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sábado, 14 de maio de 2011

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Laurent Blanc X Lilian Thuram: futebol e sociedade na França de hoje em dia. Notas de desespero e socorro semi-sociológico



Tâmara de Oliveira

            Quem assistiu àquela sombria (para nós) final da Copa de 1998, há de se lembrar de dois jogadores da defesa francesa naquele ano : Lilian Thuram e Laurent Blanc. Dois homens lindos e unidos que, com Zidane e os outros, realizaram uma utopia de vida curta : a da integração universalista francesa como campeã do mundo, quando nos Champs Elysées  o « b » do apelido da seleção francesa foi triplicado  e « les bleus » viraram « les blancs, blacks et beurs ». En passant, « beurs » é o termo coloquial que designa franceses com ascendência árabe da África do norte. Pois, nessa França desoladora de hoje em dia, tenho me perguntado se Lilian (que tem uma fundação chamada « éducation contre le racisme ») e Laurent (atual treinador da seleção francesa) ainda são capazes de conversar.
É que entre os dois ex-jogadores e amigos explodiu o que eu, inspirando-me mas fazendo malabarismo com o conceito de « fato social total » de Marcel Mauss ( Paris, 1985), chamarei aqui de « acontecimento francês total ». Podemos dizer que para Mauss os fatos sociais totais são conjuntos de práticas e/ou representações que põem em movimento a totalidade da sociedade ou um grande número de suas instituições (Marcel, 2007), tendo a característica de revelar fenômenos que são ao mesmo tempo econômicos, religiosos, políticos, jurídicos, morfológicos, etc., de uma sociedade. Não tratarei aqui imediatamente de conjuntos de práticas ou representações, o que implicaria na consideração de fenômenos relativamente estruturados, mas de um episódio particular e, à primeira vista, aberrante para com as principais instituições da sociedade francesa, assim como para com o principal símbolo de sua República : a divisa « liberté, égalité et fraternité ». Logo, não se trata de « fato social total » propriamente dito. Entretanto, as reverberações do tal episódio envolvem e desvelam com tal intensidade a dinâmica multidimensional dos problemas societais da França contemporânea, bem como práticas e representações que os animam que, passando apenas um dia lendo, ouvindo, vendo atores e comentadores a seu respeito, pensei : eita cabrunco ! Taí uma espécie de acontecimento social total – e dos bem ruins, daqueles que tem parte com o diabo de Riobaldo.
A desgraça explodiu num site de jornalismo independente chamado Mediapart, no final de abril, com a publicação de um artigo sobre uma reunião de uma alta instância da FFF (Fédération Française de Football), a DTN (division technique nationale), occorida em 08 de novembro de 2010. Nessa reunião, Laurent, qu’en plus s’appelle Blanc, teria se declarado inteiramente favorável a uma proposta de restrição do acesso aos polos de formação da FFF  de um certo tipo de adolescentes aspirantes à carreira de futebol na França: os que têm dupla-nacionalidade (« binationaux »), ou seja que são em geral filhos de estrangeiros e podem, segundo regras recentes da FIFA, mudar de seleção nacional mesmo depois de 21 anos. Apresentando pequenos trechos de falas da reunião, Mediapart declarou, entre outras coisas, que se falou em criação oficiosa de cotas discriminatórias desses adolescentes, espécie de ação negativa estabelecendo 30% como teto máximo de recrutamento desses binacionais.
Et c’est parti : « l’laffaire des quotas » no futebol francês foi lançada, sendo cercada por duas sindicâncias administrativas – uma da própria FFF e outra do ministério dos esportes e da juventude, esta última passível de processo no equivalente de nosso Ministério Público. Por trás das repercussões multidimensionais que esse episódio manifesta, argumentarei que o que chamei de « acontecimento francês total » foi desvelando seu sentido profundo : o da racialização dos problemas da sociedade francesa contemporânea, o de sua impregnação em diversas práticas, representações, instituições e conflitos, tornando-a fenômeno revelador de dinâmicas ao mesmo tempo políticas, jurídicas, culturais, econômicas, etc.   
De fato, o primeiro artigo de Mediapart já era assim intitulado : « Foot français : les dirigeants veulent moins de noirs et d’arabes ». Por que tal título, se as tais cotas negativo-discriminatórias teriam como alvo adolescentes com dupla nacionalidade, sob a justificativa de salvaguarda da seleção francesa – ou seja, para diminuir a fuga de jovens talentos, formados pela DTN, para outros países ? O leitor poderia pensar num fato implícito : na França contemporânea, a maior parte de filhos de estrangeiros tem uma segunda nacionalidade africana ou árabo-africana (norte da África). Mas o título não se deve ao implícito e sim ao que teria sido explicitado verbalmente por participantes da reunião : ausência de referência a qualquer nacionalidade particular, concentração argumentativa sobre os « blacks » e « beurs » como problema, descrição eventual destes como estrangeiros.
Depois que o conteúdo de seu artigo foi refutado categoricamente pela FFF e pelo própro Laurent Blanc, Mediapart publicou outro onde apresenta extratos fiéis de uma transcrição da tal reunião, retomados depois por outras mídias, como o jornal L’Équipe. A transcrição teria chegado às mãos de Mediapart por uma fonte interna da FFF. Desesperemo-nos um pouco com alguns dos extratos, todos da fala de Laurent Blanc :
(...)E isso não tem nenhuma conotação racista. Quando pessoas usam a camisa de equipe nacional dos 16, 17, 18, 19 e 20 anos, dos Espoirs, e que depois eles vão jogar em equipes norte-africanas ou africanas, isso me incomoda enormemente. Isso é preciso de fato limitar.
(…)Quanto a mim, não são as pessoas de cor que me põem um problema. Não é um problema com as pessoas norte-africanas. Eu, eu não tenho nenhum problema com eles. Mas o problema é que essas pessoas daí devem se determinar e tentar ajudá-los a se determinar. Se há apenas – e eu falo cruamente – blacks nos polos e esses blacks daí sentem-se franceses e querem jogar na equipe de França, tudo ótimo para mim.
(…)Não queremos eliminar os estrangeiros, de forma alguma, mas fazer com que os polos Espoirs ou os polos da DTN testem a partir de critérios melhor definidos, porque se a gente tem sempre os mesmos critérios, haverá sempre as mesmas pessoas.(…) Grandes, musculosos e potentes. O que existe hoje como grande, musculoso e potente ? Os blacks.  E é assim. Deus sabe o quanto eles são numerosos nos centros de formação. Eu acredito que é preciso recentrar, ter outros critérios, modificados com nossa própria cultura.
(…)Com nossa cultura, nossa história, etc. Os espanhóis disseram-me : « nós não temos problema. Blacks, nós não temos ». (L’Équipe, lundi, le 02 mai 2011) 
              
É de alucinar ! Afinal de contas, qual o núcleo justificativo dessa proposta de discriminação negativa? Binacionalidade jurídica como fator de fuga de talentos ? Pessoas « de cor » e pessoas norte-africanas cuja ausência de sentimento de identidade nacional prejudica a Equipe de França ? Certas caracterísiticas físicas dos « blacks » que prejudicam a qualidade do futebol francês ?  Lilian Thuram, tendo pele negra mas nascido em Guadalupe (território francês, logo, ao abrigo das tais cotas de discriminação negativa) foi um dos primeiro a se desesperar ; numa de suas declarações, teria dito : « espero que seja apenas um pesadelo ». Dado seu conhecido engajamento anti-racista, foi procurado por gregos e troianos midiáticos e concedeu várias entrevistas (inclusive à Mediapart). Inicialmente indignado com a fala de Blanc, mas já afirmando que este não é racista, atenuou depois seu discurso – talvez por ver-se objeto de comentários de leitores como os três que se seguem :
Vocês se lembram quando Thuram marcou aqueles gols contra a Croácia, 60 milhões de franceses aplaudiram-no mas ele pôs um dedo sobre a boca como para dizer « pshi, calem a boca !, não foi para vocês que eu fiz esse gol », fazendo acreditar que estava interiorizando suas emoções…Partilhar essa alegria conosco ?!, ele teria preferido morrer. Uma vez mais : onde ele está, o racismo, não do lado que se acredita, em minha opinião (L’Équipe, le 03 mai 2011)

(…)Se o futebol africano fosse tão forte ele já teria ganhado algumas copas do mundo e isso está longe de se o caso. Eu sei que nessa França bem pensante não se pode mais dizer nada, senão a gente é tratado de racista, mas eu gostaria de dizer que as reações de todos os blacks de todos os tipos, estilo Thuram, é isso que faz subirem os extremos, isso vai ao encontro do que eles denunciam. Quanto aos bi-nacionais, é pior, nos fizeram acreditar que os da terceira geração se sentiriam franceses, mas são piores do que os pais. Mas nesse caso, é antes a FIFA que é preciso implicar, é uma lei que serve aos interesses das federações africanas, então, da reeleição de Blatter »

(…)vamos jogar cartas sobre a mesa. Uma, os blacks são mais físicos (Diawara Taiwo, por exemplo) e não é racismo dizer isso, é uma constatação, uma questão de genes e de morfologia ; não misturar africanos e antilheses (para a dupla nacionalidade). Duas, agora, se a gente recensear todos os blacks e brancos e a gente quiser ver quais são os mais técnicos, todos conhecem a resposta : brancos e sul-americanos. (L’Équipe, le 03 mai 2011)

Tentemos agora sair desse desespero com um socorro da sociologia, porque foi um sociólogo francês, Éric Fassin, que tem blog no mesmo Mediapart aqui tão citado, quem escreveu um dos primeiros artigos analíticos sobre esse pesadelo real. Argumentando que as representações de « raça » funcionam exatamente na flutuação semântica e lexical, Fassin desfia pouco a pouco o conteúdo das falas dos participantes da reunião, reconstruindo o que ele chama de vocabulário deslizante. Referindo-se assim às diferentes justificativas para a proposta de cotas negativo-discriminatórias que, mesmo em seus momentos explicitamente contraditórios (Laurent Blanc, por exemplo, insiste mais de uma vez em afirmar que não se trata de racismo nem de discriminação de estrangeiros), deslizam entre diferentes sentidos de nacionalidade que fundem lógica de nação e lógica de raça, desvelando uma racialização da nação francesa : da nacionalidade jurídica à identidade nacional, da identidade nacional como sentimento de pertencimeno à identidade nacional como cultura, da cultura como pertencimento a um dado contexto sócio-histórico à cultura como cor de pele e outras características físicas (ou morfológicas). Eu concordo com ele, seguindo as pistas dos extratos por mim aqui citados. Fassin faz também uma distinção entre « racisme d’intention » e « racismo en effet », que tem se mostrado útil para pôr luz dentro do olho desse redemoinho dos infernos.
Logo de um debate televisivo no Canal Plus Sports de 06 de maio, por exemplo, em certos momentos eu tinha imagens cristalinas de um conflito racializado e mais dicotomizado do que se esperava. Com efeito, talvez porque na transcrição haja uma surrepresentação de referências a « blacks » em relação aos « beurs » (estes andam sumidos da seleção nacional desde a última Copa), « blancs » e « blacks » aparecem como os protagonistas visíveis. Já um sociológo que foi àquele programa na TV, Stéphane Beaud, mediatizado porque lançou recentemente um livro sobre aquela greve da Equipe de França na Copa da África do Sul, relatado aqui no Cazzo, aos poucos conseguiu emplacar um argumento, embora sua retórica acadêmica não fosse páreo para os jornalistas e futebolistas experimentados na TV ali presentes. Pois Beaud também fez uma distinção que parecia muito importante no debate televisivo: separar a suspeita de qualquer proposição de cotas restringindo certos jovens do recrutamento nos polos (problema social, político e jurídico exigindo averiguação séria), da discussão sobre o possível racismo dos indivíduos cuja fala na reunião foi transcrita. Outro debatedor, ex-presidente do Olimpique de Marseille, insistia também nessa distinção, mas principalmente na necessidade de não se transformar o problema de proposta inadimissível de cotas negativas numa guerra entre brancos e negros, apesar das palavras chocantes e que exprimem, ele está convencido, muito da realidade do futebol francês e do racismo.
Nesse debate, o momento em que a imagem era mais visivelmente a de um conflito racializado e dicotômico, foi encarnado por Laurent Blanc e Lilian Thuran, pois que eram eles os sujeitos das questões : qual deles teria razão, se Blanc é racista, se Thuram também é racista, como os colegas estão divididos entre os dois – notadamente os de 1998 – e o porque do silêncio ensurdecedor de « Zizou » (Zinedine Zidane) nesse episódio, até agora.
Num balanço aéreo, diria que a maioria está mais preocupada com a sustentação de Blanc como treinador da seleção e com os conflitos internos de poder na FFF, justificando isso principalmente por uma razão pragmática (ele seria necessário à seleção francesa neste momento). E, do ponto de vista de seu racismo ou não, todos os colegas, inclusive Thuram, declaram que « Laurent não é racista ». Assim como os participantes do debate televisivo, todos claramente compadecidos com a situação terrível onde Laurent Blanc se meteu – com suas declarações « maladroites » (desajeitadas) e sua recuperação pelos conflitos de poder na FFF. A avaliação de Thuram era claramente mais negativa. Embora existam certos colegas cuja posição é parecida com a dele, a grande maioria o põe em questão. Desde um colega que requentou um suposto episódio da final de 1998 nunca revelado, para representar Thuram como alguém que também pode ter comportamentos racistas, até outros que condenam sua tendência a ver racismo em tudo, devido ao seu engajamento militante. O black ícone do conflito está então numa posição delicada entre seus companheiros de vitória e os debatedores televisivos – assim como em sondagens de opinião via internet, onde sua posição e/ou ele próprio são julgados e condenados pela maioria. 
Não deixa de ter sua graça…para mim desesperante. Digo desesperante porque tenho visto as principais entrevistas e declarações públicas de Thuram e, embora a falta de espaço impeça que eu as reproduza aqui, afirmo ao leitor do Cazzo que elas são sensatas e com requinte argumentativo. Mesmo num primeiro momento de indignação mantinha um discurso de respeito e afeto por Blanc, depois disse que já falou com ele por telefone, usa uma linguagem psicanalítica e impessoal quando aborda a dimensão racista do episódio, sustenta um discurso anti-racista não identitário  e, para prová-lo, centra sua reivindicação pública na apuração da suposta proposta de cotas de discriminação dos « binationaux », afirmando que o racismo é fato do « inconsciente coletivo » e não o centro do problema. Por sua vez, Laurent Blanc, embora com apoio da maioria dos colegas, das mídias esportivas e da opinião nas sondagens que andei sobrevoando, também está numa situação para lá de desconfortável. Mete os pés pelas mãos desde o início, primeiro negando tudo, depois, quando foi impossível negar, pedindo desculpas mas afirmando sua indignação por ser acusado de racista e, finalmente, sumindo na Itália. Mas já está voltando : como o episódio acionou o aparato jurídico-administrativo do ministério dos esportes e da juventude e pode chegar à justiça, deporá sobre o ocorrido. Algumas imagens mostram-no absolutamente perdido, para não dizer subjetivamente demolido.
Falando nas dimensões jurídico-estatal e política do imbróglio, a nova ministra dos esportes tem sido estrita numa abordagem jurídica do caso, há mil anos luz das  patacoadas da ex-ministra (do tempo da greve na Copa), manifestando em seu discurso a mesma preocupação de tantos que vi no debate televisivo : impedir que o problema derive em crise sócio-racial no país. Dir-se-ia que não estamos mais no governo Sarkozy, tanto a postura dessa ministra parece adequada aos princípios estruturais do estado republicano francês, princípios que fariam desse episódio, não um revelador de sua totalidade societal mas uma aberração contra as instituições, práticas e representações da sociedade francesa. Essa ministra pareceu-me chata, confesso ao leitor : a priori, sua postura parecia desautorizar meu malabarismo com o conceito maussiano… 
Por outro lado, uma tendência oficial do partido do governo Sarkozy (Droite Populaire, responsável por um projeto de lei para suspender o direito à dupla nacionalidade e dispostíssima a alianças com o Front National), recolocou-me na hipótese do acontecimento francês total : lançou um documento acusando Mediapart por « maccarthysme de gauche » e defendendo a restrição dos «binacionaux » para salvaguardar o futebol francês. Sem usar nenhum termo com conotação racializada ou etnicizada, o documento abunda, todavia, na direção de um sentido xenofóbico, como se o futebol francês estivesse ameaçado por estrangeiros. De tal sorte que volto a Éric Fassin para retomar meu malabarismo com Mauss :
Nos Estados Unidos como na França, para compreender essa racialização da nação, não é suficiente invocar a herança da escravidão e da colonização. Ela não se explica somente pelo passado ; ela tem uma atualidade política bem presente. Enquanto no ultra-Atlântico, é a extrema direita do Tea Party que se levanta contra o presidente, na França, esse populismo está no poder. É o presidente da República, seguido por seus ministros, quem institui uma identidade nacional racializada.  Não nos surpreendamos que o futebol seja hoje em dia o porta-voz disso. O que Mediapart nos revelou, é o que nós já sabíamos, sem querer reconhecê-lo completamente. Os dirigentes do futebol francês apenas declaram, no segredo de suas reuniões,  o que se escancara todos os dias, muito publicamente, no debate político nacional. (http://blogs.mediapart.fr/blog/eric-fassin. Consultado em 07 de maio de 2001)      

Recapitulemos : esporte, mídias, justiça, política, práticas e representações de identidade…O acontecimento indica realmente que a racialização da nação de que fala Fassin tem a força de revelação totalizante que animava Mauss ao elaborar o conceito de « fato social total », embora eu esteja tratando de um fenômeno que revela muito mais uma dinâmica de crise societal – para a qual « fato social total » não seria um conceito muito adequado. E é por isso que eu troquei « fato » por « acontecimento ».
Mas ainda tem uma dimensão da qual não falei e sobre a qual vou ainda me apoiar em Fassin para introduzir:
E também  não é por acaso que no amanhã de uma Copa do mundo sul-africana, da qual o sociólogo Stéphane Beaud mostrou tão bem, num livro recente, como o racismo de classe, ao qual adicionaremos que ele é inseparavelmente uma racialização das classes populares, pôde-se atribuir o fiasco a jovens estigmatizados como « traidores da nação » ; o futebol francês está mergulhado nas tormentas das políticas identitárias vindas de alto. Como se surpreender que ele confunda dessa forma referências nacionais e raciais, quando isso é o ordinário do discurso político sob Nicolas Sarkozy? Nem é tanto que a palavra racista tenha sido « liberada » ; é antes de tudo que alguns dirigentes esportivos, como os de outros meios, satisfazem-se em falar com as linguagens disponíveis no espaço público. (http://blogs.mediapart.fr/blog/eric-fassin. Consultado em 07 de maio de 2001)      

Retenho desse trecho a dimensão econômica em sentido largo ou, da estratificação sócio-econômica em termos estritos. O futebol, enquanto carreira, é esporte de pobre há muito tempo. Ora, uma enorme parte dos pobres franceses tem ascendência nas ex-colônias (sobretudo africanas ou norte-africanas). Logo, são os « blacks » e os « beurs » que estarão em maioria nas filas de recrutamento dos polos de formação do futebol francês. A França vive um processo progressivo de segregação urbana, social e escolar de seus pobres, desde os anos 1980. Processo, aliás, global (o Brasil é só vanguarda histórica ou modelo). Neste sentido, concordo inteiramente com o sociólogo Robert Castel (2007), que diagnosticou um intercruzamento entre questão social (sócio-econômica) e questão racial (racialização dos conflitos)  como problema maior da sociedade francesa contemporânea.
E é esta duplicadade que pode dar luz inclusive a uma divergência entre sociólogos, Éric Fassin de uma lado, Gérard Noiriel e Stéphane Beaud do outro, sobre esse acontecimento infernal – divergência cuja novela está começando nessa segunda semana de escândalo. O primeiro, especialista em imigração e racismo e colaborador do Mediapart, insiste sobre a racialização da nação e não poupou tinta para analisar conteúdos de racismo ordinário nas falas da reunião. Os segundos, mais próximos da sociologia bourdieusiana, embora concordem que há racialização do vocabulário e discriminação dos filhos de imigrantes pela idéia juridicamente criminal de cotas, condenam o que chamam de abordagem midiática e acusatória que, identificando propósitos heterogêneos sob a mesma rubrica de « racismo », reforçaria a racialização das classes populares. Em suma, embora não citem Fassin, Noiriel e Beaud entendem que intelectuais críticos ligados ao que eles chamam de « causa negra », tem empreendido análises mais ideológicas do que sociológicas, posto que sem fundamento empírico consistente…Essa divergência acabou de tornar-se pública, assim como apareceu hoje a primeira entrevista de Zidane a esse respeito (serena mas indo na mesma direção da maioria dos colegas : condena o vocabulário da reunião, opõe-se radicalmente às cotas, mas sustenta e lamenta Blanc). Essas novas repercussões são importantes, todavia este texto tem que terminar !
Terminarei então declarando que a racialização dos conflitos sociais é potencialmente infernal. Como ela sempre envolve processos identitários e, ainda por cima, atravessados pela história da colonização e da escravidão, as paixões que suscita são dificilmente controláveis. E tenho pensado : se a racialização pode produzir institutionalizações progressistas, como o fim do apartheid na África do Sul ou ações afirmativas, ela também tem dado fontes de legitimação a racismos de todos os tipos. Ao mesmo tempo, tem dissimulado o fato de que os ricos andam cada vez mais absurdamente ricos e os pobres segregados e estigmatizados por critérios culturalistas ou racialistas. Afastados de tudo e todos que podem incomodá-los, imagino o quanto é confortável para os ricos de todas as cores que, num país como a França, ao invés de se discutir sobre o dinheiro público que foi versado ao capital financeiro que quase faliu o mundo e continua obrando para fali-lo, a sociedade e o Estado franceses mergulhem num pesadelo sobre a identidade nacional e as propriedades genéticas ou culturais das « raças », projetando sobre as categorias segregadas de sua população, em lógica mezzo-nacionalista/mezzo racialista, todos os males da sociedade francesa.
E eu que continuo sem crer, faço novamente aqui uma prece – por Lilian Thuram e Laurent Blanc (cuja esposa tem ascendência argelina, como Zidane fez questão de frisar em sua primeira entrevista). Por Thuram, porque recebe na pele e na alma a seguinte monstruosidade: a maioria da opinião e de seus colegas de 1998 consideram ilegítimo sua indignação contra expressões racistas (para ele, aliás, inconscientes) e propostas de discriminação negativa das minorias visíveis da sociedade francesa. Por Blanc porque, embora receba apoio majoritário, inclusive enquanto esposo e provavelmente pai de franceses vulneráveis às consequências sociais da racialização, precisaria fazer um trabalho de sócio-análise (no sentido bourdieusiano) sobre seus próprios habitus racializados e suas consequências, para o qual ele não parece estar preparado.
BIBLIOGRAFIA :      
CASTEL, R. La discrimination négative – citoyens ou indigènes. Paris : Seuil. 2007.
FASSIN, É. « Les mots dont souffre le football français . »  Le journal mediapart – blog de Eric Fassin, 08 mai 2011 [en ligne] . http://blogs.mediapart.fr/blog/eric-fassin
MARCEL, J.-C. « Bataille et Mauss : un dialogue de sourds ? », Revue du MAUSS permanente, 14 avril 2007 [en ligne]. http://www.journaldumauss.net/spip.php?article18
MAUSS, M. Essai sur le don : forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques. Paris, PUF, 1985.
NOIRIEL, G. / BEAUD, S. Race, classe, football : ne pas hurler avec la meute. Libération.fr, 08 mai 2011. (en ligne).

sábado, 30 de outubro de 2010

Viva Pedrinho, Narizinho, Emília e tia Nastácia


Sítio do Pica-Pau Amarelo, por Arthur Milan Parreira (aqui)

O Conselho Nacional de Educação considerou "racista" a obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, que poderá ser banida das escolas públicas brasileiras (veja post scriptum, abaixo). Talvez fosse uma boa ideia sugerir ao MEC que também banisse das universidades autores como Rousseau, Marx, Freud, Nietzsche, Durkheim, Gilberto Freyre (vai sobrar alguém?) - já que todos podem ser acusados de divulgar estereótipos do senso comum de sua época acerca de mulheres e minorias raciais e étnicas. Melhor: façamos como Rui Barbosa, que mandou queimar os documentos relativos à escravidão no Brasil. Aproveitemos o clima das eleições e façamos uma grande fogueira santa, no melhor estilo inquisitorial. Alternativamente, façamos como o Careca e apelemos para o Gilberto Gil.

Cynthia

Li na Folha e na coluna do Marcos Guterman no Estadão que o Conselho Nacional de Educação recomendou que o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, não fosse distribuído a escolas públicas ou, se for, que venha acompanhado de um aviso de que se trata de obra “racista".

Pô, que sacanagem. Gilberto Gil, que foi Ministro da Cultura e não pode ser chamado de racista por nenhum burocrata idiota, bem que poderia vir a público passar um pito nos caras que fizeram essa recomendação. No mínimo porque cantou o Sítio do Picapau Amarelo para mim e toda a meninada dos anos setenta.


As bobagens do correção política começam a chegar nas prateleiras dos já escassos clássicos brasileiros com as já conhecidas excelentes intenções que levam ao exílio de títulos e depois à queima de livros em praças públicas. Nessa toada, "A Moreninha" terá de trocar de nome para "A levemente bronzeada" só para não ferir nenhuma suscetibilidade. A Escrava Isaura não poderá ser mais implacavelmente perseguida por aquele ator da Globo, o Rubens de Falco, e sumirá das prateleiras por evocar a imagem da Lucélia Santos, ao invés de alguma outra branquela menos estrábica. Desconfio que Guimarães Rosa também será gravemente atingido pela onda politicamente correta, afinal de contas o grande drama das veredas de Riobaldo é amar Diadorim sem saber que ela finge que é homem só para poder andar junto com a jagunçada, matar Hermógenes e vingar o pai. "Riobaldo pensa que é gay e não existe nenhum problema nisso", alguém ainda vai alegar, antes que o livro seja qualificado de homofóbico e de apologia ao chapéu de couro.


Mas é no campo da música que estaremos fritos. Marchinhas de Carnaval terão versos inteiros substituídos. Ninguém mais vai poder cantar que o cabelo da afrodescendente não nega que ela procede do outro continente. Estrofes dos axés bahianos dos anos 80 serão banidos das discotecas. Não será possível dizer olha a afrodescendente do cabelo "hard", que não gosta de pentear, quando passa na boca do tubo, o grande afro-brasileiro começa a gritar, pega ela aí, pega ela aí, pra quê, pra passar batom, de que cor, de violeta, na boca e na boca do céu...


E sobretudo, ficaremos sem escutar aquele clássico dos clássicos, do tempo da lambada, que começava assim: tem, tem, tem, tem dois neguinho, tem, tem, tem, tem dois neguinho, um morava na Jamaica, outro mora no Brasil, um chamava Bob Marley, outro é Gilberto Gil...




Post Scriptum, em 31/10/2010:

Como diz o Mia Couto, “meia culpa, meia máxima culpa”: contrariamente ao que ajudei a divulgar aqui, a estória não é bem assim. O documento redigido pelo Conselho Nacional de Educação emite parecer sobre denúncia efetuada por Antônio Gomes Costa Neto “no sentido de se abster a Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal de utilizar livros, material didático ou qualquer outra forma de expressão que, em tese, contenham expressões de prática de racismo cultural, institucional ou individual na Educação Básica e na Educação Superior do Distrito Federal”. O parecer, que aguarda homologação, considera que a denúncia está em consonância com os critérios de seleção do próprio MEC para as obras que deverão compor os acervos das escolas e que se baseiam na “qualidade textual, a adequação temática, a ausência de preconceitos, estereótipos ou doutrinações, a qualidade gráfica e o potencial de leitura considerando o público-alvo”. Com base nisso o CNE, propõe as seguintes ações:
a) a necessária indução de política pública pelo Governo do Distrito Federal junto às instituições do ensino superior – e aqui acrescenta-se, também, de Educação Básica – com vistas a formar professores que sejam capazes de lidar pedagogicamente e criticamente com o tipo de situação narrada pelo requerente, a saber, obras consideradas clássicas presentes na biblioteca das escolas que apresentem estereótipos raciais. Nesse caso, serão sujeitos dessas políticas não só os docentes da rede pública de ensino, mas, também, aqueles que atuam na rede particular. (…)
b) cabe à Coordenação-Geral de Material Didático do MEC cumprir com os critérios por ela mesma estabelecidos na avaliação dos livros indicados para o PNBE, de que os mesmos primem pela ausência de preconceitos, estereótipos, não selecionando obras clássicas ou contemporâneas com tal teor;
c) caso algumas das obras selecionadas pelos especialistas, e que componham o acervo do PNBE, ainda apresentem preconceitos e estereótipos, tais como aqueles que foram denunciados pelo Sr. Antônio Gomes Costa Neto e pela Ouvidoria da SEPPIR, a Coordenação-Geral de Material Didático e a Secretaria de Educação Básica do MEC deverão exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura. Esta providência deverá ser solicitada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho e deverá ser extensiva a todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante. (…)

Justíssimo. E obrigada ao Joselito, por ter enviado o link para o site do Sérgio Leo, e ao próprio, por ter tido mais juízo do que eu e desconfiado da notícia.

Cynthia

sexta-feira, 28 de maio de 2010

O ateu, o muçulmano e as abelhas : quando representações sociais ancoradas encontram uma experiência-problema



Tâmara de Oliveira

Tudo começou num final de tarde primaveril. Um enxame de abelhas tinha se instalado de uma hora para outra numa árvore do jardim. Imagem desconfortável essa, a de uma multidão agrupada, organizada e produtiva (vista ?), aparentemente disposta a fundar uma nova colônia – a rainha, suas operárias e seus machos desesperados – em propriedade humana alheia, ou seja, em nossa casa ! O que fazer ? Entre o arrepiado fascínio pela concretude daquela solidariedade mecânica em movimento e a consciência da impotência para expulsá-la dali sem mais nem menos, optamos por um sono reparador. « Amanhã a gente vê ». E vimos ! A massa holística continuava no mesmo lugar, mas alguns indivíduos já se deslocavam para experimentar o gosto das flores de nosso jardim. Será que estávamos diante de um processo histórico individualista, de passagem da solidariedade mecânica para a orgânica?


quinta-feira, 1 de maio de 2008

Feminin@s, Masculin@s: Do Sexo ao Gênero



Em um post anterior (Da Submissão das Mulheres...), analisei uma correspondência entre Auguste Comte e John Stuart Mill. Lá, sugeria que esta correspondênica mostra que o que hoje chamamos de desigualdades de gênero sempre estiveram presentes como preocupação nas ciências sociais. Apesar disso, pode-se afirmar que esta preocupação só tenha surgido com força na sociologia e em outras ciências mais de cem anos depois, com a influência dos movimentos feminista e de mulheres. Se a retomada efetiva deste tema depende de fatores sócio-políticos, o que é realmente instrutivo (e um tanto curioso) naquela correspondência é que Auguste Comte, conhecido como o “pai fundador” da sociologia, concebia essas desigualdades como algo natural, isto é, decorrente de leis da natureza e não da sociedade.

Um século mais tarde, a filósofa e romancista Simone de Beauvoir redefine o problema colocado por Mill e por diversas autoras do século XVII e XIX, como Olympe de Gouges, Harriet Martineau e Harriet Taylor. Para Beauvoir (1989 [1949]), a mulher seria “o segundo sexo”, aquele que é definido como “o outro”, o que tem um status subordinado. O feminino diria respeito a um estado diferente do “si mesmo”, o que não ocorreria com os homens, que são “o sujeito universal”, sem qualificativos, conforme atesta a linguagem cotidiana a se referir a seres humanos em geral como “o homem”. Sua idéia mais frequentemente referida é a de que “não se nasce mulher, mas torna-se mulher”. Com isto, Beauvoir estava reafirmando de maneira muito mais radical o caráter socialmente construído da feminilidade, uma idéia que terá uma influência profunda na forma como a desigualdade entre homens e mulheres será concebida posteriormente: a partir da influência dos fatores sociais e culturais.

As décadas de 1960 e, em especial, de 1970, servem de palco para a desnaturalização da feminilidade e da sexualidade humana em geral, sendo que uma das principais ferramentas analíticas deste processo é a distinção entre sexo e gênero. Utilizado como sinônimo de sexo na literatura desde o século XV, na década de 1950 o termo gênero perde sua conotação meramente gramatical (Haig, 2004) e adquire um contorno que o torna especialmente útil para a agenda de pesquisa dos estudos feministas e de mulheres disseminada a partir de Beauvoir. Inspirado pelos conceitos de status e de papel sexual desenvolvidos por Talcott Parsons, o sexólogo John Money introduz a expressão “papel de gênero” em um artigo de 1955 para dar conta de “todas aquelas coisas que uma pessoa diz ou faz para se revelar como tendo o status de menino ou de homem, menina ou mulher, respectivamente” (Money apud Haig, 2004: 90). Em 1966, refletindo acerca deste conceito, Money afirma ter importado o termo para a sexologia a fim de “tornar possível escrever sobre pessoas que chegavam ao consultório como homem ou como mulher, mas das quais não se podia afirmar que seu papel sexual, no sentido especificamente genital, era masculino ou feminino, na medida em que tinham tido uma história de defeito congênito dos órgãos sexuais” (Ibid: 91).

Inicialmente desenvolvido para lidar com situações de intersexualidade, isto é, de ambigüidade genital ou cromossômica que tornava difícil ou impossível afirmar com certeza se o indivíduo em questão era do sexo feminino ou masculino, o conceito de gênero mostrou-se frutífero para o programa de pesquisa feminista das décadas de 1960 e 1970 ao sugerir uma distinção entre o sexo biológico, caracterizado por critérios anatômicos, hormonais ou cromossômicos; e o gênero, relativo àquelas características socialmente construídas relativas a homens e mulheres, como papéis sociais, divisão do trabalho, características psicológicas, comportamentais etc. (Oudshoorn, 2000). Em uma concepção típica do período, Gayle Rubin (1975: 159) define o que denomina de “sistema sexo/gênero” como “o conjunto de arranjos por meio dos quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana e nos quais essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas”.

O gênero, assim como a noção de feminilidade desenvolvida por Beauvoir, passa a ser concebido como comportamentos, sentimentos etc. que são socialmente adquiridos por meio da socialização humana: assim como não se nasce “feminina”, também não se nasce “masculino”. A partir do final dos anos de 1980 se começa a pensar na categoria gênero como algo relacional (Scott, 1990). Em termos concretos, e dentre outras coisas, isso quer dizer que só se pode pensar no feminino em relação com o masculino e vice-versa. Apesar da diferença entre as/os diversos autoras/es que trabalham gênero de uma perspectiva relacional, a importância de se pensar gênero desta forma é dupla: por um lado, ela possibilita “descolar”, por assim dizer, sexo e gênero de uma maneira inteiramente nova, inclusive reconhecendo que as concepções de masculinidade e feminilidade variam de acordo com elementos como classe social e raça/etnicidade; por outro, aponta para a necessidade de se expandir o foco das questões de mulheres para outras áreas, como os estudos sobre masculinidades e formas de sexualidade alternativas à heterossexualidade dominante. Vejamos mais detidamente cada uma dessas questões.

As teóricas feministas da década de 1970 freqüentemente associavam a idéia de feminilidade (gênero) a ser mulher (sexo). Em acordo com o movimento feminista, as teorias tratavam as mulheres como algo homogêneo, como se o simples fato de serem todas de um mesmo sexo as tornasse iguais. Embora isso não invalidasse a distinção sexo/gênero, acabava por sugerir uma relação muito direta e imediata entre essas duas coisas. A partir da década seguinte, essa unidade passou a ser questionada, afinal de contas, os problemas das mulheres brancas e de classe média são muito diferentes dos problemas vivenciados pelas mulheres negras e de classe baixa. As mulheres não constituem, portanto, um grupo homogêneo que pode ser definido exclusivamente a partir de seu sexo biológico. Isto significa que só se pode pensar adequadamente sobre gênero se também se reflete sobre classe e etnicidade/raça, que também são conceitos relacionais (Safiotti, 1992; 2005). Desde então, as desigualdades têm sido pensadas em torno do trinômio gênero, classe e raça/etnicidade, e não mais de forma isolada, como se não se reforçassem mutuamente.

Além de apontar para a necessidade de se trabalhar gênero em conjunção com outras categorias a fim de se ter um retrato mais fiel das desigualdades, o tratamento da categoria gênero como relacional abriu espaço para outros tipos de indagações. Surge, assim, uma nova área de estudos que, embora ligada à teoria feminista, não se identifica totalmente com ela: os estudos de gênero ligados às masculinidades. Os homens, como as mulheres algumas décadas antes, tornam-se objeto legítimo das ciências sociais. Como em grande medida esta área de estudos se estabelece depois dos questionamentos efetuados pelas teorias feministas acerca da unidade das mulheres, seu nome já nasce no plural: “masculinidades”, a fim de se indicar que não se pode conceber o masculino de forma homogênea, mas com base em diferenças de classe, raça/etnicidade e mesmo idade. Modelos distintos e antagônicos de masculinidade são reconhecidos como fonte de angústia para os homens:

Ao menos no mundo ocidental, o modelo de homem burguês bem comportado, cumpridor de seus deveres para com a família e o Estado, convive de forma tensa com o modelo romântico do aventureiro solitário, avesso aos laços familiares e pronto tanto para as agruras dos campos de batalha quanto para as delícias dos bordéis e dos bares (Heilborn e Carrara, 1998: 371).

A estes modelos mais tradicionais, opõem-se ainda outros, calcados na aceitação de sentimentos e comportamentos anteriormente considerados “femininos” e que não se encaixam facilmente no modelo do provedor e da autoridade. Tais modelos são relativos a homens que precisam lutar contra os padrões dominantes a fim de expressar emotividade e afetividade, de abrir mão ou interromper temporariamente suas carreiras profissionais para cuidar dos filhos, de dividir tarefas domésticas, de optar por carreiras que pagam menos do que as de suas esposas e companheiras. Além disso, muitos deles, especialmente os de classes sociais mais baixas, têm sentido na pele alguns problemas anteriormente restritos ao universo feminino: com a precarização do trabalho, a maioria dos empregos tende a se restringir ao mercado de trabalho secundário, isto é, aquele caracterizado por baixos salários, poucas oportunidades de ascensão profissional e poucos benefícios e composto, em sua maioria, por mulheres e minorias étnicas. Este processo é às vezes chamado de “feminização” do trabalho (Antunes, 1999). A desvalorização que atinge as carreiras tipicamente femininas, como o magistério nas séries iniciais do ensino fundamental, a enfermagem e atividades associadas aos cuidados com outras pessoas, também atinge os homens que ingressam nesses setores (Carvalho, 1998; Rosemberg 2000).

De uma perspectiva mais associada à raça e à etnicidade, tornou-se ainda evidente, nos últimos anos, que o modelo de masculinidade dominante esteve associado ao modelo do colonizador europeu, branco, detentor dos meios de produção. Em outras palavras: “civilizado”. Homens negros, de cultura não européia, eram caracterizados como “selvagens”, “incivilizados”, definidos a partir de características “femininas”, como uma emotividade exacerbada, o misticismo, a falta de autocontrole, a irracionalidade (Heilborn e Carrara, 1998; Mott 2000). Eram, em outros termos, emasculados.

Além de incluir os estudos sobre masculinidades, os estudos de gênero ampliaram seu foco para questões tradicionalmente ligadas ao movimento gay e lésbico. Assim como o movimento feminista teve uma influência importante no estudo das antigas “questões de mulheres”, estes movimentos tiveram um impacto fundamental no sentido de refletir sobre aquelas pessoas que não se conformam aos padrões de sexualidade heterossexuais impostos socialmente e todas as implicações disto em termos da distribuição social de privilégios materiais, culturais e simbólicos. A desigualdade que se configura entre as pessoas identificadas como heterossexuais e homossexuais é evidente na forma como estas últimas são vítimas constantes do preconceito, do abuso verbal, da violência física, da negação de direitos básicos de cidadania, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção conjunta de crianças por parceiros do mesmo sexo, pensão em caso de invalidez ou morte do parceiro etc. (Abramovay, Castro e Silva, 2004; Mello 2005; Mott, 1994; 2000).

Os estudos contemporâneos sobre sexualidade e gênero mostram que os termos do debate mudaram muito desde que Comte e Mill romperam relações nos primórdios da sociologia. No entanto, deixam claro que ainda há muito a ser feito no sentido de se eliminar as desigualdades entre homens e mulheres a que eles se referiam, assim como outras, que possivelmente eles sequer imaginavam existir, mas tão perversas e injustas quanto as primeiras.

Referências

ABRAMOVAY, Miriam ; CASTRO, Mary Garcia; SILVA, L. B (2004). Juventudes e Sexualidade. Brasília: Unesco.
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. São Paulo, Ed. Boitempo.
BEAUVOIR, Simone (1989 [1949]). The Second Sex.
CARVALHO, Marília Pinto (1998) Vozes Masculinas numa Profissão Feminina. Revista de Estudos Feministas, Rio de Janeiro, vol 6, no. 2, pp. 402-422.
HAIG, David (2004). The Inexorable Rise of Gender and the Decline of Sex: Changes in Academic Titles, 1945-2001. Archives of Sexual Behavior, Vol 33, No.2, Abril 2004, pp 87-96.
HEILBORN, Maria Luiza; CARRARA, Sérgio (1998). Em Cena, os Homens. Revista de Estudos Feministas, Rio de Janeiro, vol. 6, no. 2, pp. 370-74.
MELLO, Luiz (2005). O Tesouro embaixo do Arco-Íris. Grupo Gay da Bahia, Salvador, 2005. Disponível em: Acessado em: 11 maio 2005.
MOTT, Luiz (1994) A Sexualidade no Brasil Colonial. Diário Oficial de Leitura, São Paulo n.141, pp. 6-8.
MOTT, Luiz (2000) “Ethno-Histoire de L’Homossexualité en Amérique Latine” in François Crouzet (ed) Pour L’Histoire du Brésil. Paris: L’Harmattan, 2000. p. 285-303. Disponível em: . Acessado em 11 jan. 2005.
ROSEMBERG, Fúlvia (2000). “Educação Infantil, Gênero e Raça” in Antonio Sérgio Guimarães e Lynn Huntley, (orgs) Tirando a Máscara: Ensaios sobre o Racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra.
OUDSHOORN, Nelly (2000).
RUBIN, Gayle (1975). “The Traffic of Women: Notes on the Political Economy of Sex” in Rayna Reiter (ed.) Toward an Anthropology of Women. Nova York, Monthly Review Press.
SAFFIOTI, Heleieth (1992). “Rearticulando Gênero e Classe Social” in Albertina Costa e Cristina Bruschini (orgs.) Uma Questão de Gênero. Rio de Janeiro/São Paulo, Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas.
________ (2005), “Gênero e Patriarcado” in Márcia Castillo-Martín e Suely de Oliveira (orgs.) Marcadas a Ferro: Violência Contra a Mulher: Uma Visão Interdisciplinar. Brasil, Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para a Mulher.
SCOTT, Joan (1990) Gênero: Uma Categoría útil de Análise Histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, vol 16, no. 2, pp. 5-22.

(a ser editado)

Cynthia Hamlin