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domingo, 17 de janeiro de 2016

Sobre o amor romântico: algumas reflexões a partir de Derrida e Levinas (preliminares)



Jonatas Ferreira
Devo ao livro de John Caputo, Deconstruction in a Nutshell, a constatação em alguma medida indireta de que existiria um vínculo teórico entre Derrida e Levinas que nos remeteria diretamente ao tema do amor e da ética no amor. Nunca havia pensado sobre a relevância da obra de Derrida para pensar esse tema e, no entanto, após ler o livro de Caputo, essa possibilidade pareceu-me muito atraente. Mas aqui cabe algum cuidado, para que, cumprindo o dever da gratidão, não procure validar minhas conclusões com a sombra da autoridade intelectual do filósofo e teólogo. De fato, suas considerações acerca de temas como “comunidade”, “hospitalidade” e “identidade, tal como apresentados num capítulo central do Deconstruction in a Nutshel, parecem levar mais diretamente a discussões acerca de ética e sociabilidade, ética e política de um ponto de vista amplo. Pouco autorizaria a inferir dali algo sobre amor e, menos ainda, sobre amor romântico, como pretendo. E, no entanto, o tema do amor como elemento ontológico, como possibilidade primeira da abertura para o outro está presente em todas estas outras formulações. 

A explanação de linhas centrais do pensamento derridiano, realizada por Caputo, ao tratar de tais temas, cumpre a promessa de facilitar a leitura da obra deste autor que Cynthia Hamlin reputa como um dos mais chatos e abstrusos que já existiram – com tantos candidatos na sociologia, eu não sei o motivo de não privilegiarmos nossos próprios pares. De qualquer forma, Caputo faz um trabalho de mestre ao lançar luz sobre o gosto derridiano pelos paradoxos, pelas aporias. E o faz a partir da discussão de temas que interessariam, em princípio, bem mais à sociologia política do que parece contribuir para a discussão que pretendo trazer neste Cazzo.

Vejamos, pois, a partir de Caputo, o que Derrida tem a nos oferecer acerca de ideias como comunidade, hospitalidade, identidade. Para ele, é preciso perceber que se vamos continuar mobilizando a ideia de comunidade em nossas discussões políticas e éticas, é necessário atentarmos para a forma como essa ideia vem sendo elaborada no ocidente - e isso bem antes que Ernst Troeltsch a definisse a partir da ideia de unidade sentimental, de herança comum de valores compartilhados. Consideremos a esse respeito a oposição entre civilizados, e bárbaros, tão cara ao pensamento grego. Para Derrida, o próprio esclarecimento etimológico da palavra comunidade indica que no seio do comum - daquilo que nos permite falar em uníssono, isto é, da «fusão» - pulsaria a beligerância, o conflito, o agonismoOs ecos mais arcaicos desta palavra ofereceriam evidência para essa postulação: 
«O que ele não gosta na palavra comunidade é sua conotação de "fusão" e "identificação". No final das consta, comunhão é uma palavra para uma formação militar e uma prima próxima da palavra "munição"; estar em comunhão é estar fortificado de todos os lados, construir uma "defesa" comum (munis), tal como uma muralha é posta em volta de uma cidade para manter um estranho ou estrangeiro do lado de fora» (Caputo, p. 108) [1]
Já aqui nos parece que a influência da ética levinasiana se instaura poderosamente. A alteridade não é aquilo que eu devo procurar extinguir, negar, mas aquele, ou aquela, que instaura a possibilidade de minha própria existência. A radicalidade do pensamento derridiano nos remeteria, para além do humanismo de Levinas, a suas meditações sobre a alteridade do animal, de como ele se constituiu como o absolutamente outro no pensamento ocidental, e ao mesmo tempo aquilo que resta por pensar, o desafio filosófico por excelência. É a radicalidade da presença da  alteridade, mesmo quando a reprimimos, que se coloca como desafio para pensarmos processos identitários, comunitários. Neste caso específico, ou seja, nas reflexões que ele oferece em O animal que logo sou, para além das reflexões foucaultianas e agambenianas sobre a centralidade do bios na política e sociabilidade modernas, ou, mais amplamente, da política e cultura ocidentais, o animal permanece como alteridade absoluta que nos acena e para o qual nos fechamos. A região limítrofe em que o outro conclama meus próprios processos identitários é a zona obscura onde Derrida propõe que pensemos[2].

Se a deconstrução pode se instalar como pensamento desafiador, como algo que nos diz respeito, sem que seja propriamente bem-vindo, em sua abstrusão, é por aceitar de frente a necessidade ética de ouvir o clamor deste outro, sua face, diria Levinas. E isso não é fácil. Tomemos um exemplo. Se uma política antifascista, de recusa ao ódio, pode ser instalada, como nos lembra de modo algo irônico Marcia Tiburi[3], é preciso poder conversar com o ódio e com o fascismo, sem cancelarmos o outro como algo já dado, já sabido, e sem nos perdermos em qualquer forma de conivência, de leniência diante do autoritarismo, da intolerância. 
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A questão é: a deconstrução não recusa a ideia de comunidade por identificar, no seio da vontade de fusão, uma vontade de negação do outro, no seio da hospitalidade, a hostilidade, como se tivéssemos aqui apenas um problema de higienização lógica. Trata-se antes de entender que (i) o outro é o que há de mais bem-vindo (quem mais poderia sê-lo senão o outro, a outra em sua alteridade?), mas é também o mais desafiador e que (ii) a ideia de comunidade deveria estar aberta a essa evidência e dificuldade política. No caso controvertido que nos traz Tiburi, trata-se para mim de poder discutir o fascismo não como algo que não me diz respeito, algo que só se coloca nas práticas alheias, mas antes que me envolve de modo radical. 

Não se trata, é preciso dizer, de capitular por princípio diante da outra pessoa, do outro grupo ideológico. Tampouco de negá-la a priori. Não se trata de escamotear de algum modo o conflito, mas antes encará-lo de frente. O outro em seu caráter desafiador é, antes, a possibilidade de que continuemos vivos e de seguirmos produzindo uma relação generosa com aquilo que nos mobiliza – o que no caso de alguém que por princípio recusa o diálogo, convenhamos, é um desafio incontornável, caso não percebamos que o fascismo nos diz respeito de modo mais fundamental.

Assim, a reivindicão de Derrida no sentido de buscarmos uma “comunidade sem comunidade” é, não apenas um desejo de postar seu pensamento em zonas de curto-circuito, em paradoxos vazios, mas um compromisso ético e político. Por isso mesmo, ele também procura sempre pensar as possibilidades abertas dentro, e não fora, da sua tradição, ali mesmo onde a ideia de comunidade se abre como um problema. Por isso mesmo as aporias do pensamento ocidental - as zonas limites do filosofar em que identidade e alteridade se encontram em confronto - constituem seu locus privilegiado de reflexão. Essas são zonas de “indecidibilidade”, campos em que toda decisão carrega sempre consigo o fantasma daquilo que está sendo excluído. E isso nos dá uma ideia do motivo pelo qual o tema da hospitalidade é também relevante neste contexto: 

«Há uma "auto-limitação" essencial construída dentro da própria ideia de hospitalidade, que preserva a distância entre o si mesmo e o estrangeiro, entre entre possuir nossa propriedade e convidar o outro para dentro de nossa casa. Assim, há sempre um pouco de hostilidade  em todo ato de hospedagem e hospitalidade, constituindo uma certa hostil/pitalidade”» (Caputo, p. 110). 
Essa ambiguidade é um tema, como sabemos, também psicanalítico. Freud já alertava acerca da agressividade que os gestos mais amorosos comportam, e vice-versa: sempre que o ódio se instalar, sempre que a negação do outro se fizer presente, é necessário que levemos em conta a possibilidade de fascínio que esse outro exerce.

A relação identidade-alteridade, que afinal é também o que discutimos até aqui, é um tema fenomenológico clássico. A própria intencionalidade de nossos processos cognitivos, como propõe Husserl, requer e só se torna possível pela aceitação das demandas que a alteridade nos faz. Essa é, aliás, a forma como Levinas percebe a influência da fenomenologia husserliana e Heideggeriana em seu próprio pensamento – ou seja, neste sentido, a consciência não é o elemento fundante da fenomenologia, mas o desafio que  a alteridade lhe lança. Heidegger, no entanto, para Levinas, é um pensador da casa, do próprio, da clareira, da lareira, da autenticidade. Derrida e Levinas, por outro lado, são pensadores do clamor ético do limite, do compromisso que sempre nos mobiliza eticamente em direção à alteridade, sem que nunca possamos atender a tal apelo de modo satisfatório. 

E, no entanto, é preciso enfatizarmos isso devidamente: «Quando eu digo "bemvindo(a)" para o(a) outro(a), "venha, cruze o meu umbral", eu não estou capitulando minha propriedadade ou identidade. Não me ponho na posição de khôra que dá boas-vindas a tudo como um receptáculo aberto. Se eu digo "Bem-vindo(a)!, não estou renunciando a meu domínio”. Dizer bem-vindo, portanto, não seria possível se realizássemos qualquer sonhos místico de fusão com o outro, com a outra pessoa. E mais adiante nós lemos: «Como tudo o mais na deconstrução, a possibilidade da hospitalidade é sustentada por sua própria impossibilidade; hospitalidade realmente só se põe a caminho quando "experimentamos" (o que significa viajar ou atravessar) essa paralisia (a incapacidade de se movimentar)» (Caputo, p. 111). Essa impossibilidade parece-nos a forma como o pensamento derridiano pensa a questão da transcendência, ou seja, entendendo-a como algo finito, sem uma resolução absoluta, essencial. A impossibilidade nos mobiliza aqui por que nela reconhecemos o trágico de nossa precariedade ontológica.

Eu diria então que o verdadeiro gesto ético, o reconhecimento da alteridade, só pode ser inaugurado quando tal impossibilidade nos coloca fora do terreno das decisões automatizadas, quando o decidir é perturbador, quando nossa identidade é posta em xeque nesta mesma decisão. Como tudo isso é diferente da ideia liberal de uma comunidade fundada na tolerância mútua de identidades auto-referentes! Etimologicamente, a palavra tolerar significa suportar pacientemente a carga… Derrida, por outro lado, “quer distinguir uma identidade impermeável, homogênea, idêntica a si mesmo, de uma identidade que difere de si mesma» (Caputo, p. 114). 

O verdadeiro gesto ético só surge quando a face do outro, da outra, surge em sua absoluta singularidade, quando as regras para julgá-lo, ou julgá-la, são insuficientes. Orestes, por exemplo, diante da decisão de honrar os compromissos com seu pai, ou com sua mãe, estava em uma tal situação. Ou, mais propriamente ainda, poderíamos nos reportar aos apuros em que se mete Sancho Pança ao ser colocado diante de uma decisão sobre a vida de alguém que, se executado, morreria inocente; poupado, viveria na impunidade de seu delito. A decisão sobre o indecidível na famosa passagem do Dom Quixote, tem um sabor derridiano: Na dúvida, na impossibilidade de uma decisão logicamente perfeita, Sancho pondera, deixe viver porque a vida de um ser humano, em sua singularidade, é maior que o compromisso com qualquer compromisso com o rigor lógico. A justiça, neste caso, não pode se abrigar na aplicação cega da lei. O verdadeiro gesto ético, assim, abriga-se em nossa precariedade diante da outra pessoa, de sua face. Estranho abrigo!

«”We” all require “culture”, but let us cultivate (colere) a culture of self-differentiation, of differing with itself, where “identity” is an effect of difference, rather than cultivating “colonies” (also from colere) of the same in a culture of identity which gathers itself to itself in common defence against the other” (Caputo p. 115).

Assim, também as considerações derridianas sobre a dádiva, que encontramos em livros como Donner la mort, e que são uma parte importante de sua ideia de justiça, funda-se no pressuposto de que o dom requer algo para além de qualquer possibilidade de contra-dom, algo que “não pode ser reapropriado”. O dom é aquilo que passa pela circularidade das trocas e que a excede, que supõe um tempo circular – em que o dado deve retornar até o seu doador - e que instala uma interrupção no seio desta circularidade. É isto que nos indica as seguintes linhas de Donner le temps: 
«La circularité ne devrait pas être nécessairement fuie ou condamnée, comme le serait une mauvaise repetition, un circle vicieux, un processus régressif ou sterile. Il faut, d’une certaine manièrebien sûr, habiter le cercle, tourner en lui, y vivre une fête de la pensée, et le don, le don de la pensée, n’y serait pas étranger» (Derrida, p. 20).
Algumas linhas abaixo, no entanto, temos: 
«Que partout où il y a du temps, partout où le temps domine ou conditionne l’expércience en general, partour où domine le temps comme cercle […], le don est impossible. Un don ne saurait être possible, il ne peut y avoir don qu’à l’instant où toute circulation aura été interrompu et à la condition de cet instant»[3] (Derrida, p. 21).
O que essas tensões implicam para pensarmos a ideia de justiça em Derrida em oposição à estabilidade e automatismo da lei? «This “idea of justice” seems irreducible in its affirmative character, in its demand of gift without exchange, without circulation, without recognition of gratitude, without circularity, without circulation and without rules, without reason and without rationality» (Caputo, p. 141). Para ele, uma dádiva que é retribuída, ou que é reconhecida como tal, já anula a si mesma neste ato: pois qual seria o dom, o sobrevalor, o excesso necessário de algo que é reconhecido e, como tal, retribuído? 

Há no pensamento francês uma tradição de tentar pensar o lugar do excesso nas economias humanas. Isso é o que temos na economia erótica de que nos fala Bataille, ou nas reflexões de Foucault sobre a loucura, e é também o que se apresenta nesta ética do dom que nos propõe Derrida. O que se espera da dádiva é que ela seja excessiva em relação à racionalidade das trocas. Esse seria seu sentido ético, bem próximo ao erotismo tal como concebido por Bataille. Uma relação amorosa reduzida a um contrato de obrigações e contra-obrigações precisas perder-se-ia numa fria relação contratual. «The gift “calls” upon an expenditure without reserve, for a giving that wants no payback, for distribution with no expectation of retribution, reciprocity, or reappropriation». A ética do dom, assim, não pode buscar a soma zero da retribuição. Por isso mesmo, a dádiva em si é impossível. Mas é a possibilidade dessa impossibilidade que nos mobilizaria eticamente diante da presença do outro, da outra. 
«The gift is our passion. “Economy”, on the other hand, denotes the domain of presences, of presents, of the commercial transactions, the reasonable rules, the law of customary exchanges, the plans and projects, the rites and rituals, of ordinary life and time» (Caputo, p. 145).
Derrida não quer negar a economia e as trocas proporcionais. Pelo contrário, ele apenas entende que nossos próprios impulsos narcisistas, que procuram afirmar o eu como destino de todos as nossas “despesas” (aqui no sentido batailleano), que o retorno de nossos investimentos libidinais, só fazem sentido diante de uma abertura fenomenológica que tem como fundamento a (im)possibilidade da dádiva, a presença do outro, da outra. Assim: 
«Derrida thus points to a double injunctive, which is a bit of a double bind (that’s a surprise), both to give and to commerce, to love God and mammon. He is saying at one and the same time; (1) Give, but remember how to gift limits itself. Because there never is a gift (don), the gift is the impossible that we all desire; because it annuls itself the instant it would come to be, if it ever does, the gift is what we most want to make present. The gift is our passion and our longing, what we desire, what drives us mad with desire, and what drives us on» (Caputo, p. 147).

Neste ponto, podemos passar a tratar mais diretamente o tema sobre o qual prometemos discorrer no começo deste texto. Som na caixa!


É em direção à ambivalência que há entre narcisismo e dádiva que chamaríamos atenção, ou seja, à inexistência de uma «distinção clara entre dádiva e economia», entre «narcisismo e não narcisismo, mas apenas certos graus, gradações, ou economias do narcisismo”. É neste terreno precário, indecidível, que a ideia de uma quase-identidade se torna possível como âmbito de uma ética amorosa. Para Derrida, então, é necessário ver essas gradações que tornam o amor-próprio «mais ou menos egoísta» (Caputo, p. 148). 
«We are all more or less narcissistic, for that is what the agente/subject is. […] The agent, Aristotle and the medieval said, acts for its own good. If the agent expends all its energies on the other without return, that is after all what the agent wants, and that how the agent gets her kicks». 
Desde Freud, sabemos que o narcisismo é um investimento, uma estrutura, fundamental da psique humana: sem ela, sem a descontinuidade que ela instaura (como diria Bataille) não seria absolutamente possível qualquer amor, erotismo, qualquer impulso em direção ao outro, à outra, qualquer excesso. Porém o que diz Derrida é mais radical, mais lacaniano (mais levinasiano, certamente): sem o outro, a outra, mesmo o narcisismo e o investimento numa economia da troca e da recuperação do investimento seria impossível. Se é possível imputar à ideia de erotismo em Bataille um desejo místico da continuidade, indiferenciação, entre os seres, um desejo orgiástico, uma certa pulsão de morte, para Derrida é a partir da constatação  da existência paradoxal entre impulsos de continuidade e descontinuidade – ou seja, entre um impulso generoso com respeito à alteridade, por um lado, e nossa própria certificação na descontinuidade, na subjetividade autodelimitada, nosso próprio «narcisismo ininterrupto», «pusilânime», por outro - que devemos pensar nossa relação com a outra pessoa, ser. Essa relação ficaria mais evidente se a definirmos como uma relação amorosa, isto é, como investimento em direção à outra pessoa, a algo não dado, excessivo e, ao mesmo tempo, em direção a algo que nos é o mais próximo.

Isso não significa, evidentemente, que consigamos nos manter dentro daquilo que é nosso chamado apelo ético, embora mesmo ao negá-lo não consigamos deixar de parar a sua pulsação. As frustrações amorosas promovidas por uma cultura narcisista são uma evidência nessa direção. Não costumo citar Bauman, e não gosto muito do Amor líquido, e pelo que saiba Bauman não está nem um pouco preocupado com isso. Há ali, no entanto, uma observação que nos diz respeito diretamente. A partir de Benedict Anderson e Richard Sennett, Bauman fala da transformação de categorias políticas em psicológicas, da transmutação da ideia de uma comunidade política para uma “comunidade imaginada” a partir das emoções. Dada a estrutura deste texto, é preciso prevenirmos o leitor ou leitora de que não pretendemos corroborar de modo inocente com esse tipo de transmutação, ou seja, procurar um fundamento sentimental comunitário como solução à dificuldade de discussão política do âmbito social. 

Ocorre-nos, entretanto, que uma hipertrofia da subjetividade, e de estruturas narcisistas de reprodução da vida comunitária, parecem ocorrer precisamente quando a subjetividade, quando o indivíduo narcisisticamente investido se apresenta como uma impossibilidade. Ora, quem em sã consciência, poderia falar hoje da viabilidade política, cultural, de um autocentramento subjetivo, tal como o concebeu o pensamento liberal? É essa impossibilidade aliás que marca certa angústia, nostalgia, que percebemos em obras como Corrosão do Caráter, de Sennett, ou em toda a obra de Paul Virilio. E no entanto é o narcisismo radical de um sujeito autocentrado que procura a todo custo maximizar o seu prazer, o controle de seus investimentos eróticos como um todo, com que a sociedade do consumo nos acena diuturnamente. Extenuamo-nos para realizar um gozo que não é nosso, mas que afinal aparece como se fosse.

O outro lado deste impulso é algo paradoxal com respeito a este desejo de retorno seguro de investimentos libidinais. O amor romântico parece também se investir como desejo de encontrar unidade, consenso, coesão, precisamente quando expectativas de construção política da comunidade se esvaem. O ponto aqui que merece reflexão, naturalmente, é tanto a ideia de amor romântico que temos em mente quanto a noção de comunidade em questão. Deve estar bastante clara com respeito a esta última que a suposição de um consenso identitario está longe daquilo que temos em mente. A nostalgia baumaniana, sennettiana e viriliana, portanto, não nos dizem diretamente respeito. 

Com respeito ao amor romântico, prosseguiremos o nosso texto através do auxílio de Levinas, que acreditamos, como Caputo, constituir uma referência fundamental para entender a ética derridiana. Para tal, nos valeremos das entrevistas que ele concede no Ética e Infinito. Ali ele realiza um apanhado abrangente de sua obra. Interessante perceber nessas entrevistas o caminho que Levinas faz ao lado da fenomenologia de base ontológica de Martin Heidegger, e, a partir de certo ponto, para fora da solidão da existência, do “há”, e em direção a uma ética fundamentada no absoluto da alteridade – num certo gesto religioso que comporta essa profissão de fé. Assim: «A solidão era um tema “existencialista”. A existência descrevia-se na época como o despertar da solidão, ou como o isolamento na angústia» (Levinas, p. 49). Os termos em que a diferenciação levinasiana com respeito à fenomenologia de base “existencial” se anuncia, já em De l’existance a l’existant, não deixa dúvidas sobre o seu sentido, sua direção: trata-se aqui de uma ética do amor, não importa quão desgastada essa palavra soe, com toda à sua carga de moderno subjetivismo. «Desconfio da palavra “amor”, que está estragada, mas a responsabilidade por outrem, o ser-para-o-outro, pareceu-me desde esta época parar o rumor anónimo e insiginificativo do ser. É sob a forma de uma tal relação que me surgiu a libertação do “há”» (Ibid.). Isto é, libertação com respeito ao “há”, ao seu confinamento em algum modo narcisista.

Este outro que é o meu destino ético é alguém que eu conheço, mas que não pode ser cingido em meu conhecer, antes o desafia. É preciso por certo conhecer o outro, a outra, a quem se ama. No entanto, uma ética amorosa pararia cedo demais, abortada, nestes limites. Toda tentativa de conhecer, mapear, de desnudar o outro, a outra, é, para Levinas, uma tentativa também de dominá-lo, de dominá-la: é necessário pois aceitar a irredutibilidade da outra pessoa aos meus processos cognitivos. Nunca verdadeiramente saberemos onde o outro em sua alteridade esteve, está, pretende estar… Segundo esta ética amorosa, a outra pessoa é inesgotável; nada aqui pode anunciar, portanto, o conforto de uma harmonia entre almas tal qual anunciado no Banquete, ou um retorno a nossa essência. E se a alteridade marca assim os nossos processos de identificação, amorosos, estaremos para sempre à deriva.

Levinas, assim, força seu caminho para os lados da fenomenologia e, nesse gesto, influencia toda a aporética do pensamento derridiano – no que pese o fato de Derrida postar o seu gesto ético no terreno indecidível entre o conhecer e o abrir-se irredutivelmente, entre Deus e Mamon, entre a dádiva absoluta e a troca econômica, como dissemos acima. Para Levinas (p. 53): «O conhecimento mais audacioso e distante não nos põe em comunhão com o verdadeiramente outro; não substitui a socialidade: é ainda uma solidão». O gesto ético, dessa perspectiva, é também a aceitação de um tempo aberto em que a outra pessoa pode “surpreender” sempre. Dissemos “surpreender, e, todavia, essa palavra ainda não é adequada, na medida em que ela se define como um certo luto/júbilo da cognição: «O livro [Le temps et l’autre] mostra, em primeiro lugar, na relação com o outro, estruturas que não se reduzem à intencionalidade. Põem em dúvida a ideia husserliana de que a intencionalidade representa a própria espiritualidade do espírito. E o livro procura compreender o papel do tempo nesta relação: o tempo não é uma simples experiência da duração, mas um dinamismo que nos leva para outro lado diferente das coisas que possuímos» (ibid.). O desejo de posse, neste sentido, é um desejo de parar esse tempo em que o outro pode não comparecer, pode não me atender, mas tal abertura temporal é a única possibilidade de que a alteridade da outra pessoa continue viva e inesgotável. Curioso como essa visão aparentemente idealizada do amor pode afinal se apresentar como não idealista.

«Totalmente em oposição ao conhecimento que é supressão da alteridade e que, no “saber absoluto” de Hegel, celebra a “identidade do idêntico com o não-idêntico”, a alteridade e a dualidade não desaparecem na relação amorosa. A ideia de um amor que seria uma confusão entre dois seres é uma falsa ideia romântica. O patético da relação erótica reside no facto de serem dois, e de o outro ser aí absolutamente outro» (Levinas, p. 58).
Para quem pensa que o irracionalismo é a consequência necessária dessa ética amorosa, Levinas esclarece: «O não-conhecer não deve aqui compreender-se como uma privação do conhecimento. A imprevisibilidade só é a forma da alteridade relativamente ao  conhecimento. Para este, o outro é essencialmente o que é imprevisível. Mas a alteridade, no eros, não é sinónimo de imprevisibilidade. Não é como um malogro do saber que o amor é amor» (Ibid.). É para além desse malogro que o gesto amoroso parece se colocar, segundo essa perspectiva, ou seja, para além de uma fenomenologia que tenha como base a consciência ou o ser. Por isso mesmo:

«O patético do amor consiste […] numa dualidade insuperável entre os seres; é uma relação com aquilo que se esquiva para sempre. A relação não neutraliza, ipso facto, a alteridade, mas conserva-a» (Levinas, p. 59).
A relação ética e amorosa com a alteridade, seu aceno não narcisista, fica patente ao adentramos o terreno sensual da carícia. A carícia pode obviamente ser entendida como uma técnica de excitação da outra pessoa, certamente. Neste sentido, ela é racionalizável, controlável, procura efeitos específicos, sequências bem-sucedidas. Para Levinas, entretanto, o acariciar tem algo de intrinsecamente nômade. A carícia desta perspectiva é algo essencialmente não objetivável ou racionalizável: «Quem é acariciado não é, propriamente falando, tocado. Não é o aveludado ou a tepidez desta mão dada no contacto, que a carícia procura. É a procura da carícia que constitui a sua essência, pelo facto de a carícia não saber o que procura. Este «não saber», este desordenamento fundamental é-lhe essencial. É como um jogo com algo que se esconde e um jogo absolutamente sem projecto nem plano, não como aquilo que pode tornar-se nosso e nós, mas como qualquer coisa de outro, sempre outro, sempre inacessível, sempre por chegar. E a carícia é a espera desse puro fruto, sem conteúdo» (Levinas, p. 61).

Poderíamos pensar que na carícia me encontro postado diante da imanência do outro, de sua presença irretorquível. Mas essa presença é em si uma abertura, algo que só se oferece como esperança nas promessas vagas e sensuais do futuro. A alteridade não está dada, e esse não estar dado é o que me impulsiona, o que me comanda a ir também mais adiante, a estabelecer uma relação generosa, não objetal comigo próprio, com a outra pessoa e com o tempo. Pelo fato de que a alteridade se oferece como abertura amorosa, sensual, existencial, mantenho-me eu próprio aberto.

Este texto inicia discorrendo acerca de algumas dificuldades éticas em torno do político e se desdobra em algumas considerações básicas sobre o amor. Em si esse percurso é politicamente problemático. Toda comunidade afetiva como base do político constitui um problema, uma ameaça a convicções verdadeiramente democráticas. No entanto, essa conclusão não poderia estar mais distante da perspectiva derrideana acerca do político, do ético ou do amor. Derrida, como adverte Caputo, foi injustamente criticado como um teórico das reivindicações nacionalistas na Europa. A ideia de comunidade afetiva como base emocional das reivindicações nacionalistas não lhe poderia ser atribuída. Uma resposta a esse tipo de acusação é dada pela própria ideia de “comunidade sem comunidade”, pelo agonismo que lhe é essencial, tal como a esboçamos aqui. A tensão e a contradição, a hostilidade e a hospitalidade, são elementos fundantes de uma comunidade que em princípio estaria paradoxalmente aberta para o seu outro. São também, obviamente, elementos vitais do amor.

Neste ponto, percebemos o quanto o problema de pensar a política a partir da ideia de uma comunidade afetiva, ou, mais precisamente, pensar o papel do afeto no estabelecimento de laços políticos, não parece ser exatamente um problema, como parece supor Zygmunt Bauman. O problema é a noção de afeto e comunidade que temos em mente. Pensemos num exemplo concreto, pensemos na base afetiva de lutas políticas como as diversas “ocupações” que prosperam hoje no Brasil. Parece-nos claro a reivindicação democrática, por exemplo, do Ocupe Estelita, de sua defesa de uma comunidade afetiva (cultural e historicamente determinada), para além da defesa de um patrimônio arquitetónico, da transitabilidade etc. O afeto não parece ali uma defesa retrógrada de um passado idealizado, de uma comunidade fechada à alteridade do futuro. Pelo contrário, em primeira instância, esse movimento requer uma redefinição da estrutura política e social de ocupação do espaço urbano que está em questão. Isso passa por questões como educação, enfrentamenteo da violência, democratização das decisões, entre muitas outras. A política, nesse  contexto, pode ser afetiva sem ser retrógrada, conservadora. E vice-versa: o conservadorismo, autoritarismo, prosperam exatamente onde o afeto não é possível, onde o discurso de sabor tecnocrático esconde o interesse tacanha, a objetificação, redução da alteridade.

As ponderações ética sobre o político, tal qual as expusemos acima, apenas abriram espaço para reflexões mais específicas sobre ética no amor. Ocorrem-me as dificuldades em que Feuerbach se mete ao tentar fazer algo numa mesma direção ao pensar os seus Princípios para uma Filosofia do Futuro. Afinal, esse amor pelo absoluto da alteridade seria apenas uma transmutação de um sentimento religioso e, como tal, acena com as promessas da negatividade, do curto-circuito que presença do outro proporciona – este certo “sentimento oceânico” no qual gozamos negativamente, diria Freud. Ainda aqui estaríamos de certo modo no terreno do narcisismo. Essa ética que se funda nas demandas da alteridade poderia ser recriminada pelo uso de certos conceitos de sabor religioso - conceitos judaicos, mais claramente. Isto ocorre, por exemplo, quando constatamos que a alteridade se abre para nós, de acordo com tal perspectiva, como uma promessa - uma promessa aberta, sem telos, mas uma promessa. O mergulho no absoluto da alteridade nos coloca diante de um tipo de messianismo sem Messias. O futuro nos chama - e no entanto esse futuro é como um significante vazio, nada está propriamente lá, nada está propriamente dado ou dito, mas sempre em processo de ser enunciado. Rigorosamente, tanto Derrida quanto Levinas aceitam esse tipo de ponderação e acreditam que o pensamento ocidental não pode negar a tradição religiosa dentro da qual negocia sua existência (ver Caputo, caps. 5 e 6). Ajuda a entender o que aqui está em jogo quando percebemos que essa promessa, esse “messianismo sem Messias”, busca nos oferecer uma dimensão do político e do ético radicalmente desessencializados e que, por isso mesmo, não pode recusar a sua historicidade, o chão sobre o qual pode ou não se abrir. A fuga do essencialismo é a forma como o ético e o político podem adquirir um apelo francamente, radicalmente democrático. Mas é também a maneira como as promessas do amor podem continuar vivas em nós.





[4] Parece evidente a maneira como Derrida se coloca diante de uma tradição de pensar a dádiva que encontra em Mauss seu ponto mais alto.”Bien que toutes les anthropologies, voire métaphysiques du don, aient, à juste titre et avec raison, traite ensemble, comme un système, le do net la dette, le do net le cycle de restitution, le do net l’emprunt, le do net le crédit, le do net le contre-don, nous nous départissons ici, de façon vive et tranchante, de cette tradition».

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A ausência de cidadania dos imigrantes ou o confuso pertencimento ao Estado-nação

Imigrantes albaneses chegam à Itália, 1991 (Fonte: Corbis)

Por Raquel Camargo - Professora Substituta do Dept. de Ciências Jurídicas da UFPB

H. Arendt nos ensina que o Estado-moderno, desde o seu início, assumiu a forma de Estado-nação. Ou, nos termos de Habermas, com o “desencantamento do mundo” a organização que veio suprir a contento a necessidade de racionalização da vida, sem perder o componente da transcendência, foi exatamente o Estado-nação. Mistura engenhosa e criativa, porém quase improvável, o Estado-nação forneceu a melhor resposta: um novo modo de legitimação do poder – republicano e racional – convivendo com o pertencimento, mais ou menos espontâneo, mais ou menos forjado, a uma ideia de nação pautada no compartilhamento de uma língua, de uma história e de uma vontade difusa de “viver junto” (RENAN, 1992). Em outras palavras, o Estado-nação, ao pertencimento a uma comunidade de livres e iguais – o Estado – juntava um sistema de representação capaz de produzir sentido para a alma – a nação.

Ao falar desse tema, que tanto me estimula e inquieta, não posso deixar de mencionar o meu próprio itinerário pessoal, longo e surreal, de convencimento de um membro de minha banca de defesa final do mestrado da possibilidade de usar este binômio (Estado-nação) sem estar cometendo a maior incoerência jurídica de todos os tempos. Quando eu estava perto de vencê-lo pelo cansaço, chegamos a um acordo meio bizarro: cada vez que eu pronunciasse ou escrevesse a polêmica expressão, deveria me justificar mostrando as razões de fazê-lo. Pois bem, acho que sou dura na queda, não desisto: volta e meia retorno com o problemático, porém não menos fascinante, Estado-nação.

Começo tentando fazer justiça, dizendo que compreendo as inquietações do meu professor. Ora, falar em Estado-nação é trazer a todo momento um componente de pertencimento cultural e acreditar numa ideia “vaga”, historicamente datada, de compartilhamento de crenças, identidades, hábitos e vários outros elementos inventados para que encontrássemos certo sentido no ato de vivermos juntos. Portanto, juridicamente falando, e já pedindo desculpas pelo trocadilho, acreditar nesse sentido não faz mais nenhum sentido. Tal atitude é, inclusive, nociva, pois implica em excluir do pertencimento ao Estado todos aqueles que não podem se inserir na “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008) que convencionamos chamar de nação. Devemos, pois, seguindo este raciocínio, substituir a expressão “Estado-nação” por “Estado-territorial”, e ao nos referirmos à dimensão pessoal do Estado, devemos então falar em “povo”, não em “nação”.

Essa fórmula/estratégia de substituição tem um objetivo claro e configura uma tese defendida por vários autores, sobretudo aqueles que têm uma inserção transdisciplinar no campo da política e do direito internacional (CORRAL, 2006). A ideia é de que, como diria Schnnaper (2003), alguns conceitos escondem verdadeiras teorias. Assim, trocar “Estado-nação” por “Estado-territorial” seria defender a ideia segundo a qual, nos Estados democráticos, o povo não precisa mais se configurar como nação para que haja o pertencimento estatal, basta fazer parte dos limites territoriais dentro dos quais o Estado exerce a sua jurisdição. A principal e melhor consequência deste rearranjo é que a cidadania deixaria de depender da nacionalidade e os estrangeiros poderiam ser tornar cidadãos.

Não é que não considere esse resultado o melhor possível, ao contrário. Dentro do melhor dos mundos possíveis é exatamente isso o almejado, que o mundo não mais se divida em Estado-nações e os estrangeiros possam ter acesso a uma cidadania que lhes garanta direitos fundados no princípio do indivíduo, e não no pertencimento nacional. A história, porém, nos deixa calejados. Como dar concretude ao povo senão através da nação? Claude Lefort (2003) não tinha razão ao dizer que o povo sem nação é mera abstração? Quando eu falo em “povo”, como posso atribuir uma forma a essa massa disforme senão por via da nação? O povo... Mas que povo? O povo francês, o povo inglês, o povo brasileiro etc. Por outro lado, não foi exatamente através do Estado-nação que conseguimos dar forma e conteúdo ao Estado, desde Hobbes pensado como uma pessoa fictícia?

As palavras dão nomes as coisas, são suportes, ou melhor, signos linguísticos que trazem significados e nos permitem representar o mundo. Mas as coisas existem! No caso da nação, por mais que a palavra expresse uma invenção do mundo da cultura, isto é, do mundo dos significados, ela não foi pensada em meio a um vazio. Ela é uma ficção, sim, mas nem por isso é uma mentira. Ficções são invenções que de alguma forma representam a realidade. A nação não pode ser observada da maneira como observamos um fenômeno da natureza, por exemplo. Porém, a nação traduz um sentimento que não pode ser negligenciado (acabamos de assistir as Olimpíadas em Londres, por sinal...).

Longe de mim achar que o modelo de Estado-nação não gera exclusões as mais drásticas possíveis. É exatamente a nação, ou melhor, a criativa mistura entre Estado e nação, que faz com que a até hoje a cidadania dependa da nacionalidade. Consequencia disso: os imigrantes estrangeiros não podem ser considerados cidadãos, o que os colocam em uma situação delicada na hora de fazer valer seus direitos.

De fato, é impossível negar a crise do modelo de Estado-nação. “Crise”, no entanto, não implica em superação imediata, e sim em um momento agonizante a partir do qual novos e desconhecidos caminhos podem ser imaginados. As crises configuram momentos ideais para pensar, questionar e vislumbrar novas possibilidades. O importante, nesse exercício, é “não jogar fora o bebê junto com a água do banho”, como faz, por exemplo, Mario Vargas Llosa ao culpar o Estado-nação por todos os males e todas as crueldades produzidas pela humanidade e acusá-lo do exemplo privilegiado de uma imaginação maligna (SCHNNAPER, 2003).

Para esse tipo de reflexão, a leitura de Butler me parece uma ótima opção. Ao tentar rearranjar a ideia de Estado-nação, ela parte de uma mistura tão criativa e improvável quanto àquela que deu origem a esse conceito: literatura comparada, política, estética e uma pitada de filosofia da linguagem. Uma associação muito livre de ideias e observações da realidade que nos levam ao estimulante conceito de “contradição perfomativa”. A que isso dá nome? Explico-me.

Butler, observando da janela de sua casa uma manifestação de imigrantes que acontecia em uma rua qualquer de Los Angeles, foi levada a exercer sua imaginação e nos brindar com o belíssimo articulado de ideias que compõe o livro Quem canta o Estado Nação?. A situação é a seguinte: no ano de 2006, imigrantes hispânicos em situação irregular fizeram uma marcha na qual foi cantado, como forma de protesto, o hino nacional estadunidense em espanhol. Butler viu nessa manifestação performática o caldo perfeito para a reflexão sobre imigrantes ilegais sem nacionalidade, portanto sem cidadania.

A primeira coisa que Butler identificou foi a existência de um “nós”, isto é, um sujeito coletivo, que ao cantar hino em espanhol reivindicava, de forma performática, a inclusão na nação estadunidense. Esse pedido de inclusão, porém, não era tão simples, pois não se tratava apenas de se inserir em uma ideia já existente de nação. O buraco, ou melhor, a nação, era mais embaixo: o ato de cantar o hino estadunidense em espanhol trazia consigo o problema da igualdade, sem a qual o “nós” que compõe a nação fica impronunciável (BUTLER, 2009). A igualdade necessária para pronunciar o “nós” que compõe a nação, porém, é excludente. Tanto que, na ocasião, Bush se pronunciou para deixar claro que “o hino nacional só se canta em inglês”, do contrário, ele deixa de ser nacional. Está montado o drama. Parece que o máximo que poderia ser feito em termos de inclusão na ideia de nação era admitir um pouquinho de pluralismo para incluir umas tantas pessoas e depois redefinir os critérios de igualdade para a partir daí excluir umas tantas outras.

Felizmente Butler não parou por aí. E se considerássemos que manifestações como estas são exercícios retórico-performativos que, de tão improváveis, paradoxais e contraditórios poderiam nos fornecer novos modelos para reorganizar o poder? Afinal, não são das misturas mais impensáveis e experimentais que surgem os imponderáveis da vida? Vejamos então até que ponto o exercício da imaginação pode nos levar: a tal marcha dos imigrantes é uma contradição performativa em todos os seus termos – e seria uma catástrofe se não fosse tão inovadora. O hino nacional foi cantado em espanhol, contrariando o requisito monolinguístico da nação, e na rua, espaço público por excelência no qual os imigrantes ilegais não têm o direito de se reunir. Ou seja, os imigrantes que participaram do protesto estavam exercendo direitos que, na realidade, não possuíam. Apropriaram-se daquilo que pediam, tornando visível uma liberdade que, contraditoriamente, não estava lá (BUTLER, 2009). Não se pode deixar de ver a importância simbólica deste ato: a nação estava se reproduzindo em termos retóricos não autorizados através dos imigrantes!

O que realmente existiu e o que pôde ser gerado com esse ato político contraditório e performático? Que relação se pode traçar entre o que entendemos por nação, ou, se preferirmos, a nossas representações de nação, e a realidade que se deixa ser observada? Em outras palavras, esse tipo de exercício imaginativo é útil para resolver, ou ao menos explicar, os problemas que realmente importam? O que consigo perceber observando a realidade é que, no mundo de hoje, as pessoas se deslocam cada vez mais e nesses movimentos os limites e fronteiras, ainda que não passem de construções imaginárias, repercutem de forma muito real na vida de todos nós. É só experimentar atravessar uma fronteira nacional sem um visto ou um passaporte alegando ser cidadão do mundo para que se sinta na pele os efeitos do não pertencimento nacional. O que me faz concluir que o Estado-nação é problemático, mas, ainda assim, não podemos prescindir de refletir e nem mesmo de considerar a existência, talvez tardia, dele. E uma boa maneira de fazer isso é se acostando em autores que, de forma criativa, tentam resignificar a própria realidade.

Acabo, pois, como Butler, sem encontrar uma resposta certa para o problema da exclusão dos imigrantes estrangeiros do pertencimento nacional, mas acreditando que as contradições são bem vindas. Devemos levá-las em conta se queremos mudar aquilo que, embora saibamos uma construção e por isso passível de ser relativizada, ainda nos apresenta como praticamente imutável. É o caso do Estado-nação.
Confesso que gostei do que escutei na rua. Soava bem, era uma linda canção. Creio que nos deixa com uma pergunta acerca da relação entre linguagem, performatividade e política. Uma vez que deixamos de lado o ponto de vista que afirma que nenhuma posição política pode basear-se em uma contradição performativa, e admitimos a função performativa como uma declaração e um ato cujos efeitos se despregam no tempo, então podemos considerar a tese oposta, isto é, que não pode haver uma política de mudança radical sem contradição performativa [...] (BUTLER, 2009).

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Quién le canta al Estado-Nación? Buenos Aires: Paidós, 2009. 
CORRAL, Benito Aláez. Nacionalidad, ciudadanía y democracia. ¿A quién pertence La Constituición? Madrid: Tribunal Constitucional, 2006. 
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
LEFORT, Claude. Nação e soberania. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise do Estado-nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation? Et autres essays politiques. AGORA, 1992.
SCHNAPPER, Dominique. La communauté des citoyens. Paris: Galimard, 2003.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol.2. Brasília: UNB, 2004.


sábado, 4 de dezembro de 2010

Triste partida de Fadela Amara ou: chiclete sociológico de uma trajetória nos movimentos sociais contemporâneos



Tâmara de Oliveira

O Cazzo é um blog reflexivo – ninguém pode negar. Comentando sobre a suposta solicitação de Jonatas Ferreira no sentido de que ele escrevesse drops ou até balas teóricas para o Cazzo (10.10.2010), Artur Perrusi, O Solicitado, chegou a comparar-se com Cynthia Hamlin e concluiu que esta fazia coisa mais fácil: chicletes teóricos. Pois desde esse dia eu tenho refletido sobre a pertinência de que essa produção de guloseimas seja democratizada e se estenda aos colaboradores do Cazzo. Sem entrar na discussão sobre o grau relativo de dificuldade da produção de balas, drops e chicletes (gosto de todos), resolvi realizar parcialmente a democratização, salpicando de teoria um fenômeno empírico e acreditando que o espírito democrático dos três editores torna supéflua uma mobilização reivindicativa. Digamos que será uma guloseima semi-sociológica. Porque é de uma trajetória nos movimentos sociais franceses que este texto pretende fazer um chiclete tutti frutti – já que de hortelã eu não gosto muito não.

a) Ingredientes ou momento descritivo: Fadela Amara é uma francesa de 46 anos que, como Zinedine Zidane, tem pais muçulmanos da Cabília (aquela região da Argélia que Bourdieu tornou sociologicamente famosa). Ela milita desde os anos 1980 no SOS Racisme – associação de luta contra o racismo, criada também nos anos 1980 a partir de uma marcha anti-racista organizada por dois padres católicos e por jovens com ascendência nas ex-colônias francesas, mas que desenvolveu-se, enquanto organização associativa, sob a influência do Partido Socialista francês. A partir do SOS Racisme e de um coletivo federado por essa associação (La Fédération Nationale des Maisons des Potes), Fadela Amara vai posteriormente concentrar-se sobre os problemas da condição das mulheres das periferias das cidades francesas – progressivamente sobrerrepresentadas por populações com ascendência nas ex-colônias e de confissão muçulmana.

domingo, 7 de novembro de 2010

A resolução liberal do paradoxo da identidade democrática


Artur Perrusi

Aproveito o ensejo (não sei bem qual seria, mas acho legal começar o texto assim) e publico uma resenha do livro de "MESURE, Sylvie & RENAUT, Alain (1998). Alter Ego: les paradoxes de l'identité démocratique. Paris: Flammarion".

A resenha saiu, originalmente, na revista Política & Trabalho (aqui). Ela é antiga, mas o livro ainda continua bem atual, até porque não foi traduzido no Brasil, existindo apenas uma tradução portuguesa (aqui). Além do mais, o tema interpela a nossa conjuntura.

Lá vai:

"Como articular a individualidade, e, portanto, a singularidade de todo ser humano com a condição de que todo indivíduo faz parte de uma comunidade, onde compartilha valores e identidades em comum? Como fazer isso em plena era democrática, cujos alicerces são os direitos humanos e a liberdade individual? Como conciliar a sacralização do indivíduo com a necessidade de normas coletivas? A reafirmação do sentido comunitário de toda identidade não entraria em contradição com a lógica do individualismo contemporâneo? O comunitarismo ou o multiculturalismo são incompatíveis com a visão liberal da democracia? São questões que o livro de Mesure e Renaut tentam esclarecer através de uma análise sutil e profunda, cujo mérito é a explicitação da polêmica, sem subterfúgios ou tergiversações sobre a complexidade do assunto, e o respeito às diversas posições sobre o tema, principalmente em relação ao multiculturalismo americano.

Vale dizer que não é a primeira vez que os dois autores escrevem juntos. Em 1996, produziram um instigante estudo sobre a questão dos valores na Contemporaneidade, retomando a discussão weberiana sobre o politeísmo dos valores e a "guerra dos deuses" (MESURE & RENAUT, 1996). Nitidamente, são pensadores que desconfiam do relativismo e do niilismo contemporâneo, criticando a desconstrução do sujeito patrocinada pelo pós-estruturalismo francês e procurando uma saída filosófica, cuja estratégia passaria pelo resgate da ética e por uma filosofia que tratasse racionalmente os valores do mundo moderno . Pois tanto Mesure como Renaut fazem parte de uma nova geração filosófica que, nos anos 90, começa a substituir a antiga geração pós-estruturalista. Há, nesse período, uma preocupação acentuada com a valorização da ética e da democracia, da individualidade e da subjetividade. Aparentemente, uma volta aos "velhos temas", quiçá impulsionada pelo recuo de várias filosofias, antes dominantes no cenário filosófico, agora fenecendo diante das reviravoltas da história. A década de noventa, talvez, pareça um deserto cheio de cadáveres reluzindo ao sol: Marx virou um tijolinho, vendido como souvenir do Muro nos mercados capitalistas; Freud só resiste nos delírios dos lacanianos; Heidegger, depois do "caso Farias", foi banido pelo Tribunal de Filosofias, e Nietzsche dançou feio nos bailes do neokantismo.

Dos dois autores, Sylvie Mesure seria a menos conhecida e a mais acadêmica, sem tintura midiática. Tradutora de Dilthey e Scheler, é autora de um ensaio sobre Aron (MESURE, Sylvie, Raymond Aron et la raison historique, Paris: Vrin, 1984) e de um estudo sobre Dilthey (Ibid. Dilthey et la fondation des sciences historiques. Paris: PUF, 1990). Já Alain Renaut é um pensador envolvido em várias polêmicas filosóficas, sendo uma figura um tanto midiática, embora não se iguale ao seu grande parceiro de co-autorias, Luc Ferry. É deles, inclusive, o ambicioso e controverso "O pensamento 68" (FERRY, Luc & RENAUT, Alain. La pensée 68.Paris: Gallimard, 1988), cuja crítica implacável ao chamado pós-estruturalismo gerou vários inimigos no campo acadêmico francês. E não pararam por aí: organizaram uma coletânea, "Por que não somos nietzschianos?" (FERRY, Luc & RENAUT (orgs), Porquoi nous ne sommes pas Nietzscheens. Paris: Grasset, 1991), que destrói a marteladas Nietzsche e, claro, como conseqüência, o nietzschianismo francês.

Além de Luc Ferry, pode-se incluir nessa "nova geração" Robert Legros, Vincent Descombes, Andre Comte Sponville, Alain Boyer; além desses, convém lembrar, na renovação dos anos 90, a produção filosófica de um Alain Finkielkraut ou de um E. de Fontenay, todos os dois da matriz neo-heideggeriana, como também um conjunto de pensadores, conhecidos como neo-toquevilianos, todos devedores de alguma forma de Louis Dumont: G. Lipovetsky, M. Gauchet e A. Ehrenberg.

De todo modo, a nova geração não é homogênea filosoficamente, apresentando diferenças evidentes, embora tenha os mesmos adversários. Ou tinha, pois, nos anos 90, a nova filosofia francesa decretou a morte do dito pensamento 68 (Foucault, Deleuze, Derrida, Lyotard, Althusser, Bourdieu...). De qualquer forma, com a morte física de praticamente todos os "soixante-huitards" , além do fato de não terem deixado, pelo menos por enquanto, nenhum sucessor de relevo, a polêmica tornou-se unilateral, sem verdadeiros interlocutores, com o campo adversário repleto de fantasmas. Realmente, nem de tudo ficou um pouco e o que sobrou foi um deserto.

Mas a vida continua e, se os velhos adversários desapareceram, sempre surgem outros, florindo um pouco o deserto. E o tempo, convenhamos, amolece até mesmo os mais duros: o "Alter Ego", apesar de todos os combates, não é um livro demolidor — ao contrário, a crítica mantém-se respeitosa, mesmo nos grandes momentos de discordância, diante das posições dos adversários. Parece que, quando Renaut escreve com Ferry, é mais contundente e peremptório, suavizando o tom na companhia de Mesure. Ou, talvez, a explicação seja outra: os principais adversários de "Alter Ego", a começar por Charles Taylor, não apregoam o fim do sujeito e nem percebem a subjetividade como o campo da dominação, como faz, por exemplo, o pós-estruturalismo; por isso, a crítica pôde ser feita sem que se estabelecesse uma diferença intransponível. Além do mais, como a pretensão de Mesure e Renaut seria a de "corrigir" o liberalismo político, incorporando criticamente as objeções que lhe fazem o multiculturalismo e o republicanismo, as divergências estão mais no campo das interpretações e das soluções propostas do que em diferenças de fundo paradigmático; afinal, dois expoentes do multiculturalismo, como o próprio Taylor e Michael Walzer, dizem-se "liberais" e propõem uma crítica ao liberalismo clássico a partir de uma posição liberal dita mais hospitaleira.

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quarta-feira, 23 de junho de 2010

Greve ou motim francês na Copa Mundial de 2010 – negócio de Estado, de mídias e de celebridades



Tâmara de Oliveira

No dia 20 de junho de 2010, a Copa da África do Sul foi palco de um fato que eu, enquanto desconhecedora da história do futebol, penso ser inédito : todos os jogadores da equipe de França, em pleno campo de treinamento público, anunciaram que recusavam treinar por causa da exclusão oficial de um dos seus companheiros – o internacional e pouco tranquilo Nicolas Anelka – alegando que o procedimento de tal exclusão fôra incorreto. Segundo o documento dos grevistas ou amotinados (porque eles apresentaram um manifesto escrito !), a FFF (Federação Francesa de Futebol) excluiu o jogador fundamentando-se apenas em rumores das mídias, sem que a eles próprios, testemunhas da altercação verbal entre o treinador (Raymond Domenech) e Anelka, tivesse sido dado o direito de apresentar sua versão dos fatos. Nova revolução francesa ? Agora protagonizada pelos cidadãos-jogadores de um futebol milionário ?!!!