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Imigrantes albaneses chegam à Itália, 1991 (Fonte: Corbis) |
Por Raquel Camargo - Professora Substituta do Dept. de Ciências Jurídicas da UFPB
H. Arendt nos ensina que o Estado-moderno, desde o seu início, assumiu a forma de Estado-nação. Ou, nos termos de Habermas, com o “desencantamento do mundo” a organização que veio suprir a contento a necessidade de racionalização da vida, sem perder o componente da transcendência, foi exatamente o Estado-nação. Mistura engenhosa e criativa, porém quase improvável, o Estado-nação forneceu a melhor resposta: um novo modo de legitimação do poder – republicano e racional – convivendo com o pertencimento, mais ou menos espontâneo, mais ou menos forjado, a uma ideia de nação pautada no compartilhamento de uma língua, de uma história e de uma vontade difusa de “viver junto” (RENAN, 1992). Em outras palavras, o Estado-nação, ao pertencimento a uma comunidade de livres e iguais – o Estado – juntava um sistema de representação capaz de produzir sentido para a alma – a nação.
Ao falar desse tema, que tanto me estimula e inquieta, não posso deixar de mencionar o meu próprio itinerário pessoal, longo e surreal, de convencimento de um membro de minha banca de defesa final do mestrado da possibilidade de usar este binômio (Estado-nação) sem estar cometendo a maior incoerência jurídica de todos os tempos. Quando eu estava perto de vencê-lo pelo cansaço, chegamos a um acordo meio bizarro: cada vez que eu pronunciasse ou escrevesse a polêmica expressão, deveria me justificar mostrando as razões de fazê-lo. Pois bem, acho que sou dura na queda, não desisto: volta e meia retorno com o problemático, porém não menos fascinante, Estado-nação.
Começo tentando fazer justiça, dizendo que compreendo as inquietações do meu professor. Ora, falar em Estado-nação é trazer a todo momento um componente de pertencimento cultural e acreditar numa ideia “vaga”, historicamente datada, de compartilhamento de crenças, identidades, hábitos e vários outros elementos inventados para que encontrássemos certo sentido no ato de vivermos juntos. Portanto, juridicamente falando, e já pedindo desculpas pelo trocadilho, acreditar nesse sentido não faz mais nenhum sentido. Tal atitude é, inclusive, nociva, pois implica em excluir do pertencimento ao Estado todos aqueles que não podem se inserir na “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008) que convencionamos chamar de nação. Devemos, pois, seguindo este raciocínio, substituir a expressão “Estado-nação” por “Estado-territorial”, e ao nos referirmos à dimensão pessoal do Estado, devemos então falar em “povo”, não em “nação”.
Essa fórmula/estratégia de substituição tem um objetivo claro e configura uma tese defendida por vários autores, sobretudo aqueles que têm uma inserção transdisciplinar no campo da política e do direito internacional (CORRAL, 2006). A ideia é de que, como diria Schnnaper (2003), alguns conceitos escondem verdadeiras teorias. Assim, trocar “Estado-nação” por “Estado-territorial” seria defender a ideia segundo a qual, nos Estados democráticos, o povo não precisa mais se configurar como nação para que haja o pertencimento estatal, basta fazer parte dos limites territoriais dentro dos quais o Estado exerce a sua jurisdição. A principal e melhor consequência deste rearranjo é que a cidadania deixaria de depender da nacionalidade e os estrangeiros poderiam ser tornar cidadãos.
Não é que não considere esse resultado o melhor possível, ao contrário. Dentro do melhor dos mundos possíveis é exatamente isso o almejado, que o mundo não mais se divida em Estado-nações e os estrangeiros possam ter acesso a uma cidadania que lhes garanta direitos fundados no princípio do indivíduo, e não no pertencimento nacional. A história, porém, nos deixa calejados. Como dar concretude ao povo senão através da nação? Claude Lefort (2003) não tinha razão ao dizer que o povo sem nação é mera abstração? Quando eu falo em “povo”, como posso atribuir uma forma a essa massa disforme senão por via da nação? O povo... Mas que povo? O povo francês, o povo inglês, o povo brasileiro etc. Por outro lado, não foi exatamente através do Estado-nação que conseguimos dar forma e conteúdo ao Estado, desde Hobbes pensado como uma pessoa fictícia?
As palavras dão nomes as coisas, são suportes, ou melhor, signos linguísticos que trazem significados e nos permitem representar o mundo. Mas as coisas existem! No caso da nação, por mais que a palavra expresse uma invenção do mundo da cultura, isto é, do mundo dos significados, ela não foi pensada em meio a um vazio. Ela é uma ficção, sim, mas nem por isso é uma mentira. Ficções são invenções que de alguma forma representam a realidade. A nação não pode ser observada da maneira como observamos um fenômeno da natureza, por exemplo. Porém, a nação traduz um sentimento que não pode ser negligenciado (acabamos de assistir as Olimpíadas em Londres, por sinal...).
Longe de mim achar que o modelo de Estado-nação não gera exclusões as mais drásticas possíveis. É exatamente a nação, ou melhor, a criativa mistura entre Estado e nação, que faz com que a até hoje a cidadania dependa da nacionalidade. Consequencia disso: os imigrantes estrangeiros não podem ser considerados cidadãos, o que os colocam em uma situação delicada na hora de fazer valer seus direitos.
De fato, é impossível negar a crise do modelo de Estado-nação. “Crise”, no entanto, não implica em superação imediata, e sim em um momento agonizante a partir do qual novos e desconhecidos caminhos podem ser imaginados. As crises configuram momentos ideais para pensar, questionar e vislumbrar novas possibilidades. O importante, nesse exercício, é “não jogar fora o bebê junto com a água do banho”, como faz, por exemplo, Mario Vargas Llosa ao culpar o Estado-nação por todos os males e todas as crueldades produzidas pela humanidade e acusá-lo do exemplo privilegiado de uma imaginação maligna (SCHNNAPER, 2003).
Para esse tipo de reflexão, a leitura de Butler me parece uma ótima opção. Ao tentar rearranjar a ideia de Estado-nação, ela parte de uma mistura tão criativa e improvável quanto àquela que deu origem a esse conceito: literatura comparada, política, estética e uma pitada de filosofia da linguagem. Uma associação muito livre de ideias e observações da realidade que nos levam ao estimulante conceito de “contradição perfomativa”. A que isso dá nome? Explico-me.
Butler, observando da janela de sua casa uma manifestação de imigrantes que acontecia em uma rua qualquer de Los Angeles, foi levada a exercer sua imaginação e nos brindar com o belíssimo articulado de ideias que compõe o livro Quem canta o Estado Nação?. A situação é a seguinte: no ano de 2006, imigrantes hispânicos em situação irregular fizeram uma marcha na qual foi cantado, como forma de protesto, o hino nacional estadunidense em espanhol. Butler viu nessa manifestação performática o caldo perfeito para a reflexão sobre imigrantes ilegais sem nacionalidade, portanto sem cidadania.
A primeira coisa que Butler identificou foi a existência de um “nós”, isto é, um sujeito coletivo, que ao cantar hino em espanhol reivindicava, de forma performática, a inclusão na nação estadunidense. Esse pedido de inclusão, porém, não era tão simples, pois não se tratava apenas de se inserir em uma ideia já existente de nação. O buraco, ou melhor, a nação, era mais embaixo: o ato de cantar o hino estadunidense em espanhol trazia consigo o problema da igualdade, sem a qual o “nós” que compõe a nação fica impronunciável (BUTLER, 2009). A igualdade necessária para pronunciar o “nós” que compõe a nação, porém, é excludente. Tanto que, na ocasião, Bush se pronunciou para deixar claro que “o hino nacional só se canta em inglês”, do contrário, ele deixa de ser nacional. Está montado o drama. Parece que o máximo que poderia ser feito em termos de inclusão na ideia de nação era admitir um pouquinho de pluralismo para incluir umas tantas pessoas e depois redefinir os critérios de igualdade para a partir daí excluir umas tantas outras.
Felizmente Butler não parou por aí. E se considerássemos que manifestações como estas são exercícios retórico-performativos que, de tão improváveis, paradoxais e contraditórios poderiam nos fornecer novos modelos para reorganizar o poder? Afinal, não são das misturas mais impensáveis e experimentais que surgem os imponderáveis da vida? Vejamos então até que ponto o exercício da imaginação pode nos levar: a tal marcha dos imigrantes é uma contradição performativa em todos os seus termos – e seria uma catástrofe se não fosse tão inovadora. O hino nacional foi cantado em espanhol, contrariando o requisito monolinguístico da nação, e na rua, espaço público por excelência no qual os imigrantes ilegais não têm o direito de se reunir. Ou seja, os imigrantes que participaram do protesto estavam exercendo direitos que, na realidade, não possuíam. Apropriaram-se daquilo que pediam, tornando visível uma liberdade que, contraditoriamente, não estava lá (BUTLER, 2009). Não se pode deixar de ver a importância simbólica deste ato: a nação estava se reproduzindo em termos retóricos não autorizados através dos imigrantes!
O que realmente existiu e o que pôde ser gerado com esse ato político contraditório e performático? Que relação se pode traçar entre o que entendemos por nação, ou, se preferirmos, a nossas representações de nação, e a realidade que se deixa ser observada? Em outras palavras, esse tipo de exercício imaginativo é útil para resolver, ou ao menos explicar, os problemas que realmente importam? O que consigo perceber observando a realidade é que, no mundo de hoje, as pessoas se deslocam cada vez mais e nesses movimentos os limites e fronteiras, ainda que não passem de construções imaginárias, repercutem de forma muito real na vida de todos nós. É só experimentar atravessar uma fronteira nacional sem um visto ou um passaporte alegando ser cidadão do mundo para que se sinta na pele os efeitos do não pertencimento nacional. O que me faz concluir que o Estado-nação é problemático, mas, ainda assim, não podemos prescindir de refletir e nem mesmo de considerar a existência, talvez tardia, dele. E uma boa maneira de fazer isso é se acostando em autores que, de forma criativa, tentam resignificar a própria realidade.
Acabo, pois, como Butler, sem encontrar uma resposta certa para o problema da exclusão dos imigrantes estrangeiros do pertencimento nacional, mas acreditando que as contradições são bem vindas. Devemos levá-las em conta se queremos mudar aquilo que, embora saibamos uma construção e por isso passível de ser relativizada, ainda nos apresenta como praticamente imutável. É o caso do Estado-nação.
Referências
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
H. Arendt nos ensina que o Estado-moderno, desde o seu início, assumiu a forma de Estado-nação. Ou, nos termos de Habermas, com o “desencantamento do mundo” a organização que veio suprir a contento a necessidade de racionalização da vida, sem perder o componente da transcendência, foi exatamente o Estado-nação. Mistura engenhosa e criativa, porém quase improvável, o Estado-nação forneceu a melhor resposta: um novo modo de legitimação do poder – republicano e racional – convivendo com o pertencimento, mais ou menos espontâneo, mais ou menos forjado, a uma ideia de nação pautada no compartilhamento de uma língua, de uma história e de uma vontade difusa de “viver junto” (RENAN, 1992). Em outras palavras, o Estado-nação, ao pertencimento a uma comunidade de livres e iguais – o Estado – juntava um sistema de representação capaz de produzir sentido para a alma – a nação.
Ao falar desse tema, que tanto me estimula e inquieta, não posso deixar de mencionar o meu próprio itinerário pessoal, longo e surreal, de convencimento de um membro de minha banca de defesa final do mestrado da possibilidade de usar este binômio (Estado-nação) sem estar cometendo a maior incoerência jurídica de todos os tempos. Quando eu estava perto de vencê-lo pelo cansaço, chegamos a um acordo meio bizarro: cada vez que eu pronunciasse ou escrevesse a polêmica expressão, deveria me justificar mostrando as razões de fazê-lo. Pois bem, acho que sou dura na queda, não desisto: volta e meia retorno com o problemático, porém não menos fascinante, Estado-nação.
Começo tentando fazer justiça, dizendo que compreendo as inquietações do meu professor. Ora, falar em Estado-nação é trazer a todo momento um componente de pertencimento cultural e acreditar numa ideia “vaga”, historicamente datada, de compartilhamento de crenças, identidades, hábitos e vários outros elementos inventados para que encontrássemos certo sentido no ato de vivermos juntos. Portanto, juridicamente falando, e já pedindo desculpas pelo trocadilho, acreditar nesse sentido não faz mais nenhum sentido. Tal atitude é, inclusive, nociva, pois implica em excluir do pertencimento ao Estado todos aqueles que não podem se inserir na “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008) que convencionamos chamar de nação. Devemos, pois, seguindo este raciocínio, substituir a expressão “Estado-nação” por “Estado-territorial”, e ao nos referirmos à dimensão pessoal do Estado, devemos então falar em “povo”, não em “nação”.
Essa fórmula/estratégia de substituição tem um objetivo claro e configura uma tese defendida por vários autores, sobretudo aqueles que têm uma inserção transdisciplinar no campo da política e do direito internacional (CORRAL, 2006). A ideia é de que, como diria Schnnaper (2003), alguns conceitos escondem verdadeiras teorias. Assim, trocar “Estado-nação” por “Estado-territorial” seria defender a ideia segundo a qual, nos Estados democráticos, o povo não precisa mais se configurar como nação para que haja o pertencimento estatal, basta fazer parte dos limites territoriais dentro dos quais o Estado exerce a sua jurisdição. A principal e melhor consequência deste rearranjo é que a cidadania deixaria de depender da nacionalidade e os estrangeiros poderiam ser tornar cidadãos.
Não é que não considere esse resultado o melhor possível, ao contrário. Dentro do melhor dos mundos possíveis é exatamente isso o almejado, que o mundo não mais se divida em Estado-nações e os estrangeiros possam ter acesso a uma cidadania que lhes garanta direitos fundados no princípio do indivíduo, e não no pertencimento nacional. A história, porém, nos deixa calejados. Como dar concretude ao povo senão através da nação? Claude Lefort (2003) não tinha razão ao dizer que o povo sem nação é mera abstração? Quando eu falo em “povo”, como posso atribuir uma forma a essa massa disforme senão por via da nação? O povo... Mas que povo? O povo francês, o povo inglês, o povo brasileiro etc. Por outro lado, não foi exatamente através do Estado-nação que conseguimos dar forma e conteúdo ao Estado, desde Hobbes pensado como uma pessoa fictícia?
As palavras dão nomes as coisas, são suportes, ou melhor, signos linguísticos que trazem significados e nos permitem representar o mundo. Mas as coisas existem! No caso da nação, por mais que a palavra expresse uma invenção do mundo da cultura, isto é, do mundo dos significados, ela não foi pensada em meio a um vazio. Ela é uma ficção, sim, mas nem por isso é uma mentira. Ficções são invenções que de alguma forma representam a realidade. A nação não pode ser observada da maneira como observamos um fenômeno da natureza, por exemplo. Porém, a nação traduz um sentimento que não pode ser negligenciado (acabamos de assistir as Olimpíadas em Londres, por sinal...).
Longe de mim achar que o modelo de Estado-nação não gera exclusões as mais drásticas possíveis. É exatamente a nação, ou melhor, a criativa mistura entre Estado e nação, que faz com que a até hoje a cidadania dependa da nacionalidade. Consequencia disso: os imigrantes estrangeiros não podem ser considerados cidadãos, o que os colocam em uma situação delicada na hora de fazer valer seus direitos.
De fato, é impossível negar a crise do modelo de Estado-nação. “Crise”, no entanto, não implica em superação imediata, e sim em um momento agonizante a partir do qual novos e desconhecidos caminhos podem ser imaginados. As crises configuram momentos ideais para pensar, questionar e vislumbrar novas possibilidades. O importante, nesse exercício, é “não jogar fora o bebê junto com a água do banho”, como faz, por exemplo, Mario Vargas Llosa ao culpar o Estado-nação por todos os males e todas as crueldades produzidas pela humanidade e acusá-lo do exemplo privilegiado de uma imaginação maligna (SCHNNAPER, 2003).
Para esse tipo de reflexão, a leitura de Butler me parece uma ótima opção. Ao tentar rearranjar a ideia de Estado-nação, ela parte de uma mistura tão criativa e improvável quanto àquela que deu origem a esse conceito: literatura comparada, política, estética e uma pitada de filosofia da linguagem. Uma associação muito livre de ideias e observações da realidade que nos levam ao estimulante conceito de “contradição perfomativa”. A que isso dá nome? Explico-me.
Butler, observando da janela de sua casa uma manifestação de imigrantes que acontecia em uma rua qualquer de Los Angeles, foi levada a exercer sua imaginação e nos brindar com o belíssimo articulado de ideias que compõe o livro Quem canta o Estado Nação?. A situação é a seguinte: no ano de 2006, imigrantes hispânicos em situação irregular fizeram uma marcha na qual foi cantado, como forma de protesto, o hino nacional estadunidense em espanhol. Butler viu nessa manifestação performática o caldo perfeito para a reflexão sobre imigrantes ilegais sem nacionalidade, portanto sem cidadania.
A primeira coisa que Butler identificou foi a existência de um “nós”, isto é, um sujeito coletivo, que ao cantar hino em espanhol reivindicava, de forma performática, a inclusão na nação estadunidense. Esse pedido de inclusão, porém, não era tão simples, pois não se tratava apenas de se inserir em uma ideia já existente de nação. O buraco, ou melhor, a nação, era mais embaixo: o ato de cantar o hino estadunidense em espanhol trazia consigo o problema da igualdade, sem a qual o “nós” que compõe a nação fica impronunciável (BUTLER, 2009). A igualdade necessária para pronunciar o “nós” que compõe a nação, porém, é excludente. Tanto que, na ocasião, Bush se pronunciou para deixar claro que “o hino nacional só se canta em inglês”, do contrário, ele deixa de ser nacional. Está montado o drama. Parece que o máximo que poderia ser feito em termos de inclusão na ideia de nação era admitir um pouquinho de pluralismo para incluir umas tantas pessoas e depois redefinir os critérios de igualdade para a partir daí excluir umas tantas outras.
Felizmente Butler não parou por aí. E se considerássemos que manifestações como estas são exercícios retórico-performativos que, de tão improváveis, paradoxais e contraditórios poderiam nos fornecer novos modelos para reorganizar o poder? Afinal, não são das misturas mais impensáveis e experimentais que surgem os imponderáveis da vida? Vejamos então até que ponto o exercício da imaginação pode nos levar: a tal marcha dos imigrantes é uma contradição performativa em todos os seus termos – e seria uma catástrofe se não fosse tão inovadora. O hino nacional foi cantado em espanhol, contrariando o requisito monolinguístico da nação, e na rua, espaço público por excelência no qual os imigrantes ilegais não têm o direito de se reunir. Ou seja, os imigrantes que participaram do protesto estavam exercendo direitos que, na realidade, não possuíam. Apropriaram-se daquilo que pediam, tornando visível uma liberdade que, contraditoriamente, não estava lá (BUTLER, 2009). Não se pode deixar de ver a importância simbólica deste ato: a nação estava se reproduzindo em termos retóricos não autorizados através dos imigrantes!
O que realmente existiu e o que pôde ser gerado com esse ato político contraditório e performático? Que relação se pode traçar entre o que entendemos por nação, ou, se preferirmos, a nossas representações de nação, e a realidade que se deixa ser observada? Em outras palavras, esse tipo de exercício imaginativo é útil para resolver, ou ao menos explicar, os problemas que realmente importam? O que consigo perceber observando a realidade é que, no mundo de hoje, as pessoas se deslocam cada vez mais e nesses movimentos os limites e fronteiras, ainda que não passem de construções imaginárias, repercutem de forma muito real na vida de todos nós. É só experimentar atravessar uma fronteira nacional sem um visto ou um passaporte alegando ser cidadão do mundo para que se sinta na pele os efeitos do não pertencimento nacional. O que me faz concluir que o Estado-nação é problemático, mas, ainda assim, não podemos prescindir de refletir e nem mesmo de considerar a existência, talvez tardia, dele. E uma boa maneira de fazer isso é se acostando em autores que, de forma criativa, tentam resignificar a própria realidade.
Acabo, pois, como Butler, sem encontrar uma resposta certa para o problema da exclusão dos imigrantes estrangeiros do pertencimento nacional, mas acreditando que as contradições são bem vindas. Devemos levá-las em conta se queremos mudar aquilo que, embora saibamos uma construção e por isso passível de ser relativizada, ainda nos apresenta como praticamente imutável. É o caso do Estado-nação.
Confesso que gostei do que escutei na rua. Soava bem, era uma linda canção. Creio que nos deixa com uma pergunta acerca da relação entre linguagem, performatividade e política. Uma vez que deixamos de lado o ponto de vista que afirma que nenhuma posição política pode basear-se em uma contradição performativa, e admitimos a função performativa como uma declaração e um ato cujos efeitos se despregam no tempo, então podemos considerar a tese oposta, isto é, que não pode haver uma política de mudança radical sem contradição performativa [...] (BUTLER, 2009).
Referências
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Quién le canta al Estado-Nación? Buenos Aires: Paidós, 2009.
CORRAL, Benito Aláez. Nacionalidad, ciudadanía y democracia. ¿A quién pertence La Constituición? Madrid: Tribunal Constitucional, 2006.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
LEFORT, Claude. Nação e soberania. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise do Estado-nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation? Et autres essays politiques. AGORA, 1992.
SCHNAPPER, Dominique. La communauté des citoyens. Paris: Galimard, 2003.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol.2. Brasília: UNB, 2004.
LEFORT, Claude. Nação e soberania. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise do Estado-nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation? Et autres essays politiques. AGORA, 1992.
SCHNAPPER, Dominique. La communauté des citoyens. Paris: Galimard, 2003.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol.2. Brasília: UNB, 2004.