quinta-feira, 1 de maio de 2008

Feminin@s, Masculin@s: Do Sexo ao Gênero



Em um post anterior (Da Submissão das Mulheres...), analisei uma correspondência entre Auguste Comte e John Stuart Mill. Lá, sugeria que esta correspondênica mostra que o que hoje chamamos de desigualdades de gênero sempre estiveram presentes como preocupação nas ciências sociais. Apesar disso, pode-se afirmar que esta preocupação só tenha surgido com força na sociologia e em outras ciências mais de cem anos depois, com a influência dos movimentos feminista e de mulheres. Se a retomada efetiva deste tema depende de fatores sócio-políticos, o que é realmente instrutivo (e um tanto curioso) naquela correspondência é que Auguste Comte, conhecido como o “pai fundador” da sociologia, concebia essas desigualdades como algo natural, isto é, decorrente de leis da natureza e não da sociedade.

Um século mais tarde, a filósofa e romancista Simone de Beauvoir redefine o problema colocado por Mill e por diversas autoras do século XVII e XIX, como Olympe de Gouges, Harriet Martineau e Harriet Taylor. Para Beauvoir (1989 [1949]), a mulher seria “o segundo sexo”, aquele que é definido como “o outro”, o que tem um status subordinado. O feminino diria respeito a um estado diferente do “si mesmo”, o que não ocorreria com os homens, que são “o sujeito universal”, sem qualificativos, conforme atesta a linguagem cotidiana a se referir a seres humanos em geral como “o homem”. Sua idéia mais frequentemente referida é a de que “não se nasce mulher, mas torna-se mulher”. Com isto, Beauvoir estava reafirmando de maneira muito mais radical o caráter socialmente construído da feminilidade, uma idéia que terá uma influência profunda na forma como a desigualdade entre homens e mulheres será concebida posteriormente: a partir da influência dos fatores sociais e culturais.

As décadas de 1960 e, em especial, de 1970, servem de palco para a desnaturalização da feminilidade e da sexualidade humana em geral, sendo que uma das principais ferramentas analíticas deste processo é a distinção entre sexo e gênero. Utilizado como sinônimo de sexo na literatura desde o século XV, na década de 1950 o termo gênero perde sua conotação meramente gramatical (Haig, 2004) e adquire um contorno que o torna especialmente útil para a agenda de pesquisa dos estudos feministas e de mulheres disseminada a partir de Beauvoir. Inspirado pelos conceitos de status e de papel sexual desenvolvidos por Talcott Parsons, o sexólogo John Money introduz a expressão “papel de gênero” em um artigo de 1955 para dar conta de “todas aquelas coisas que uma pessoa diz ou faz para se revelar como tendo o status de menino ou de homem, menina ou mulher, respectivamente” (Money apud Haig, 2004: 90). Em 1966, refletindo acerca deste conceito, Money afirma ter importado o termo para a sexologia a fim de “tornar possível escrever sobre pessoas que chegavam ao consultório como homem ou como mulher, mas das quais não se podia afirmar que seu papel sexual, no sentido especificamente genital, era masculino ou feminino, na medida em que tinham tido uma história de defeito congênito dos órgãos sexuais” (Ibid: 91).

Inicialmente desenvolvido para lidar com situações de intersexualidade, isto é, de ambigüidade genital ou cromossômica que tornava difícil ou impossível afirmar com certeza se o indivíduo em questão era do sexo feminino ou masculino, o conceito de gênero mostrou-se frutífero para o programa de pesquisa feminista das décadas de 1960 e 1970 ao sugerir uma distinção entre o sexo biológico, caracterizado por critérios anatômicos, hormonais ou cromossômicos; e o gênero, relativo àquelas características socialmente construídas relativas a homens e mulheres, como papéis sociais, divisão do trabalho, características psicológicas, comportamentais etc. (Oudshoorn, 2000). Em uma concepção típica do período, Gayle Rubin (1975: 159) define o que denomina de “sistema sexo/gênero” como “o conjunto de arranjos por meio dos quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana e nos quais essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas”.

O gênero, assim como a noção de feminilidade desenvolvida por Beauvoir, passa a ser concebido como comportamentos, sentimentos etc. que são socialmente adquiridos por meio da socialização humana: assim como não se nasce “feminina”, também não se nasce “masculino”. A partir do final dos anos de 1980 se começa a pensar na categoria gênero como algo relacional (Scott, 1990). Em termos concretos, e dentre outras coisas, isso quer dizer que só se pode pensar no feminino em relação com o masculino e vice-versa. Apesar da diferença entre as/os diversos autoras/es que trabalham gênero de uma perspectiva relacional, a importância de se pensar gênero desta forma é dupla: por um lado, ela possibilita “descolar”, por assim dizer, sexo e gênero de uma maneira inteiramente nova, inclusive reconhecendo que as concepções de masculinidade e feminilidade variam de acordo com elementos como classe social e raça/etnicidade; por outro, aponta para a necessidade de se expandir o foco das questões de mulheres para outras áreas, como os estudos sobre masculinidades e formas de sexualidade alternativas à heterossexualidade dominante. Vejamos mais detidamente cada uma dessas questões.

As teóricas feministas da década de 1970 freqüentemente associavam a idéia de feminilidade (gênero) a ser mulher (sexo). Em acordo com o movimento feminista, as teorias tratavam as mulheres como algo homogêneo, como se o simples fato de serem todas de um mesmo sexo as tornasse iguais. Embora isso não invalidasse a distinção sexo/gênero, acabava por sugerir uma relação muito direta e imediata entre essas duas coisas. A partir da década seguinte, essa unidade passou a ser questionada, afinal de contas, os problemas das mulheres brancas e de classe média são muito diferentes dos problemas vivenciados pelas mulheres negras e de classe baixa. As mulheres não constituem, portanto, um grupo homogêneo que pode ser definido exclusivamente a partir de seu sexo biológico. Isto significa que só se pode pensar adequadamente sobre gênero se também se reflete sobre classe e etnicidade/raça, que também são conceitos relacionais (Safiotti, 1992; 2005). Desde então, as desigualdades têm sido pensadas em torno do trinômio gênero, classe e raça/etnicidade, e não mais de forma isolada, como se não se reforçassem mutuamente.

Além de apontar para a necessidade de se trabalhar gênero em conjunção com outras categorias a fim de se ter um retrato mais fiel das desigualdades, o tratamento da categoria gênero como relacional abriu espaço para outros tipos de indagações. Surge, assim, uma nova área de estudos que, embora ligada à teoria feminista, não se identifica totalmente com ela: os estudos de gênero ligados às masculinidades. Os homens, como as mulheres algumas décadas antes, tornam-se objeto legítimo das ciências sociais. Como em grande medida esta área de estudos se estabelece depois dos questionamentos efetuados pelas teorias feministas acerca da unidade das mulheres, seu nome já nasce no plural: “masculinidades”, a fim de se indicar que não se pode conceber o masculino de forma homogênea, mas com base em diferenças de classe, raça/etnicidade e mesmo idade. Modelos distintos e antagônicos de masculinidade são reconhecidos como fonte de angústia para os homens:

Ao menos no mundo ocidental, o modelo de homem burguês bem comportado, cumpridor de seus deveres para com a família e o Estado, convive de forma tensa com o modelo romântico do aventureiro solitário, avesso aos laços familiares e pronto tanto para as agruras dos campos de batalha quanto para as delícias dos bordéis e dos bares (Heilborn e Carrara, 1998: 371).

A estes modelos mais tradicionais, opõem-se ainda outros, calcados na aceitação de sentimentos e comportamentos anteriormente considerados “femininos” e que não se encaixam facilmente no modelo do provedor e da autoridade. Tais modelos são relativos a homens que precisam lutar contra os padrões dominantes a fim de expressar emotividade e afetividade, de abrir mão ou interromper temporariamente suas carreiras profissionais para cuidar dos filhos, de dividir tarefas domésticas, de optar por carreiras que pagam menos do que as de suas esposas e companheiras. Além disso, muitos deles, especialmente os de classes sociais mais baixas, têm sentido na pele alguns problemas anteriormente restritos ao universo feminino: com a precarização do trabalho, a maioria dos empregos tende a se restringir ao mercado de trabalho secundário, isto é, aquele caracterizado por baixos salários, poucas oportunidades de ascensão profissional e poucos benefícios e composto, em sua maioria, por mulheres e minorias étnicas. Este processo é às vezes chamado de “feminização” do trabalho (Antunes, 1999). A desvalorização que atinge as carreiras tipicamente femininas, como o magistério nas séries iniciais do ensino fundamental, a enfermagem e atividades associadas aos cuidados com outras pessoas, também atinge os homens que ingressam nesses setores (Carvalho, 1998; Rosemberg 2000).

De uma perspectiva mais associada à raça e à etnicidade, tornou-se ainda evidente, nos últimos anos, que o modelo de masculinidade dominante esteve associado ao modelo do colonizador europeu, branco, detentor dos meios de produção. Em outras palavras: “civilizado”. Homens negros, de cultura não européia, eram caracterizados como “selvagens”, “incivilizados”, definidos a partir de características “femininas”, como uma emotividade exacerbada, o misticismo, a falta de autocontrole, a irracionalidade (Heilborn e Carrara, 1998; Mott 2000). Eram, em outros termos, emasculados.

Além de incluir os estudos sobre masculinidades, os estudos de gênero ampliaram seu foco para questões tradicionalmente ligadas ao movimento gay e lésbico. Assim como o movimento feminista teve uma influência importante no estudo das antigas “questões de mulheres”, estes movimentos tiveram um impacto fundamental no sentido de refletir sobre aquelas pessoas que não se conformam aos padrões de sexualidade heterossexuais impostos socialmente e todas as implicações disto em termos da distribuição social de privilégios materiais, culturais e simbólicos. A desigualdade que se configura entre as pessoas identificadas como heterossexuais e homossexuais é evidente na forma como estas últimas são vítimas constantes do preconceito, do abuso verbal, da violência física, da negação de direitos básicos de cidadania, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção conjunta de crianças por parceiros do mesmo sexo, pensão em caso de invalidez ou morte do parceiro etc. (Abramovay, Castro e Silva, 2004; Mello 2005; Mott, 1994; 2000).

Os estudos contemporâneos sobre sexualidade e gênero mostram que os termos do debate mudaram muito desde que Comte e Mill romperam relações nos primórdios da sociologia. No entanto, deixam claro que ainda há muito a ser feito no sentido de se eliminar as desigualdades entre homens e mulheres a que eles se referiam, assim como outras, que possivelmente eles sequer imaginavam existir, mas tão perversas e injustas quanto as primeiras.

Referências

ABRAMOVAY, Miriam ; CASTRO, Mary Garcia; SILVA, L. B (2004). Juventudes e Sexualidade. Brasília: Unesco.
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. São Paulo, Ed. Boitempo.
BEAUVOIR, Simone (1989 [1949]). The Second Sex.
CARVALHO, Marília Pinto (1998) Vozes Masculinas numa Profissão Feminina. Revista de Estudos Feministas, Rio de Janeiro, vol 6, no. 2, pp. 402-422.
HAIG, David (2004). The Inexorable Rise of Gender and the Decline of Sex: Changes in Academic Titles, 1945-2001. Archives of Sexual Behavior, Vol 33, No.2, Abril 2004, pp 87-96.
HEILBORN, Maria Luiza; CARRARA, Sérgio (1998). Em Cena, os Homens. Revista de Estudos Feministas, Rio de Janeiro, vol. 6, no. 2, pp. 370-74.
MELLO, Luiz (2005). O Tesouro embaixo do Arco-Íris. Grupo Gay da Bahia, Salvador, 2005. Disponível em: Acessado em: 11 maio 2005.
MOTT, Luiz (1994) A Sexualidade no Brasil Colonial. Diário Oficial de Leitura, São Paulo n.141, pp. 6-8.
MOTT, Luiz (2000) “Ethno-Histoire de L’Homossexualité en Amérique Latine” in François Crouzet (ed) Pour L’Histoire du Brésil. Paris: L’Harmattan, 2000. p. 285-303. Disponível em: . Acessado em 11 jan. 2005.
ROSEMBERG, Fúlvia (2000). “Educação Infantil, Gênero e Raça” in Antonio Sérgio Guimarães e Lynn Huntley, (orgs) Tirando a Máscara: Ensaios sobre o Racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra.
OUDSHOORN, Nelly (2000).
RUBIN, Gayle (1975). “The Traffic of Women: Notes on the Political Economy of Sex” in Rayna Reiter (ed.) Toward an Anthropology of Women. Nova York, Monthly Review Press.
SAFFIOTI, Heleieth (1992). “Rearticulando Gênero e Classe Social” in Albertina Costa e Cristina Bruschini (orgs.) Uma Questão de Gênero. Rio de Janeiro/São Paulo, Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas.
________ (2005), “Gênero e Patriarcado” in Márcia Castillo-Martín e Suely de Oliveira (orgs.) Marcadas a Ferro: Violência Contra a Mulher: Uma Visão Interdisciplinar. Brasil, Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para a Mulher.
SCOTT, Joan (1990) Gênero: Uma Categoría útil de Análise Histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, vol 16, no. 2, pp. 5-22.

(a ser editado)

Cynthia Hamlin

4 comentários:

Anônimo disse...

lembro de um outro post (sobre Butler, acho) em que se discutia rapidamente a idéia que o sexo fosse um produto do gênero e se apontava o problema em se definir tudo como "construção social".
Já que voltamos ao assunto queria saber como funciona esse processo em que o gênero "determina" o sexo?

Talvez seja algo tolo...era só uma curiosidade...

Anônimo disse...

Oi, Pedro,

Não é algo tolo, mas uma discussão importante que diz respeito à relação entre natureza e cultura. De forma ampla, o debate diz respeito às fronteiras entre as duas áreas e o argumento principal é o de que muito daquilo que concebemos como natureza é uma construção social/cultural. Questões como o aquecimento global, a diminuição das "bibliotecas genéticas" de espécies animais e vegetais, seriam exemplos do borramento dessas fronteiras.

No caso específico da discussão sexo/gênero, a questão recai sobre o fato de que algumas construções de gênero são tomadas como fatos biológicos. Para algumas filósofas da ciência, como Anne Fausto-Sterling e Ruth Bleier, por ex., o dimorfismo sexual (isto é, a existência de dois, e apenas dois, sexos) seria um exemplo disso. O argumento, que se baseia na existência de casos de interssexualidade, seria o de que o sexo deve ser concebido como um contínuum. Concebê-lo como dimórfico é um efeito de gênero, baseado em uma divisão binária do mundo que é puramente cultural.

Os principais argumentos das pessoas que trabalham com a biologia do sexo são resumidos por Cynthia Krauss em seu "Le Corps, Entre Sexe e Genre" (2005), como se segue:

1- Existem diferenças biológicas entre os sexos;
2- Mas essas diferenças não são significativas;
3- Porque as diferenças dentro de um mesmo sexo podem ser mais importantes do que as diferenças entre os dois sexos;
4- Conclusão: a biologia do sexo é muito mais plástica do que a política do gênero.

Pessoalmente, acho que essas críticas são furadas. Elas se baseiam em uma concepção inadequada do dimorfismo, concebido em termos de uma concepção determinista de causalidade segundo a qual qualquer mecanismo concebido como real é suficiente e necessário para gerar um fenômeno empírico específico. Mas esssa é uma discussão longa que não pode ser desenvolvida aqui.

Abraço

CAP disse...

Olá Cynthia!
estive lendo o seu post e adorei, porque estou partindo nesse sentido para a minha monografia da pósgraduação na unicamp/ Campinas/Sp.
Gostaria de saber se você pode me ajudar na colheta de materias para leituras, idéias e reflexo~es sobre:
Gênero e as suas linguagens e etnia
desde já te agradeço.
beijos.
Email:analuprof@gmail.com

Anônimo disse...

Prezada Ana Lúcia,

Desculpe, mas só hoje vi seu comentário. Puxa, você está em um dos principais centros de estudos feministas e de gênero do país! Imagino que o pessoal do Pagu teria muito mais a lhe dizer do que eu. De qualquer forma, coloco-me à disposição para ajudar no que puder. Meu email:

cynthiahamlin@hotmail.com

Abraço