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Antonio Ricardo Rodrigues da Silva
Lucian Freud é considerado um dos mais importantes pintores ingleses da atualidade, talvez o mais importante da segunda metade do século XX. Nascido em Berlim em 1922, filho de Ernest Freud e Lucie e neto do pai da psicanálise Sigmund Freud, Lucian se consagrou com uma pintura muito particular, onde a figuração do humano, notadamente na exposição de seus corpos, quase sempre nus, demonstra sua agucidade em mostrar coisas e situações quase sempre de um âmbito privado, que se preferiria não se notar ou ver. A crueza de suas figuras que apresentam o retrato físico e existencial das pessoas em poses paradoxalmente não posadas saltam aos nossos olhos.
Diferentemente de um outro pintor britânico – Francis Bacon, cujo mal estar advém da extrema distorção da figura humana que pode ser reduzida a um pequeno conjunto de músculos, aparentando-se a uma exposição de carnes num açougue, o mal estar e também a perplexidade de haver ali beleza, aparece na pintura de Freud, a partir de um estranho desconhecimento, que passamos a reconhecer como muito familiar, na medida em que reconhecemos ali, a expressão de nossa vulnerabilidade, seja no corpo das jovens, onde a posição não é ortodoxa e a proporção é alterada, seja nas dos gordos e velhos, estes últimos anunciando a decaída física e conseqüentemente a perspectiva da morte. Uma pintura que parece a princípio sem pudor, pois além de mostrar nossa nudez sem retoques, com seus limites, escancara nossa fragilidade. Uma pintura que possibilita uma identificação aparentemente mínima, sutil, mas olhando mais de perto, avassaladora. O despudor de Lucian talvez seja o de nos mostrar o que já sabemos, mas insistimos em deixar no limbo quanto mais tempo for possível, até que graças a habilidade de um artista, sejamos confrontados com a novidade que já é nossa velha conhecida.
O pudor e a vergonha estão relacionados a um mal estar, gerado pelo que pode ferir a decência, a honestidade ou a modéstia. Este sentimento está quase sempre ligado (mas não só) a atos e coisas que se relacionam com a sexualidade, na articulação entre o que deve e pode se mostrar e o que se deve esconder.
Em 1905, o avô de Lucian, Sigmund Freud publicou os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” texto fundamental para se compreender como a psicanálise entendia a sexualidade humana. Este livro colocou Freud novamente no olho do furacão moral vienense, não só porque o tema era o sexo, mas, sobretudo pela abordagem que fazia desse impulso. Todos sabemos que no século XIX muito se falou e se escreveu sobre o tema, com o estabelecimento das ciências sexuais. Os livros de Havelock Ellis (1859-1939) e, sobretudo o de Krafft-Ebing (1840-1902) (Psychopatia sexualis) eram verdadeiros best sellers. A especificidade da abordagem freudiana – já explicitada no texto fundador de 1900 - “A interpretação dos sonhos” dizia respeito ao fato de que a fronteira entre o normal e o patológico tinha sido definitivamente esfumaçada. As noções do sonho como uma “psicose noturna e realização alucinatória do desejo” falavam desse transitar, reforçados ainda mais pelo fato de que muito cedo Freud recusou a noção de degenerescência – cara à psiquiatria do seu tempo e que tentava explicar os ditos desvios da conduta sexual a partir de uma disposição degenerativa herdada.
Com os “Três ensaios” a sexualidade dos humanos se afasta notadamente da dos animais. A noção de instinto – fundamental para a biologia e para a psiquiatria, e até então referência importante para a explicação do sexo entre os humanos, é interrogada pela psicanálise. Esboça-se o conceito de pulsão, sendo a partir deste que não só a sexualidade, mas a própria constituição do humano passa a ser pensada. A pulsão é um conceito limite entre o somático e o psíquico. Ancorada no corpo (sua fonte) tem como objetivo descarregar a tensão e para isto precisa de um objeto, meio para atingir sua finalidade. Esses objetos podem ser desde uma parte do corpo (próprio ou de outro) até uma pessoa inteira. Freud vai reconhecer então uma sexualidade na infância e considerá-la a matriz da organização psíquica, rompendo com a noção de que esta estaria ausente e só aparecia nos casos de crianças degeneradas. O mito da infância inocente é derrubado, passando a criança a ser entendida como um pequeno ser em desenvolvimento dotado de uma disposição perversa polimorfa, isto é, capaz de experimentar imenso prazer em atividades as mais diversas, desde o sugar do seio materno, o excretar e reter, até o ser tocado, tocar, olhar e exibir-se ao outro. Essa disposição ampla deve, no entanto ir se organizando em torno da genitalidade e aqui aparece um componente de certa forma normativo, na medida em que, caso isto não se estabeleça, organizar-se-iam as perversões, entendidas neste contexto como as práticas perversas polimorfas dos adultos com um fim em si, não levando a união dos genitais no coito. Para que a genitalidade seja alcançada as disposições perversas polimorfas próprias e fundantes da matriz devem tomar outros destinos. A sublimação e o recalque seriam dois destinos possíveis.
E é sobre o recalque dessas disposições que Freud se deterá ao falar dos “diques anímicos contra os excessos sexuais”. Subjaz aqui uma noção da sexualidade como do âmbito de um excesso que necessita ser domado, controlado, desviado, limitado para que a organização psíquica se realize. Haveria então tanto do ponto de vista da própria criança como da expectativa social que esses componentes pudessem ser controlados e Freud dirá que o asco, os ideais estéticos e morais e a vergonha (pudor) seriam esses condicionantes. Vergonha e pudor seriam peças centrais nessa organização. Interessante é pensar que por trás desses sentimentos, haveria uma forte disposição constitutiva e ao mesmo tempo intempestiva e que seria da resolução dessa conflitiva que teríamos as especificidades de cada pessoa e de seu lugar no mundo. O pudor e a vergonha provocam o recalque necessário para uma certa organização psíquica que desembocará num franco desenvolvimento rumo a uma certa autonomia necessária à vida de uma pessoa, que é capaz de reconhecer-se e implicar-se no percurso e destino de sua vida humana, demasiada humana. No entanto, se as operações recalcantes forem excessivas, levarão junto consigo a espontaneidade, a criatividade e a empatia, peças importantes na vida pessoal e social, tendo como uma das suas conseqüências, a inibição. A importância de se focar o pudor é que ele trás a possibilidade de se acessar sua outra face – o despudor e a partir desse contato se integrar uma dimensão preciosa da experiência humana. A pintura de Lucian nos dá uma dessas senhas.
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