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segunda-feira, 15 de junho de 2009

Pudor, despudor e modernidade

Abaixo, trecho de um ensaio a ser apresentado no próximo encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia.



Jonatas Ferreira e Antônio Ricardo Silva

Precisamente por ter sido compreendido como uma experiência ontológica fundamental, ou seja, uma abertura à nossa finitude como tal, o pudor é necessariamente histórico. É possível falar de uma história do pudor, ou seja, da mudança no modo como experimentamos a nossa própria nudez, portanto. E de pronto percebemos que embora remetendo a algo fundamental em nós, a percepção da própria nudez pode se manifestar de diversos modos. Poderíamos dizer que o pudor é um elemento que articula a oposição entre o que é civilizado, ou seja, próprio de seres humanos, e incivilizado, região indigna de animalização. Não é fortuito, portanto, que o que foi considerado civilizado ao longo da história moderna do ocidente tenha produzido uma educação corporal e um sentido moral que se articularam em torno da idéia de responsabilidade pessoal. E isso já nos coloca na perspectiva de uma certa ascese. Assim, será em nome do decoro e da educação que Erasmo falará em Da civilidade das crianças: “Você talvez queira oferecer a alguém de quem gosta a carne que está comendo. 'Evite isso', diz Erasmo. 'Não é decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada'” (ELIAS, 1993, vol. 1, p. 71). À mesa e fora dela, o processo civilizador no ocidente caminhará com a modernidade no sentido de um controle corporal cada vez mais individualizador, como passam a demandar códigos de etiqueta de um mundo cada vez mais racional.

"O que faltava nesse mundo courtois, ou no mínimo não havia sido desenvolvido no mesmo grau, era a parede invisível das emoções que parece hoje se erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e separando, a parede que é freqüentemente perceptível à mera aproximação de alguma coisa que esteve em contato com a boca ou as mãos de outra pessoa, e que se manifesta como embaraço à mera vista de funções corporais de outrem, e não raro à sua mera menção, ou como um sentimento de vergonha quando nossas próprias funções são expostas à vista de outros, e em absoluto apenas nessas ocasiões" (Ibid., p. 82).


A pudicícia passa paulatinamente a requerer um controle das disposições naturais dos corpos: suas secreções, hálitos, nudez, emoções e tudo que se possa associar diretamente à existência de um tal 'corpo animal', incivilizado. A partir do século XVII, por exemplo, esse controle começa a impor como despudorado o hábito parisiense de tomar banhos nus no rio Sena. Isso não impede, ainda no século XVIII, Mme de Châtelet de banhar-se diante de seu criado ou que Luís XIV se sentisse absolutamente confortável em receber seus convidados enquanto defecava. No primeiro caso, a diferença social entre ela e o seu lacaio torna esse último invisível, objeto impossível de constrangimento precisamente por não ser considerado exatamente humano, mas algo como um autômato (BOLOGNE, 1986, p. 44 e 45). Mme de Châtelet despe-se, assim, diante de alguém menos visível que o bichano de Derrida. E isso faz diferença, pois a nudez depende precisamente da reflectividade que o outro proporciona. No século XIX, por exemplo, ficar despida diante de um médico era uma experiência de nudez bem mais intensa que ficar nua diante de um pintor (Ibid., p. 111).

Se a sociedade burguesa caminha de um modo geral em direção à pudicícia, posto que se torna mais individualizadora, racional, disciplinar, parece estranho que em nome desses valores o Antigo Regime pudesse ter lançado um profundo grito de despudor. Esse brado é a obra de Sade, do “sargento do sexo”, como se não nos falha a memória dizia Blanchot; deste acerca de quem teria dito Rousseau: a jovem que ler uma só página de seus livros estará perdida para sempre (BLANCHOT, 1990, p. 17). Como é sobejamente comentado, a literatura do marquês de Sade se estrutura sobre a solidão absoluta da lei do prazer (Ibid., 19). E, assim, o moto perpétuo sadeano seria:

“a natureza nos faz nascer sós, não existe nenhuma espécie de relação entre um homem e outro. A única regra de conduta é, pois, que eu prefira tudo o que me afete de modo feliz, sem ter em conta as conseqüências que esta decisão pode acarretar no próximo” (Ibid., p. 19).


O universo sadeano pode nos dar a impressão de algo desordenado, caótico. Não é obviamente o que Sade tem em mente. Se ele investe contra o interdito, ele o faz com regras de um rigor extremo; suas orgias são administradas com precisão, com regras intransponíveis, hierarquias estritas, sucessões de prazer que devem ser obedecidas, por uma apuro na busca de uma ordem de prazeres que sempre está a serviço da intensificação do gozo, mas que não é menos burocrática por isso. Essa racionalização do gozo, o poder de sua lógica, é condição para que Sade possa investir contra toda forma de interdição, e portanto contra toda forma de pudor: o divino, os laços sanguíneos, a vida do outro, o sofrimento do outro, a própria morte. Protegido no rigor de sua lógica iconoclasta, nada envergonha Sade. “Oh, Juliette, diz a Borghese, eu quisera que os meus extravios pudessem me levar como a última das criaturas à sorte para a qual nos conduz o abandono. O patíbulo mesmo será para mim o trono das voluptuosidades, ali desafiarei a morte, gozando de prazer de espirar vítima de minhas maldades” (SADE apud BLANCHOT, 1990, p. 33 e 34).
Em Sade, o homem e o animal estão submetidos a um só princípio natural: a busca egoísta pelo prazer. Tudo se move na natureza em torno desse princípio que, seguido, diluiria as fronteiras da interdição e do pudor. É isso que concluiríamos se, como Eugênia, escutássemos a voz de Dalmâncio, seu preceptor.

“Foram os primeiros cristãos, diariamente perseguidos por seu sistema imbecil, que gritaram a quem queria ouvi-los: 'Não nos queimem, não nos esfolem. A natureza diz que não se deve fazer aos outros o que não queremos que nos seja feito'. Imbecis! Como ela, aconselhando-nos sempre ao deleite, e jamais imprimindo em nós outras inspirações, poderia, em seguida, numa inconseqüência sem limites, assegurar-nos de que não devemos nos deleitar se isso pode causar pena nos outros? Ah! Crede, Eugênia, crede, a natureza, mãe de todos, só nos fala de nós mesmos; nada é tão egoísta quanto sua voz” (SADE, 1988, p. 45).


Como a ciência moderna, Sade busca um princípio, uma mathesis universalis, a partir do qual todos os viventes seriam compreensíveis; e se como a ciência o domínio de tudo é também uma motivação, o fim último de todo esforço intelectual ou físico é um só: desprender tudo no gozo, no prazer. No primeiro sentido, Sade é a consumação metafísica do humanismo naquilo que ele tem de impensado, ou seja, em sua redução do humano ao animalitas. “O ponto de partida do ateísmo de Sade é o desamparo humano. Ninguém nasce livre, lançado no mundo como qualquer outro animal, está 'acorrentado à natureza', sujeitando-se como um 'escravo' às suas leis”, diz Robert de Moraes (2006, p. 30). O libertino apenas está em condições de projetar no outro, em seu corpo, o poder inapelável dessa natureza. Diferentemente dessa consumação da racionalidade, ou do logos ocidental, entretanto, todo esse esforço visa apenas ao excesso, ao gozo, ao noturno, ao ato absoluto de dispêndio, como diria Bataille. A radicalidade do seu gesto confinou sua literatura durante décadas até que os surrealistas se interessassem pelo sentido despudorado, excessivo dessa violência literária1.

"Na base da admiração dos surrealistas por Sade está uma espécie de materialismo cósmico, que põe em xeque o primado do homem no universo, operando um deslocamento radical dos valores humanistas que sustentam, no Ocidente, vários séculos de cultura. Se é desse materialismo que nasce a erótica sádica do marquês, é também dele que partem os signatários do Manifesto na tentativa de reinventar o mundo sob o princípio fundante do desejo" (ROBERT DE MORAES, 2006, p. 116)


Se o surrealismo de Breton, Leiris namorou com o anti-humanismo sadeano, com a violência, a exceção, com uma região da experiência humana colocada para além do interdito, do pudor, é a obra de Bataille que levará as conclusões literárias e filosóficas do marquês mais longe. A literatura batailleana investe claramente no excessivo, como poderemos perceber em obras como O azul do céu, ou História do olho. Sua contribuição filosófica, como pode ser constatado em O erotismo, é uma elaboração teórica da relação entre erotismo e violência, Eros e Thanatos, que já se apresenta na obra de Sade. A apropriação dionisíaca do erotismo em Bataille também é algo que salta aos olhos, como na frase que abre O erotismo: “Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”. E o elemento fundamental da experiência do erotismo é precisamente o desnudamento.

"A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto é, ao estado de existência contínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade através desses canais secretos que nos dão acesso ao sentimento da obscenidade. A obscenidade significa a desordem que perturba um estado dos corpos que estão conforme à posse de si, à posse da individualidade durável e afirmada. [...] O desnudar-se, visto nas civilizações onde isso tem um sentido pleno, é, quando não um simulacro, pelo menos uma equivalência sem gravidade da imolação" (BATAILLE, 1987, p. 17)


O erotismo seria um ato despudorado por princípio. A nudez que ele proporciona pressupõe a transgressão das fronteiras do interdito e, assim, a experiência “dionisíaca”, de afirmar vida e morte como partes de um todo, a perturbação da descontinuidade dos corpos e sua afirmação a um só tempo, a perda de si e da individualidade como condição da afirmação da vida como um princípio maior. Impossível, de fato, não escutar a voz do velho e libertino marquês aqui. Do mesmo modo, é preciso afirmar o sentido cultural desse investimento na região de limite onde pudor e despudor, nudez e desnudamento se articulam: a experiência do excesso, sua reincorporação nas práticas da cultura ocidental, seria um antídoto contra a razão individualizadora, disciplinadora que submete tudo à lógica do trabalho e da produtividade. De um modo amplo, esse é um grito surrealista ao qual a cultura ocidental – suas contra-culturas – abriu bem os ouvidos. É a desestabilização dos lugares de segurança do sujeito, do humano, do logos, que constituem o foco desse investimento na fronteira entre o pudor e o despudor. O discurso de liberação pela sexualidade ecoa aquele brado de modo muitas vezes impensado.


Referências

AGAMBEN, Giorgio. 2004. The Open. Man and Animal. California, Stanford University Press.
BATAILLE, Georges. 1987. O erotismo. São Paulo, L&PM.
BLANCHOT, Maurice. 1990. Lautréamont e Sade. México, Fondo de Cultura Económica.
BOLOGNE, Jean-Claude. 1986. História do Pudor. Rio de Janeiro, Elfos Editora.
DERRIDA, Jacques. 2002. O Animal que logo sou. São Paulo, Editora da UNESP.
-----------. S/d. “Os Fins do Homem”. In Margens da Filosofia. Porto, Rés-Editora.
ELIAS, Nobert. 1993. O Processo Civilizador, vols. 1 e 2. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
FREUD, Sigmund. 1976. “O 'estranho'”. In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago.
GLENDINNING, Simon. 1998. On Being with the Others. New York, Routledge.
HEIDEGGER, Martin. 1987. Carta sobre o Humanismo. Lisboa, Guimarães Editores.
MORAES, Eliane R. 1994. Sade: A felicidade Libertina. Rio de Janeiro, Imago.
---------. 2006. Lições de Sade. Lições sobre a imaginação libertina. São Paulo, Iluminuras.
SADE. 1998. Ciranda dos Libertinos. (coletânea organizada por L.A. Contador-Borges). São Paulo, Max Limonad.
--------. 2006. Os 120 dias de Sodoma. A escola da libertinagem. São Paulo, Iluminuras.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Pudor e vergonha: o que se revela e se esconde


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Antonio Ricardo Rodrigues da Silva

Lucian Freud é considerado um dos mais importantes pintores ingleses da atualidade, talvez o mais importante da segunda metade do século XX. Nascido em Berlim em 1922, filho de Ernest Freud e Lucie e neto do pai da psicanálise Sigmund Freud, Lucian se consagrou com uma pintura muito particular, onde a figuração do humano, notadamente na exposição de seus corpos, quase sempre nus, demonstra sua agucidade em mostrar coisas e situações quase sempre de um âmbito privado, que se preferiria não se notar ou ver. A crueza de suas figuras que apresentam o retrato físico e existencial das pessoas em poses paradoxalmente não posadas saltam aos nossos olhos.

Diferentemente de um outro pintor britânico – Francis Bacon, cujo mal estar advém da extrema distorção da figura humana que pode ser reduzida a um pequeno conjunto de músculos, aparentando-se a uma exposição de carnes num açougue, o mal estar e também a perplexidade de haver ali beleza, aparece na pintura de Freud, a partir de um estranho desconhecimento, que passamos a reconhecer como muito familiar, na medida em que reconhecemos ali, a expressão de nossa vulnerabilidade, seja no corpo das jovens, onde a posição não é ortodoxa e a proporção é alterada, seja nas dos gordos e velhos, estes últimos anunciando a decaída física e conseqüentemente a perspectiva da morte. Uma pintura que parece a princípio sem pudor, pois além de mostrar nossa nudez sem retoques, com seus limites, escancara nossa fragilidade. Uma pintura que possibilita uma identificação aparentemente mínima, sutil, mas olhando mais de perto, avassaladora. O despudor de Lucian talvez seja o de nos mostrar o que já sabemos, mas insistimos em deixar no limbo quanto mais tempo for possível, até que graças a habilidade de um artista, sejamos confrontados com a novidade que já é nossa velha conhecida.

O pudor e a vergonha estão relacionados a um mal estar, gerado pelo que pode ferir a decência, a honestidade ou a modéstia. Este sentimento está quase sempre ligado (mas não só) a atos e coisas que se relacionam com a sexualidade, na articulação entre o que deve e pode se mostrar e o que se deve esconder.

Em 1905, o avô de Lucian, Sigmund Freud publicou os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” texto fundamental para se compreender como a psicanálise entendia a sexualidade humana. Este livro colocou Freud novamente no olho do furacão moral vienense, não só porque o tema era o sexo, mas, sobretudo pela abordagem que fazia desse impulso. Todos sabemos que no século XIX muito se falou e se escreveu sobre o tema, com o estabelecimento das ciências sexuais. Os livros de Havelock Ellis (1859-1939) e, sobretudo o de Krafft-Ebing (1840-1902) (Psychopatia sexualis) eram verdadeiros best sellers. A especificidade da abordagem freudiana – já explicitada no texto fundador de 1900 - “A interpretação dos sonhos” dizia respeito ao fato de que a fronteira entre o normal e o patológico tinha sido definitivamente esfumaçada. As noções do sonho como uma “psicose noturna e realização alucinatória do desejo” falavam desse transitar, reforçados ainda mais pelo fato de que muito cedo Freud recusou a noção de degenerescência – cara à psiquiatria do seu tempo e que tentava explicar os ditos desvios da conduta sexual a partir de uma disposição degenerativa herdada.

Com os “Três ensaios” a sexualidade dos humanos se afasta notadamente da dos animais. A noção de instinto – fundamental para a biologia e para a psiquiatria, e até então referência importante para a explicação do sexo entre os humanos, é interrogada pela psicanálise. Esboça-se o conceito de pulsão, sendo a partir deste que não só a sexualidade, mas a própria constituição do humano passa a ser pensada. A pulsão é um conceito limite entre o somático e o psíquico. Ancorada no corpo (sua fonte) tem como objetivo descarregar a tensão e para isto precisa de um objeto, meio para atingir sua finalidade. Esses objetos podem ser desde uma parte do corpo (próprio ou de outro) até uma pessoa inteira. Freud vai reconhecer então uma sexualidade na infância e considerá-la a matriz da organização psíquica, rompendo com a noção de que esta estaria ausente e só aparecia nos casos de crianças degeneradas. O mito da infância inocente é derrubado, passando a criança a ser entendida como um pequeno ser em desenvolvimento dotado de uma disposição perversa polimorfa, isto é, capaz de experimentar imenso prazer em atividades as mais diversas, desde o sugar do seio materno, o excretar e reter, até o ser tocado, tocar, olhar e exibir-se ao outro. Essa disposição ampla deve, no entanto ir se organizando em torno da genitalidade e aqui aparece um componente de certa forma normativo, na medida em que, caso isto não se estabeleça, organizar-se-iam as perversões, entendidas neste contexto como as práticas perversas polimorfas dos adultos com um fim em si, não levando a união dos genitais no coito. Para que a genitalidade seja alcançada as disposições perversas polimorfas próprias e fundantes da matriz devem tomar outros destinos. A sublimação e o recalque seriam dois destinos possíveis.

E é sobre o recalque dessas disposições que Freud se deterá ao falar dos “diques anímicos contra os excessos sexuais”. Subjaz aqui uma noção da sexualidade como do âmbito de um excesso que necessita ser domado, controlado, desviado, limitado para que a organização psíquica se realize. Haveria então tanto do ponto de vista da própria criança como da expectativa social que esses componentes pudessem ser controlados e Freud dirá que o asco, os ideais estéticos e morais e a vergonha (pudor) seriam esses condicionantes. Vergonha e pudor seriam peças centrais nessa organização. Interessante é pensar que por trás desses sentimentos, haveria uma forte disposição constitutiva e ao mesmo tempo intempestiva e que seria da resolução dessa conflitiva que teríamos as especificidades de cada pessoa e de seu lugar no mundo. O pudor e a vergonha provocam o recalque necessário para uma certa organização psíquica que desembocará num franco desenvolvimento rumo a uma certa autonomia necessária à vida de uma pessoa, que é capaz de reconhecer-se e implicar-se no percurso e destino de sua vida humana, demasiada humana. No entanto, se as operações recalcantes forem excessivas, levarão junto consigo a espontaneidade, a criatividade e a empatia, peças importantes na vida pessoal e social, tendo como uma das suas conseqüências, a inibição. A importância de se focar o pudor é que ele trás a possibilidade de se acessar sua outra face – o despudor e a partir desse contato se integrar uma dimensão preciosa da experiência humana. A pintura de Lucian nos dá uma dessas senhas.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Pudor e despudor


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O texto abaixo saiu na Continente Multicultural de Dezembro, dentro de um pequeno dossiê sobre "pudor". Compartilho no CAZZO.

Jonatas Ferreira

Em O animal que logo sou, Jacques Derrida reflete acerca de um tema inusitado: o constrangimento de, nu, perceber-se objeto do olhar distraído de seu gato de estimação. Chamemos esse constrangimento por um nome adequado: pudor. O pudor, a percepção da própria nudez, em sentido estrito e lato, é para ele uma experiência ontológica fundamental – inseparável de outras imagens daquilo que se tem considerado próprio do ser humano, tais como, a razão, a história, o luto. Trata-se de uma experiência acerca dos limites do humano, de sua relação com o animal que ele não pode deixar de perceber em si próprio – e que o espreita. O ser humano é o ser capaz da nudez. Retorno de uma mirada sobre nossa própria finitude, o pudor é uma experiência de estranhamento, no sentido que essa palavra adquiriu a partir de Freud, ou seja, viver como estrangeiro aquilo que nos é mais íntimo e como íntimo, próprio, aquilo que nos é mais estrangeiro.

Esse sentimento, no entanto, varia cultural e historicamente. A nudez não se apresentava para o rei Luís XIV do mesmo modo como se apresentou para Jimmy Carter. A fístula anal do primeiro foi tratada, exibida, discutida, tocada por sua corte com uma sem-cerimônia considerável; comparativamente, a mídia e a entourage presidencial tratou da convalescença de Carter de modo discreto, quando ele se submeteu a uma cirurgia para tratar de problemas no mesmo sítio. Radicalizando o argumento, creio ser legítimo dizer que a diferença entre duas culturas poderia ser formulada a partir daquilo que faz os indivíduos se sentirem nus. Assim, embora vários grupos indígenas no Brasil possam encarar sem constrangimentos o corpo feminino, algumas etnias tendem a ver no sangue menstrual algo a ser ocultado. Na França dos séculos 16 e 17, os banhos públicos, a nudez coletiva nessas circunstâncias, ainda eram socialmente aceitáveis. Mesmo quando passaram a ser proibidos, a nudez de membros de uma classe não era considerada vergonhosa se presenciada por membros de uma classe subalterna – estes eram percebidos de algum modo como parte dos utensílios domésticos.

É possível afirmar que o Renascimento marca na Europa uma trajetória gradativa de controle corporal (como se portar à mesa, onde defecar ou urinar, o estabelecimento de regras para a compartilha de cama com pessoas de posições sociais distintas) que culminará na individualização, na valorização da intimidade, e do autocontrole. Erasmo poderia ser mais tolerante acerca dos gases produzidos pela digestão do que os manuais de etiqueta dos séculos XIX ou XX - muito mais estritos acerca da disciplina corporal. No caminho do autocontrole corporal, da valorização da intimidade, observa Nobert Elias, desaparece “a despreocupação em mostrar-se nu, como também em satisfazer necessidades corporais na frente dos outros. Tornando-se menos comum na vida social esse espetáculo, adquire uma nova importância a descrição do corpo na arte”. Assim, no século XIX, a nudez artística era bem melhor tolerada que a nudez de uma paciente diante de seu médico.

O pudor é a fronteira daquilo que poderíamos considerar civilizado. A nudez, nesse sentido, é uma vivência que nos coloca nas fronteiras da civilidade. A forma como nos percebemos verdadeiramente nus tem sempre um valor humanizador – mesmo que esse valor se revele através de um sentimento de constrangimento. Por isso, não podemos dissociar pudor de despudor.

Permitam-me agora problematizar a hipótese que viemos defendendo. Ora, um grande desafio teórico para aqueles interessados em discutir o estatuto do corpo nas sociedades contemporâneas foi lançado por Foucault, em sua famosa e inconclusa História da Sexualidade. Ali encontramos o ápice de um lento processo de rompimento com o pensamento excessivo, que encontramos, por exemplo, na obra de Bataille, sob cuja influência podemos situar muito dos primeiros trabalhos de Foucault. Se fora possível concluir a partir da História da Loucura que a sociedade moderna, a sociedade do trabalho, da disciplina, da razão, constitui-se a partir da repressão do excesso, do erotismo, este último Foucault nos desafia e revê antigas conclusões: a forma de poder que se constitui nos últimos séculos nas sociedades ocidentais não é estruturada a partir de uma repressão da sexualidade, mas de sua exacerbação discursiva, de sua conversão em estímulo para a produção de corpos dóceis. Estaríamos, portanto, equivocados em imaginar que o principal mecanismo de constituição do poder na sociedade moderna fosse repressivo, estruturado sobre a pudicícia; o poder moderno é produtivo, ele estimula, disponibiliza, potencializa, e não vive exclusivamente como força negativa, coercitiva. Seria o despudor, a mobilização incansável de nossa sexualidade em inúmeros setores da vida quotidiana, uma das principais estratégias da sociedade do consumo? Essa suposição parece encontrar eco em inúmeras evidências de nosso dia-a-dia. Afinal, não erotizamos o consumo de cervejas, não estamos sempre preocupados com nossa performance amorosa, com o modo de corrigi-la quimicamente?

E se estivéssemos mesmo diante daquilo que Marcuse chama de dessublimação repressiva? E se estivéssemos diante de uma colonização de nosso erotismo pelas estruturas de poder, como julga Foucault? A um homem já maduro, como eu, cai bem o talhe desse tipo de raciocínio.

Vencer o pudor que cercava nossos corpos e desejos foi imaginado por muitas décadas como caminho fundamental para nossa libertação, todavia. Mencionemos de passagem o papel da psicanálise nesse sentido. Mas há também exemplos na literatura e na filosofia. Blanchot já disse acerca de Sade, por exemplo, que se tratava do espírito mais livre que o gênero humano jamais produziu. Em Justine, o marquês fala pela boca de Esterval: "A única causa de todos os nossos erros reside no que sempre tomamos por leis da natureza, o que não vem senão de costumes ou de preconceitos da civilização. (...) Ofender as leis dos homens é ultrajar um fantasma". Nessa mesma linha, Bataille não nos falou do excesso erótico como um valor fundamental, como espaço de resistência à sociedade do trabalho, da razão e do controle? O Surrealismo, de um modo amplo, não nos fez ver a necessidade de ampliar nossos horizontes existenciais, rasgando os véus da pudicícia, ampliando os canais que nos ligam aos nossos desejos mais íntimos?

Mesmo que aceitemos a força da tese foucaultiana para explicar diversos fenômenos políticos, econômicos e culturais, ainda cabe perguntar: a sociedade que invade o desejo, que rasga os véus do pudor, não produziria uma forma de repressão mais profunda? Afinal, o estranhamento do pudor pode ser vencido? Acredito que novas formas de pudor se constituem em uma sociedade em que a exposição de genitálias, do ato sexual, de formas não convencionais de erotismo passam a contar com uma tolerância bem maior que outrora.

Acredito que ainda nos sentimos nus diante de nossa finitude, que ainda nos espanta e envergonha a precariedade de nossos corpos. Por isso, é preciso eternizá-los, através de sua higienização, de cuidados cosméticos, de cirurgias plásticas que contrariam a gravidade e o tempo. O grande pudor da sociedade de consumo é não estar apto ao consumo, falhar diante das perspectivas de prazer, não obter o gozo máximo, o desempenho ótimo. É sermos lembrados de que afinal somos precários, mortais.