terça-feira, 2 de novembro de 2010

Memória eletrônica e desterritorialização


Jonatas Ferreira e Aécio Amaral

“Se a memória pode se industrializar, isso se deve ao fato de que ela é tecnologicamente sintetizada, e se essa síntese é originária, é porque aquilo que define o quem é sua finitude retencional: sendo sua memória limitada, essencialmente faltante, radicalmente desmemoriada [...], ela deve ser suplementada por suportes que não sejam apenas os meios de a conservar, mas as próprias condições de sua elaboração” (Stiegler, 1996, vol. 2: 16)

Os suportes de memória não são apenas meios de conservação, “mas as próprias condições de sua elaboração”. Essa proposição, cuja orientação derridiana parece evidente, deve ser recuperada em uma tradição bastante antiga. Já Platão oferece uma reflexão bastante elaborada acerca da relação que existe entre suporte e memória. Segundo ele argumenta, pensada como suporte mnemotécnico, a escrita alfabética não é apenas um instrumento servil do pensamento, mas uma estrutura sobre a qual as possibilidades específicas do pensar são estabelecidas. Por perceber a seriedade dessa constatação, ele questiona a conveniência de se proceder ao registro escrito da reflexão filosófica. Suspenso do contexto de sua produção, o saber, paralisado na memória escrita, seria incapaz de responder às demandas dinâmicas e sempre localizadas da vida (Ferreira, 2003). O saber verdadeiro demandaria a presença de interlocutores ativamente envolvidos no desvelamento do real. Talvez por esse motivo Santo Agostinho estranhe o hábito de seu mestre, Santo Ambrósio, de ler em silêncio: “[...] na Numídia, ele redigiria suas Confissões e ainda o inquietaria aquele singular espetáculo: um homem em um aposento, com um livro, lendo sem articular palavras” (Borges, 1999, vol. 2: 100-101). A leitura pública é sempre uma experiência menos radical de acesso à palavra escrita que a leitura solitária do texto. É essa experiência radical da escrita, de uma portabilidade semelhante àquela que experimentamos quando escutamos uma orquestra sinfônica através de walkman, que parece espantar Santo Agostinho.


Séculos depois, Maurice Halbwachs comentaria a respeito do registro histórico que apenas em sociedades onde a memória coletiva, a força orientadora da tradição tiver perdido sua tensão, onde a própria idéia de comunidade ameaçar perder-se no esquecimento, a história escrita ganha importância. Essa desconfiança com relação à escrita, à prótese, faz-nos pressentir algo fundamental acerca da relação entre memória e suporte técnico. Trata se de decidir se a boa educação deve ou não se apoiar no registro escrito, sobre uma muleta técnica. De modo sub-reptício, entretanto, insinua-se na realidade a necessidade de decidir entre dois padrões de suporte de memória, e não mais entre “técnica” ou “liberdade”. Um padrão técnico oral e presencial e outro escrito e nômade. Diferentes suportes mnemotécnicos geram possibilida des existenciais e sociais distintas.

À revelia de sua preocupação teórica central, nomeadamente, afirmar um campo “não-técnico”, “não-protético”, como condição de existência de uma memória e um agir legitimamente humanos, o pensamento metafísico inevitavelmente se depara com a perspectiva de uma conclusão inesperada. Há em seu argumento um passo não dado; uma conclusão de implicações poderosas permanece sufocada. A memória não pode existir sem o suporte técnico, como algo puramente cerebral; o passado não pode sobreviver sem os suportes técnicos que nos inscrevem numa determinada cultura, tradição. Posto que a memória não é possível sem artifícios como a linguagem, a escrita, falar da memória é falar do esquecimento. É falar daquilo que não podemos reter e
recuperar, por certo. Mas também daquilo que suprimimos, sublimamos de nossos arquivos de memória para que o próprio arquivamento seja política e epistemologicamente possível. A partir de Freud, já sabemos que a experiência da memória é associada ao reprimido, àquilo que precisa ficar oculto para que uma determinada estrutura de rememoração possa ser legitimada. E aí mesmo reside seu elemento político. Falar de memória é fala de uma certa estrutura de arquivamento que nos permite experiências socialmente significativas do passado, do nosso presente e de nossa percepção do futuro. Se isso é verdade, como acreditamos, a digitalização da memória, a constituição de uma memória eletrônica, instantaneamente acessível, deve ser entendida como um acontecimento maior de nossa história recente. Quando nada, tomam pela própria oportunidade de acessar instantaneamente uma quantidade colossal de memória escrita, fotografada, gravada – fato tanto celebrado por uns, Pierre Lévy e sua “inteligência coletiva”, por exemplo, como lamentado por outros. O que deve ficar nas sombras para que um tal arquivo seja produzido? A instantaneidade de acesso à informação, para Virilio, deve ser pensada dentro de um contexto tecnológico em que a informação não pode mais viabilizar a reflexão. Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato de, numa sociedade global, o volume de informação relevante para decidirmos acerca de nossas vidas ser extremamente elevado - donde um certo pânico em lidar com uma quantidade sobre-humana de memória. Quem não se recorda daquele conto tão citado de Borges em que um determinado imperador se empenha numa cartografia absolutamente inútil precisamente por ser excessiva? A memória deve alimentar a decisão.


[O texto completo foi publicado na revista Política e Sociedade da UFSC. Clique aqui para obter todo o arquivo em PDF].

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