"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
domingo, 7 de novembro de 2010
A resolução liberal do paradoxo da identidade democrática
Artur Perrusi
Aproveito o ensejo (não sei bem qual seria, mas acho legal começar o texto assim) e publico uma resenha do livro de "MESURE, Sylvie & RENAUT, Alain (1998). Alter Ego: les paradoxes de l'identité démocratique. Paris: Flammarion".
A resenha saiu, originalmente, na revista Política & Trabalho (aqui). Ela é antiga, mas o livro ainda continua bem atual, até porque não foi traduzido no Brasil, existindo apenas uma tradução portuguesa (aqui). Além do mais, o tema interpela a nossa conjuntura.
Lá vai:
"Como articular a individualidade, e, portanto, a singularidade de todo ser humano com a condição de que todo indivíduo faz parte de uma comunidade, onde compartilha valores e identidades em comum? Como fazer isso em plena era democrática, cujos alicerces são os direitos humanos e a liberdade individual? Como conciliar a sacralização do indivíduo com a necessidade de normas coletivas? A reafirmação do sentido comunitário de toda identidade não entraria em contradição com a lógica do individualismo contemporâneo? O comunitarismo ou o multiculturalismo são incompatíveis com a visão liberal da democracia? São questões que o livro de Mesure e Renaut tentam esclarecer através de uma análise sutil e profunda, cujo mérito é a explicitação da polêmica, sem subterfúgios ou tergiversações sobre a complexidade do assunto, e o respeito às diversas posições sobre o tema, principalmente em relação ao multiculturalismo americano.
Vale dizer que não é a primeira vez que os dois autores escrevem juntos. Em 1996, produziram um instigante estudo sobre a questão dos valores na Contemporaneidade, retomando a discussão weberiana sobre o politeísmo dos valores e a "guerra dos deuses" (MESURE & RENAUT, 1996). Nitidamente, são pensadores que desconfiam do relativismo e do niilismo contemporâneo, criticando a desconstrução do sujeito patrocinada pelo pós-estruturalismo francês e procurando uma saída filosófica, cuja estratégia passaria pelo resgate da ética e por uma filosofia que tratasse racionalmente os valores do mundo moderno . Pois tanto Mesure como Renaut fazem parte de uma nova geração filosófica que, nos anos 90, começa a substituir a antiga geração pós-estruturalista. Há, nesse período, uma preocupação acentuada com a valorização da ética e da democracia, da individualidade e da subjetividade. Aparentemente, uma volta aos "velhos temas", quiçá impulsionada pelo recuo de várias filosofias, antes dominantes no cenário filosófico, agora fenecendo diante das reviravoltas da história. A década de noventa, talvez, pareça um deserto cheio de cadáveres reluzindo ao sol: Marx virou um tijolinho, vendido como souvenir do Muro nos mercados capitalistas; Freud só resiste nos delírios dos lacanianos; Heidegger, depois do "caso Farias", foi banido pelo Tribunal de Filosofias, e Nietzsche dançou feio nos bailes do neokantismo.
Dos dois autores, Sylvie Mesure seria a menos conhecida e a mais acadêmica, sem tintura midiática. Tradutora de Dilthey e Scheler, é autora de um ensaio sobre Aron (MESURE, Sylvie, Raymond Aron et la raison historique, Paris: Vrin, 1984) e de um estudo sobre Dilthey (Ibid. Dilthey et la fondation des sciences historiques. Paris: PUF, 1990). Já Alain Renaut é um pensador envolvido em várias polêmicas filosóficas, sendo uma figura um tanto midiática, embora não se iguale ao seu grande parceiro de co-autorias, Luc Ferry. É deles, inclusive, o ambicioso e controverso "O pensamento 68" (FERRY, Luc & RENAUT, Alain. La pensée 68.Paris: Gallimard, 1988), cuja crítica implacável ao chamado pós-estruturalismo gerou vários inimigos no campo acadêmico francês. E não pararam por aí: organizaram uma coletânea, "Por que não somos nietzschianos?" (FERRY, Luc & RENAUT (orgs), Porquoi nous ne sommes pas Nietzscheens. Paris: Grasset, 1991), que destrói a marteladas Nietzsche e, claro, como conseqüência, o nietzschianismo francês.
Além de Luc Ferry, pode-se incluir nessa "nova geração" Robert Legros, Vincent Descombes, Andre Comte Sponville, Alain Boyer; além desses, convém lembrar, na renovação dos anos 90, a produção filosófica de um Alain Finkielkraut ou de um E. de Fontenay, todos os dois da matriz neo-heideggeriana, como também um conjunto de pensadores, conhecidos como neo-toquevilianos, todos devedores de alguma forma de Louis Dumont: G. Lipovetsky, M. Gauchet e A. Ehrenberg.
De todo modo, a nova geração não é homogênea filosoficamente, apresentando diferenças evidentes, embora tenha os mesmos adversários. Ou tinha, pois, nos anos 90, a nova filosofia francesa decretou a morte do dito pensamento 68 (Foucault, Deleuze, Derrida, Lyotard, Althusser, Bourdieu...). De qualquer forma, com a morte física de praticamente todos os "soixante-huitards" , além do fato de não terem deixado, pelo menos por enquanto, nenhum sucessor de relevo, a polêmica tornou-se unilateral, sem verdadeiros interlocutores, com o campo adversário repleto de fantasmas. Realmente, nem de tudo ficou um pouco e o que sobrou foi um deserto.
Mas a vida continua e, se os velhos adversários desapareceram, sempre surgem outros, florindo um pouco o deserto. E o tempo, convenhamos, amolece até mesmo os mais duros: o "Alter Ego", apesar de todos os combates, não é um livro demolidor — ao contrário, a crítica mantém-se respeitosa, mesmo nos grandes momentos de discordância, diante das posições dos adversários. Parece que, quando Renaut escreve com Ferry, é mais contundente e peremptório, suavizando o tom na companhia de Mesure. Ou, talvez, a explicação seja outra: os principais adversários de "Alter Ego", a começar por Charles Taylor, não apregoam o fim do sujeito e nem percebem a subjetividade como o campo da dominação, como faz, por exemplo, o pós-estruturalismo; por isso, a crítica pôde ser feita sem que se estabelecesse uma diferença intransponível. Além do mais, como a pretensão de Mesure e Renaut seria a de "corrigir" o liberalismo político, incorporando criticamente as objeções que lhe fazem o multiculturalismo e o republicanismo, as divergências estão mais no campo das interpretações e das soluções propostas do que em diferenças de fundo paradigmático; afinal, dois expoentes do multiculturalismo, como o próprio Taylor e Michael Walzer, dizem-se "liberais" e propõem uma crítica ao liberalismo clássico a partir de uma posição liberal dita mais hospitaleira.
[Para acessar o texto completo, em PDF, clique aqui]
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
Bom dia Artur,
Eu nunca li esse livro e fui lendo sua resenha com a espontaneidade dos desconhecedores (embora, confesso, quando leio o nome de Alain Finkielkraut ja' fico com frio na espinha: considero esse camarada cada vez mais louco e perigoso com seu republicanismo cego, sua sustentação insustenta'vel do governo Sarkozy e seu ativismo em campanhas contra o componente muçulmano da França contemporânea).
Lendo, aos poucos fui lembrando de uma amigo que, depois de ler a obra principal de Alain Kardec sobre o espiritismo, disse o seguinte: "esse rapaz escreve tão parecido com Engels..." - ele fazia referência ao elemento evolucionista do espiritismo kardecista. Pois bem, eu lia sua resenha e ficava me dizendo: "esses dois argumentam tão parecido com Habermas...". A ai' no final você termina por dizer que eles têm afinidades com o "patriotismo constitucional" habermasiano. Fiquei confortada para com minha percepção. E, ao mesmo tempo, levantando o mesmo problema que as teses de Habermas colocam-me: a ação comunicativa e a ética da discussão parecem sempre supor um conceito de sociedade onde os conflitos e as relações de dominação são subsumidas pelas potencialidades intri'nsecas da comunicação. Ou seja, com racionalidade, boa vontade e tolerância, "é conversando que a gente se entende" (ouvi isso de Luciano Oliveira, como definição pedago'gica da teoria da ação comunicativa). Tudo muito bonito e, principalmente, são argumentações importantes para a cri'tica dos paradoxos multiculturalistas mas, como você bem disse, o argumento cheira a petição de princi'pios.
Em suma: acho que jogaram a a'gua, a bacia e o bebê fora, também no que diz respeito ao chamado po's-estruturalismo francês. Acho que sem recolocar os conflitos e as relações de dominação no centro da ana'lise, fica difi'cil enfrentar a cri'tica multiculturalista do liberalismo metafi'sico. Abraço.
Tâmara, concordo contigo...
As afinidades de Renaut (principalmente ele) com Habermas são patentes. Habermas defende um republicanismo bem temperado de liberalismo (vide sua discussão e polêmica com John Rawls).
Renaut é um "neokantiano", digamos assim. Não é propriamente um liberal -- republicano laico francês? Politcamente, é de centro; "culturalmente", progressista. Defendo que sua leitura gera um bom diálogo.
Finkielkraut desbundou geral -- muitos desses "novos filósofos", também. Na França, midiatizou, lascou.
Faltou citar Onfray, mas o conheço pouco. O que li me irritou.
Meu interesse nessas discussões seria a postulação política e ética de uma esquerda pós-totalitária. Minha tese (um dia, discuto melhor isso) é que precisamos mergulhar no liberalismo (principalmente, o de Rawls em diante), passando depois por uma crítica democrática à democracia liberal (chegando nalguns pontos em Boaventura) e, um dia, quem sabe, chegar à discussão sobre a esquerda e o socialismo, seja lá o que isso significa, realmente.
No campo da esquerda, nessa discussão, gosto muito de Ruy Fausto: "Marx: Lógica e Política" (Editora 34), "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana" (Paz e Terra) e "A esquerda difícil" (Perspectiva). Justamente, porque acho suas discussões sobre a noção de totalitarismo importantes.
Eita, Artur, isso é que é programa!
Mas a verdade é que eu também ando cada vez mais querendo pensar numa ética de uma esquerda po's-totalita'ria e, por que não dizer?, po's-multiculturalista também - que é para acabar com esse nego'cio de atacar Narizinho, Pedrinho, Emi'lia, o Visconde, tia Anasta'cia, Dona Benta e tio Barnabé. Afinal de contas, sou da geração do Si'tio do Picapau Amarelo!
Acho que você é gentil demais dizendo que Finkielkraut desbundou. Eu diria que ele rebundou-se, virou uma fonte de conservadorismo e islamofobia (tudo em nome da luta contra o anti-semitismo, melhor dizendo, de uma defesa incondicional de Israel e do universalismo republicano à francesa). Quanto a Onfray, conheço nada, mas parece que ele andou escrevendo um livro absurdo sobre Freud. Em suma, temos uma obra mais herculi'nea do que a conversão do Cazzo a realizar! Mas vamos andando que atra's vem gente.
Postar um comentário