Por Tâmara de Oliveira
Congressos grandes provocam-me uma sensação comparável àquela de estar diante de « n » marcas de uma mercadoria: opções concomitantes e demasiadas desestabilizam-me, intimidam-me, cansam-me, tiram-me o gosto e o poder da escolha. Assim, nas raras vezes em que vou, tenho a mesma estratégia: concentro-me no GT onde apresento trabalho, assisto a uma ou (no máximo) duas conferências e, no resto do tempo, passeio entre as editoras ; não tanto para comprar livros (para mim, a redução do preço não compensa o peso na mala), mas tentando reencontrar velhos amigos e fazer novos. Esclarecendo: não é que não goste de mercadorias nem de congressos, nem estou aqui reduzindo uns às outras; apenas ambos assustam-me quando em excesso.
Foi assim no ultimo congresso da SBS, em Curitiba. Apresentei trabalho no GT Segregação social, políticas públicas e direitos humanos, coordenado pelos professores Luiz Antonio Machado da Silva (IUPERJ/UFRJ) e Pedro Rodolfo Bodê de Moraes (UFPR). Não os conhecia, mas a proposta do GT indicava, a priori, uma afinidade eletiva entre o ponto de vista deles e o meu sobre dinâmicas de desigualdades e conflitualidades nas sociedades contemporâneas. E eu tinha feito, em 2008, uma pesquisa exploratória em representações sociais sobre a cidadania, junto a estudantes franceses do ensino médio, onde um fenômeno grave de segregação – a escolar –, num sistema de ensino quase inteiramente público, revelou-se como saber de pano-de-fundo das representações sociais sobre/da cidadania, tanto dos estudantes pesquisados quanto do pesquisador.
Quando li a proposta do GT de Luiz Antonio Machado e Pedro Bodê, percebi imediatamente que seria um espaço possível para discutir e partilhar o que conheci daquele fenômeno da França contemporânea, pensando que a reflexão comparativa sobre processos de segregação social é uma tarefa inevitável nesse mundo globalizado de meu deus. Tive que estudar um bocado (já que os resultados de minha pesquisa exploratória não eram suficientes para escrever sobre a segregação escolar ao mesmo tempo sócio-econômica e etnicizada que sofre o sistema escolar francês), mas fui bem recompensada pelo esforço: o GT abrigou meu trabalho e suas discussões durante o congresso mostraram que minha percepção estava certa: o ponto de vista dos coordenadores tem afinidades importantes para com o meu.
Na primeira sessão do GT, o professor Pedro Bodê verbalizou sua motivação de fundo – que espero conseguir reproduzir aqui sem deformar o sentido: a de inscrever no campo dos estudos sobre violência, segurança e políticas públicas, tanto na dimensão da sociabilidade em territórios segregados quanto naquela das práticas do Estado e ONGs sobre esses territórios, uma abordagem que para ele anda sendo esvaziada, aquela dos processos contemporâneos de segregação social, pensando que a temática das desigualdades deve reassumir um papel central nesses estudos.
Ora, justamente, meu trabalho tentou descrever a evolução da primeira política afirmativa do Estado francês para combater formas de segregação social já urbanamente visíveis no início dos anos 1980 ( as Zones d’Éducation Prioritaire – ZEP). Formas estas que atingiam negativamente as camadas populares da sociedade, manifestando-se duplamente: sócio-econômica e etnicamente. Sendo reproduzidas dentro de seu sistema escolar quase inteiramente público, essas formas de segregação ainda não tinham desembocado numa classificação idealtipicamente binária, a escola do centro e a escola da periferia, mas são atualmente um ponto quase pacífico entre pesquisadores e estudiosos do sistema escolar francês.
Não sendo resultado de pesquisa empírica mas de levantamento bibliográfico, tanto de pesquisas universitárias quanto de textos oficiais e de atores envolvidos com a Educação Prioritária, o trabalho seguiu entretanto uma hipótese orientadora da reflexão: genealogicamente, essa política do primeiro governo socialista para enfrentar uma segregação escolar que ainda não dizia seu nome, era apenas reativa a um processo de segregação urbana exprimindo-se duplamente – sócio-econômica e etnicamente. Mas sua longa evolução, principalmente a partir de 2002 quando a direita volta a governar sozinha e os socialistas perderam as eleições e o juízo, indica que a Educação Prioritária à francesa tem se transformado em política pública que participa ativa e voluntariamente de uma abordagem securitária e segregacionista das classes populares da França contemporânea, das quais a etnicização/estigmatização dos que tem ascendência nas ex-colônias, é uma das moedas correntes de legitimação político-governamental.
Tive também a oportunidade de entrar em contato com trabalhos de uma sofisticação teórica e metodológica admiráveis, como a do doutorando Dinaldo Almendra (UERJ), intitulado Junto e separado: rotina, segregação social e violência urbana carioca. Estudando as representações sociais das redes de sociabilidade entre diversos tipos de atores envolvidos com a violência carioca urbana (policiais, traficantes, usuários de drogas, jornalistas, agentes públicos, pesquisadores, militantes de movimentos sociais, etc.), Almendra sustenta a hipótese de que a ética do provedor (Alba Zaluar) enquanto lógica distintiva do mundo do crime naqueles territórios urbanos segregados, tem sido substituída por uma lógica interativa e situacional que ele chama de lealdade instrumental, espécie de dispositivo que junta e separa ao mesmo tempo esses atores do mundo segregado das favelas, assim sustentando objetiva e simbolicamente a segregação:
(…)os laços que unem de modo rotineiro e profundo esses atores sociais são, rigorosamente, os mesmos laços que os distanciam entre si com brutal e igual intensidade. Disso resulta a hipótese central da tese, a de que a relação de contiguidade entre as duas ordens sociais deu origem a uma espécie de vínculo social armado e impulsionado internamente com um dispositivo de convivência interpessoal que força as relações de rotina em dois movimentos concomitantes: de aproximação e de separação dos atores sociais. Todos transitam e desempenham papéis ambíguos e às vezes ambivalentes nas relações de cerco à vida da população favelada, atuando nos liames exatos da relação de contiguidade entre duas ordens sociais. Os vínculos são regulados através de operações críticas realizadas pelos atores e orientadas para o estabelecimento de nexos de “identificações sociais ocasionais” necessários aos movimentos de contração ou de ampliação de “lealdades transitórias”.
Na segunda sessão, quando foi a vez do professor Luiz Antonio Machado debater as apresentações, optando por um balanço reflexivo do que tinha sido discutido até ali, ele declarou que o conceito de segregação parece dizer que não existe dentro e fora, lançando a seguinte pergunta: supondo que o Estado constitui-se constituindo suas margens, estas seriam inevitáveis às políticas públicas? Lembrando que desigualdades de classe não implicam necessariamente em segregação social, Machado colocou que uma maneira de estabilizar as relações de classe foi o Estado do Bem-Estar Social (de quem quase todos tem saudades, mas que era denegrido por quase todo mundo em sua época), definido por ele como uma política pública (ou seja, como uma intervenção intencional de uma coletividade sobre si mesma), sob a forma de um pacto de proteção social e legitimado pelas classes subalternas. Ora, traduzida pela linguagem dos direitos, essa política pública foi substituída por uma linguagem de violência urbana. Eu acrescentaria: linguagem de violência urbana cada vez mais segregacionista, globalmente, e construída/construindo-se entre Estados e atores sociais – em versões diferentes, de centro-esquerda e « doce », como no Brasil desde meados dos anos 1990; de direita e « dura », como na França desde 2002.
O professor Machado disse também ter observado que os trabalhos ali apresentados oscilavam entre uma ficha do « dever ser » e uma ficha interna, analítica. Ele declarou pensar que, para intervir, é preciso antes entender como se produz, e de que forma, a relação entre Estado e segregação social. Para ele, a esperança não é nossa, mas de nosso objeto, pois que os atores sociais são competentes. Ele não disse todas essas coisas dessa maneira nem nessa ordem. Recoloco-as segundo sua ressonância sobre mim. Por isso deixei por último essa afirmação sobre a esperança que não é nossa, mas de nosso objeto. Aquilo ficou incomodando, apesar do estado de encantamento a que a fala do professor Luiz Antonio Machado, de humor e inteligência brilhantes e empáticos, levou-me inevitavelmente.
Depois de uma passeio pela tenda das editoras, fui para o hotel porque tinha compromisso comemorativo à noite. Fumante que sou, estava segregada do lado de fora da porta do hotel, esperando telefonema dos amigos, quando aproximou-se um homem ainda jovem pedindo-me esmola. O celular tocou no mesmo momento. Pedi que o rapaz esperasse, atendi, marquei hora com os amigos e voltei a olhá-lo. Ele me olhava com um sorriso ditoso, dizendo-me mais ou menos assim:
- Dona, você já me deu muito, só por olhar para mim; porque as pessoas hoje em dia, quando vêem a gente, pensam que a gente vai roubar, esfaquear, matar.
- Mas eu tenho alguma coisa pra você, respondi já estomacada de culpa e desrazão, o que tiver aqui eu passo para você. Você é curitibano ?
- Muito obrigado. Eu sou gaúcho; quinze anos sem-teto.
- E é um homem bonito, acrescentei sem saber o que estava dizendo, talvez apenas porque ele era realmente um cara ainda bonito (tipo moreno tenebroso gaúcho), apesar dos frangalhos de roupas e da falta de banho regular.
Aí seu sorriso ficou eufórico, os olhos brilhavam como os de um menino (mas sem nenhuma insinuação de paquera ou qualquer coisa que o valha). E respondeu:
- Muito obrigado! Muito obrigado, mesmo! Demais.
E partiu sorrindo com minhas ex-moedas e eu fiquei prendendo o choro. Talvez apenas devido ao meu cristianismo ateu de esquerda. Mas talvez também porque, em sua fala, o professor Machado esqueceu que, em ciências sociais, nós também somos parte de nosso objeto. Acredito que eu estava ali diante de um ator social das ruas, suficientemente competente para perceber imediatamente que estava diante de alguém que reconhecera sua humanidade. Essa sua competência orientou uma interação em que ele conseguiu o máximo de dinheiro que um morador de rua pode esperar de um digno membro das classes médias frequentadoras de hotéis medianos. Mas sei também que é porque somos parte de nosso objeto, que nossos trabalhos no GT oscilaram entre o «dever ser» e o analítico (o conhecimento). Finalmente, coisa que o bonito mendigo gaúcho me mostrou mais uma vez na vida, as desigualdades e conflitualidades contemporâneas em torno da segregação dos mais desfavorecidos, tem nos enjeux de reconhecimento/luta pelo reconhecimento, uma chave analítica importante. Que assim seja.
BIBLIOGRAFIA :
AMENDRA, D. Junto e separado : rotina, segregação social e violência urbana carioca. In : mudanças, permanências e desafios sociológicos. Resumos. XV Congresso Brasileiro de Sociologia. 26 a 29 de julho de 2011. UFPR, Curitiba, PR.
HONNETH, A. La lutte pour la reconnaissance. Paris : Cerf, 2000.
OLIVEIRA, T. de. ZEPs : efeito perverso ou componente institucional de uma dupla segregação ? In : mudanças, permanências e desafios sociológicos.Resumos. XV Congresso Brasileiro de Sociologia. 26 a 29 de julho de 2011. UFPR, Curitiba, PR.