao contrário de Freud, para quem o pênis aparece como um objeto real, o falo, para Lacan, assume uma dimensão simbólica, isto é, trata-se de um pênis que se transformou num significante: algo que “marca” a ausência do pênis (daí a idéia de que o falo não existe na realidade: trata-se de um “objeto negativo”, sempre descrito em termos de uma “falta” ou ausência, mas que exerce um papel fundamental na realidade do sujeito).

Devido ao medo da castração, o menino, num desejo de conservar seu pênis, afasta-se da mãe, identificando-se com seu pai ao introjetar a proibição de seu desejo por ela e, com isso, as leis sociais. Isso marca o fim da fase edipiana nos meninos. A menina, por sua vez, por temer que o pior já aconteceu, afasta-se da mãe, aproximando-se do pai, adentrando assim em sua fase edipiana no ponto em que o menino deixa a sua (Lovell, 1996).

Ao caracterizar o falo como um objeto negativo, Lacan pode pensar a masculinidade como uma “função universal” que se funda na ausência do falo (castração) e a feminilidade como um não-universal (um particular) que não admite ausência. Isso porque, num sentido estrito, no Real (fora do simbólico), não falta nada à mulher: ao invés de não-possuir um pênis, ela tem uma vagina. É apenas quando submetido à ordem simbólica que as anatomias masculina e feminina podem ser comparadas em termos de ausência/presença (Johnston, S/D). Daí sua mais controversa frase: “a mulher não existe”, uma frase cuja compreensão deve focar sobre o “a” de “a mulher”, isto é, no artigo definido que aponta para a universalidade.

É com base nessa leitura acerca da constituição da subjetividade sexuada que feministas francesas, dentre elas Julia Kristeva, apropriam-se da obra de Lacan. Kristeva propõe uma alternativa ao par lacaniano imaginário/simbólico: o semiótico e o simbólico. O semiótico, para Kristeva, não deve ser entendido em seu sentido tradicional, ou seja, como o estudo dos símbolos e signos, mas como uma espécie de campo emocional ligado às nossas pulsões e que se manifesta nas fissuras da linguagem, e não no significado denotativo das palavras. Nos termos da própria Kristeva (1984:25),

Nós entendemos o termo “semiótica” em seu sentido grego: marca distintiva, traço, índice, sinal precursor, prova, signo gravado ou escrito, impressão, figuração. [...] [O] uso etimológico preponderante desta palavra, aquele que sugere uma distinção, nos permite conectá-lo a uma modalidade precisa no processo de significação. Esta modalidade é aquela que a psicanálise freudiana aponta com postulando não apenas a facilitação e a disposição estruturante das pulsões, mas também os chamados processos primários que deslocam e condensam ambas as energias em sua inscrição.

A semiótica está, portanto, intrinsicamente associada à fase pré-edipiana, aos ritmos, tonalidades e movimentos das práticas significantes: o elemento semiótico é a pulsão corporal que é descarregada na significação. Está, assim, diretamente associada ao corpo materno, que é nossa primeira fonte dos ritmos e tonalidades das práticas significativas, e opõe-se ao simbólico, que estabelece a correspondência entre palavras e seu significado, em um sentido mais estrito do termo “significado”.

A cora, por seu turno, é um termo tomado de Platão que, segundo Kristeva (1977: 57), significa um “receptáculo móvel de mistura, de contradição e de movimento, vital ao funcionamento da natureza antes da intervenção teleológica de Deus, e corresponde à mãe”. Diferentemente de Platão, no entanto, Kristeva não localiza a cora em nenhum corpo particular: “nós pegamos o termo do Timeu de Platão a fim de denotar uma articulação essencialmente móvel e provisória constituída de seus movimentos e suas estases efêmeras” (Kristeva, 1984: 26).

Assim como ocorre com o imaginário de Lacan, a cora semiótica é reprimida quando entra a ordem simbólica, mas seus traços permanecem nas margens do simbólico, exercendo uma pressão desagregadora neste último sob a forma de contradições, silêncios, ausências e ritmos. Por essa razão, o sujeito, assim como o significado, nunca são fixos. Como aponta Lovell (1996:324), “por causa de sua fonte, esses lembretes fragmentados da cora semiótica são rotulados de ‘feminino’ e também porque na teoria lacaniana, o feminino, como o semiótico, é marginalizado”.

A idéia de liminaridade associada ao feminino nos é lembrada mais uma vez quando Kristeva (1998: 143) afirma que “as pulsões que extraem o corpo de sua concha homogênea e o transformam em um espaço ligado ao lado de fora são as forças que marcam a cora em processo”. Na tradução brilhante de Ana Paula Portella: “em redor do buraco, tudo é beira”.

Esse grupo vai longe. Semana que vem a gente se registra no CNPq.

Cynthia Hamlin


Referências

Johnston, Adrian (S/D). Non-Existence and Sexual Identity: some brief remarks on Meinong and Lacan. Disponível em: http://www.lacan.com/nonexist.htm
Kristeva, Julia (1984). Revolution in Poetic Language. Nova York: Columbia University Press.
________. (1998) The Subject in Process. Nova York: Routledge.
Lovell, Terry (1996). “Feminist Social Theory”. Bryan S. Turner (ed.) The Blackwell Companion to Social Theory. Oxford & Cambridge: Blackwell.

7 comentários:

Le Cazzo disse...

Parabéns pela iniciativa. Butler tem um texto bastante interessante acerca de Kristeva, simbólico e poético - que retoma a distinção entre simbólico e semiótico. Acho que vale ler. Acho também que coloquei um vídeo sobre o assunto o ano passado - sei que era uma série de palestras, mais não lembro...

E com respeito a Chora (ou Cora), creio que é um termo grego que significa lugar. Os gregos não conheciam a idéia de espaço, isto é, homogêneo, vazio, potencialidade matemática de todos os corpos. Chora é lugar pleno, circunscrito, significativo, que não comporta a plena intercambialidade de todas as coisas. De um modo ou de outro, esse conceito aparece em Bergson, em Heidegger, como forma de criticar a idéia moderna de espaço. Jonatas

Kali disse...

Bem, acho que com esse post e com umas leiturinhas a mais a gente sai do nó de Kristeva e a cora... ainda rindo um pouquinho com o "bêra" de Ariano!
Esse grupo vai longe sim!

Cynthia disse...

Jonatas,

Eu tinha visto uma tradução para a "chora" de Platão como "área" ou "espaço". Mas é fato que se trata de uma concepção distinta de espaço, onde a homogeneidade e a separação não estão presentes. Acho que é justamente por isso que Kristeva pega o termo de Platão: dado que ela quer "localizar" a formação do sujeito numa interseção de forças corporais, linguísticas e sociais, ela precisa de um conceito que dê conta de um "entre" essas coisas, tanto num sentido espacial quanto temporal.

Mas esse conceito de cora semiótica, que é identificado com o feminino, me soa um pouco complicado. Por um lado, a cora semiótica é vista como um "espaço" no qual os significados podem ser subvertidos, fixando (não apenas localizando) o lugar do feminino na alteridade (o monstruoso que não tem lugar?).

Isso significa que o feminino, ao contrário do masculino (o simbólico) é a-histórico. Acho que, como a gente argumenta no nosso "mulheres, negros e outros monstros", de fato o feminino monstruoso pode ser visto como o limite exterior da humanidade e não pode ser separado dela(a beira em redor do buraco); mas esse exterior é constituido historicamente, especialmente com o processo de expansão do capitalismo.

Mais problemático ainda (e acho que é Butler quem coloca isso), o elemento subversivo da cora semiótica e do feminino localiza-se necessariamente fora da cultura. De um ponto de vista político, acho que isso é trágico, já que impede qualquer agência; de um ponto de vista metodológico (ou ontológico, se vc preferir), trata-se de uma posição extremamente essencializante.

Sei lá, esses conceitos me dão agonia. Alguma coisa não bate bem.

Teresa disse...

Fiquei sabendo do grupo de estudos! Confesso que estou lamentando não poder está presente. Mas vou acompanhar o debate aqui pelo Cazzo. Adorei o post, embora ainda entenda pouco sobre o tema. Depois da disciplina "Estruturalismo e Pós- estruturalismo" ministrada pelo professor Jonatas, e do texto que lemos da Butler, confesso que as idéias foram mechidas...

Cynthia disse...

Olhe quem apareceu por aqui! Pena você não estar participando, Teresa. Mas guardaremos um lugarzinho para quando você voltar.

Como está sua experiência na terra de Camões?

Teresa disse...

Estou sempre acopanhando o Cazzo daqui!! Morro de rir com os debates entre @s realistas críticos e @s pós pós!! É uma forma de matar a saudade das aulas!! Podem guardar o lugar... Estou louca para participar.
Por aqui as coisas estão indo bem. Escrevi o texto da crítica pós-estruturalista de Mouffe e Scott às idéias de consenso político e universalidade em Habermas num concurso voltado para os alunos da graduação, promovido pelo curso de sociologia!

Cynthia disse...

Que boa notícia você ter retomado aquele texto! Depois quero saber o resultado do concurso.

Debate? Que debate? Jonatas me cooptou para um texto super-pós que me deixou com crise de identidade e Artur, fundador da ala anti-pós do Cazzo, resolveu abandonar a luta e escrever sobre futebol. Acabou-se o agonismo e, a crermos nos PS, o próprio social. O Cazzo agora é como as mulheres: não existe. Isso aqui que você está vendo é pura ilusão idiótica.

Beijos