Tâmara de Oliveira
Tudo começou num final de tarde primaveril. Um enxame de abelhas tinha se instalado de uma hora para outra numa árvore do jardim. Imagem desconfortável essa, a de uma multidão agrupada, organizada e produtiva (vista ?), aparentemente disposta a fundar uma nova colônia – a rainha, suas operárias e seus machos desesperados – em propriedade humana alheia, ou seja, em nossa casa ! O que fazer ? Entre o arrepiado fascínio pela concretude daquela solidariedade mecânica em movimento e a consciência da impotência para expulsá-la dali sem mais nem menos, optamos por um sono reparador. « Amanhã a gente vê ». E vimos ! A massa holística continuava no mesmo lugar, mas alguns indivíduos já se deslocavam para experimentar o gosto das flores de nosso jardim. Será que estávamos diante de um processo histórico individualista, de passagem da solidariedade mecânica para a orgânica?
Deixamos nossas indagações durkheimianas (Durkheim, 2004) de lado e ligamos para amáveis bombeiros que nos deram o número de uma associação de apicultores, cujo ofício, comprende-se, implica em interesse direto pela ação de desembaraçar aturdidos citadinos de uma abelhuda ocupação da sacrossanta propriedade privada. Eles viriam no final da tarde, momento em que as abelhas estão calmas, segundo esses experts. E passamos o dia entre fascínio e medo, vigiando arrepiados o movimento do enxame, aprendendo pela internet um monte de coisinhas sobre a vida das abelhas, ansiando por ver ao vivo e a domicílio como os apicultores fazem para deslocar milhares de abelhas de uma árvore até onde eles querem.
Tínhamos verificado o enxame não mais do que vinte minutos antes da chegada dos apicultores e ele estava firme na árvore. Pois bem, garantimos ao leitor: abelhas em processo de construção social da realidade (de uma nova colmeia ou colônia) são mais traiçoeiras do que menino pequeno em praia. Podem desaparecer como que por encanto ! Quando a dupla de apicultores chegou com seus apetrechos, imagine nosso vexame ao nos depararmos com umas minguadas vinte ou trinta abelhas circulando em torno de uma árvore sem enxame ! Nós, estupefatos ; eles, sorrindo tranquilamente, dizendo que isso acontece com frequência, elas podiam ter voltado à velha colmeia ou estarem procurando um lugar mais interessante. E foi assim que orgulhosos proprietários viram-se na situação constrangedora de saberem que sua sacrossanta propriedade fora rejeitada pelas abelhas… O leitor já pode estar pensando : « e cadê a relação entre abelhas, ateus, muçulmanos e representações sociais ? »
Pobre leitor que não teve a sorte de assistir à entrada e à prestação da dupla de apicultores da tal associação…Saímos de uma experiência etológica onde a solidariedade mecânica primava e entramos com nossas representações ancoradas nas sociedades humanas contemporâneas, onde a diversidade pode andar junta mas nem sempre é percebida em seus pontos de conexão – por conta das tais representações sociais ancoradas (Moscovici, 2004) e das relações e sistemas de desigualdade e poder que vão avec. Foi assim que vimos, a priori e surpresos, uma dupla improvável : um « típico marselhês » branco-avermelhado, conversador e sorridente, acompanhado de um « típico árabe » moreno, silencioso e com uma enorme barba sinalizando uma prática muçulmana fundamentalista (como os salafistas e tablighs, seitas onde as mulheres cobrem-se integralmente e sobre as quais escrevemos no Cazzo em março último). E se tratando por « tu », coisa que na França demonstra que as pessoas em questão mantêm relação informal, próxima. E a pergunta vinha : o que cabrunco um aspirante a salafista e um bebedor de pastis (álcool de anis apreciadíssimo em Marselha) estão fazendo juntos ?!!
Apicultura, é óbvio ! Mas não, nada era óbvio, se o fosse não estaríamos surpresos ao vê-los companheiros. Já de saída, não os teríamos distinguido entre marselhês e árabe, pois que ambos são perfeitamente de Marselha, com todo o seu sotaque carregado, indo da cor de pele branco-vermelha ao negro-azul, passando por todas as tonalidades de canela imagináveis. O que provavelmente parecia óbvio é que nós os vimos a priori através do que Peter Berger e Thomas Luckman (1996) definem como esquemas de tipificação do outro, ou seja, com modelos de definição que os encerravam em conteúdos relativamente fixos e orientavam nossa relação com eles. O grau de flexibilidade desses esquemas de tipificação é inversamente proporcional ao grau de anonimato do(s) outro(s) para com a gente. Ou seja, quanto mais um esquema de tipificação é impessoal, abstrato, genérico, quanto menos temos experiência concreta com o outro, mais a interação que temos com o assim tipificado cristaliza-se num sentido pré-estabelecido.
Em outros termos, consideramos aqui que os esquemas de tipificação do outro através dos quais definimos a visível camaradagem dos dois apicultores como dupla improvável, são representações sociais :
(...)De fato, representação é, fundamentalmente, um sistema de classificação e de denotação, de alocação de categorias e nomes. A neutralidade é proibida, pela lógica mesma do sistema, onde cada objeto e ser devem possuir um valor positivo ou negativo e assumir um determinado lugar em uma clara escala hierárquica. Quando classificamos uma pessoa entre os neuróticos, os judeus ou os pobres, nós obviamente não estamos apenas colocando um fato, mas avaliando-o e rotulando-o. E neste ato, nós revelamos nossa ‘teoria’ da sociedade e da natureza humana (Moscovici, 2004, p. 62).
Além disso, quando afirmamos que essas representações são ancoradas, queremos dizer que elas constróem-se sustentando-se em esquemas e experiências já consolidados em nossa mente ou, seguindo Moscovici, em nossas « teorias » da sociedade e da natureza, processo esse que, por sua vez, confere às representações sua função de interpretação e gestão das situações concretas. Por outro lado, posto que um processo de ancoragem implica no encontro entre velhas representações e novos objetos/experiências, ele pode produzir reelaborações em seus conteúdos, sendo então uma fonte possível de transformação do velho. A ancoragem é então, ao mesmo tempo, processo estático (repetição de conteúdos simbólicos orientando nossa relação com o mundo social e natural) e dinâmico (transformação desses conteúdos e orientações). O que poderia então tornar real a possibilidade do novo em representações ancoradas? Voltamos neste momento a Peter Berger e Thomas Luckmann (1996) que cercam essa possibilidade do novo a partir da noção de problema ou seja, falando sumariamente para voltarmos ao ateu e ao muçulmano e por preguiça de procurar citações, a partir de experiência(s) que os põem em cheque
Divertida e riquíssima experiência, a do nosso caso. De cara, porque o apicultor mais velho era alguém bem-humorado e amador de piadas, como ele próprio nos declarou ao entrar em nossa casa, afirmando que fazer piadas era marca de fábrica dos apicultores. Verdadeira matraca ambulante e sorridente, o conteúdo das piadas desse apicultor tinha entretanto um sentido geral longe do otimismo. Ele falava ao mesmo tempo em sua trajetória e no que ele apresentava como destino trágico das abelhas. Sempre sorrindo mas parecendo nos querer fazer chorar, falou que foi fiscal de apicultores durante muitos anos e que as abelhas, de dez anos para cá, perderam praticamente toda a imunidade. Em suma, sorria-nos dizendo o senhor marselhês, aquelas que permaneceram as mesmas durante mais de um bilhão de anos, encontram-se sem resistência a doenças, morrendo feito moscas. Mais um pouco e nos faria adotar uma colmeia no jardim, na defesa de nossas irmãs abelhas ! O homem era um mestre apicultor, não um mero profissional do mel ; pouco surpreendente sua capacidade em atrair para o seu discurso a simpatia de citadinos que jogam como meia-esquerda.
Também foi ele quem nos disse que estava formando o outro (o jovem) através da associação que nos prestou um socorro relativamente interessado. E foi aí que um novo tema de discussão foi apresentado pelo velho mestre : afirmando-se como anti-racista e provando-o por ter formado jovens dos mais diferentes tipos de origem cultural, aproveitou para nos informar que ele próprio era ateu mas que seu discípulo ali presente era religioso. Ou seja, não fôramos assim tão pré-conceituosos com aquela barba enorme, a desalmada realidade das Loretas (ver post de Cynhtia de 16.05.2010) aqui também manifestava-se, não diretamente pela natureza mas pelo uso religioso da barba natural do rapaz. O apicultor jovem era de fato muçulmano praticante e não deixou isso por menos : até então quase silencioso diante da prosa infatigável de seu mestre, danou a falar !
Começou perguntando a cada um de nós se acreditávamos em Deus, continuou (sendo constantemente interrompido pela contra-argumentação atéia de seu mestre) nos explicando sua trajetória religiosa (saído de família muçulmana não praticante, aproximando-se pessoalmente de uma orientação de vida muçulmana) e declarou que, embora a palavra islã signfique a princípio submissão, sua relação à religião não é submissa. Afirmou também sua certeza de que as diversas religiões não são causa de guerras, mas são usadas como instrumento para dissimular interesses econômicos dominantes. Terminou muito « naturalmente » declarando que a guerra do Afeganistão e a de Israel/Palestina devem-se aos interesses petrolíferos dos norte-americanos e dos judeus, indicando por aí que ele possui representações sociais bem ancoradas em esquemas de classificação do outro (norte-americano/judeu) como adversário substancial. Tudo isso dito sem abandonar a defesa da tolerância inter-religiosa nem a serenidade de seu olhar e de sua voz que o tornavam agradável e pacifista. Em suma, um marselhês muçulmano a milhas de distância do tipo integrista e guerreiro de que falam os apavorados pela « ameça muçulmana » à França, embora manifestando certas representações políticas para nós potencialmente intolerantes, já que norte-americanos e judeus apareciam reduzidos a um esquema de tipificação moral negativa.
Mas ele concordava com o que seu mestre falava sobre apicultura, embora parecesse menos pessimista do que o velho sobre o futuro do ofício de ambos – que depende da sobrevivência das abelhas, evidentemente. A apicultura e sua defesa ecologista aparecia como terreno de consenso entre aquele ateu e aquele muçulmano. Eles têm o mesmo ofício e trabalham juntos, logo, trocam e/ou partilham um série de experiências, informações, conhecimentos, interesses e afetividades que os tornam semelhantes naquele terreno. Como são semelhantes enquanto cidadãos franceses e marselheses, enquanto indivíduos do sexo masculino, etc. E nessas trocas e partilhas, a apicultura é também um terreno de possível reelaboração do que os dessemelha – a relação ao religioso.
Que dupla, essa ! Decompondo-se em um ateu e um muçulmano e recompondo-se em dupla de apicultores ecologistas. Vindo nos livrar das abelhas, provocaram um baculejo em algumas de nossas representações sociais. Primeiro, mostrando que partilhamos representações que detestamos, como aquelas que orientam nossa percepção a distinguir um « francês » de um « imigrante » em duas pessoas que têm na verdade as mesmas nacionalidade e naturalidade. Segundo, nos proporcionando uma experiência para nós feliz : essa que pôs em cheque a representação potencialmente violenta, sustentada pelo atual governo francês e midiaticamente reverberada, de que um laico e um muçulmano praticante são incompatíveis. Quem dera esse cheque se transformasse em cheque-mate !
Nossa dupla das abelhas, concretamente, proporcionou-nos o que Pierre Bourdieu (1990) pretendia que fosse a função de sócio-análise da sociologia. Assim como a apicultura proporciona que eles dois baculejem reciprocamente suas respectivas representações do outro (do ateu sobre o muçulmano ; do muçulmano sobre o ateu), observando e experimentando cotidianamente elementos desse outro que a ancoragem de suas velhas representações tendem a enrijecer, a tornar estáticas. Vivam as abelhas !
Bibliografia citada
BERGER, P. / LUCKMANN, T. La construction sociale de la réalité. Paris: Masson/Armand Colin, 1996.
BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
DURKHEIM, É. De la division du travail social. Paris : PUF, 2004.
MOSCOVICI, S. Representações sociais – investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes. 2004.
8 comentários:
Tâmara,
a experiência do multiculturalismo é sempre interessante (carnaval "multicultural" do Recife não vale!) pela possibilidade de chacoalhar nossas crenças mais arraigadas, inclusive acerca de nós próprios. Mas é interessante pensar como uma mesma experiência pode ser interpretada de forma a subverter ou a reafirmar nossas representações e percepções das Lorettas da vida. Em relação a você e seu marido, treinados na imaginação sociológia, eventuais mudanças não surpreendem; mas dado que o contato entre pessoas de grupos distintos com base em uma atividade comum frequentemente reforça tais representações, o que, no contato desses dois, possibilitou a abertura para o outro?
Cynthia,
Se é verdade que eu fui treinada em imaginação sociolo'gica, ja' não se pode dizer o mesmo de meu marido, logo, minha hipo'tese sobre nossa pro'pria abertura (na verdade o reconhecimento de que partilhamos representações que detestamos)estava no terreno ideolo'gico e não no terreno cienti'fico: jogamos como meia-esquerda, ou seja, temos representações também ancoradas que nos orientam contra a percepção dicotômica "franceses"/"imigrantes". Ou seja, ja' entramos na interação em questão com representações disparatadas - caso em que, parece-me, a abertura para uma nova percepção do outro fica facilitada.
No caso dos pro'prios apicultores,talvez seja legi'timo pensar que eles não têm apenas uma atividade comum, que o pro'prio fato de estarem experimentando uma atividade comum tem rai'zes em outras afinidades simbo'licas. Por que o jovem muçulmano esta' formando-se apicultor e numa associação francamente ecologista? Por que o ex-fiscal de apicultores esta' trabalhando nessa mesma associação? No texto, eu penso ter sugerido que uma abordagem ecologista da apicultura é a base de consenso entre eles. E considerando que, apesar de toda a diversidade espaço-temporal do movimento ecologista, este tem vi'nculos histo'ricos com uma visão ideolo'gica de mundo mais ou menos de esquerda, acredito que o ateu e o muçulmano tinham mais representações em comum do que eles pensavam quando se viram pela primeira vez.
Por outro lado, eles são realmente pessoas de grupos distintos? Se a gente pensa o caso em termos de representações/experiências identita'rias, acho que não, porque nenhum dos dois reivindicou qualquer pertencimento identita'rio. O jovem parece aspirante a salafista, mas não orienta sua vida dentro de um grupo religioso delimitado - ainda não, pelo menos. A esse respeito, lembro de algo que ele fez questão de frisar: "a palavra islã quer dizer submissão, mas minha religiosidade não é submissa".
Ou seja, penso realmente que o contato desses dois não se configura como contato entre grupos distintos através de uma atividade comum, mas entre pessoas distintas inseridas num contexto histo'rico-social que os representa como membros de grupos distintos.
Relendo o que escrevi até agora, dou-me conta de que "esquerda", "ecologia", "ideologia" estão realmente aparecendo como o que possibilitou a abertura para o outro. Ja' que é assim, eu vou assumir uma hipo'tese redutiva: existe nos apicultores, assim como na fami'lia que os recebeu, um horizonte ideolo'gico humanista universalista. E isso não quer dizer necessariamente rejeição do multiculturalismo. Quem sabe queira dizer interculturalismo? Seja como for, acho difi'cil pensar em abertura para o outro na ausência de representações que supõem a possibilidade de um "no's".
Vige maria! Escrevi demais! Abraço.
INVADO O POST DE TÂMARA PARA DAR UMA NOTÍCIA GRAVE: o(a) leitor(a) só tem mais um dia para votar na sensacional enquete proposta por Cynthia. Tenho recebido diariamente umas vinte mensagens de leitores e leitoras lamentando o fato de suas religiões não lhes permitirem participar desses fóruns tão emocionantes. Se você não tem esse tipo de restrição, não perca a oportunidade. E, ah!, obrigado mamãe por ter votado em Metodologia Científica. Ou terá sido parente de Cynthia? Jonatas
Aproveito sua invasão, Jonatas, para dar uma noti'cia ainda mais grave, sobre a validação que podemos (não) esperar dessa enquete fundamental. Como sou moça religiosamente desprendida, participei entusiasmada da enquete. Tão entusiasmada que votei duas vezes - na mesma opção, que não foi metodologia cienti'fica. E até hoje não sei se meu segundo voto foi notificado ou não...Abraço
EEEEIII!!!
Não se preocupe, o seu computador só pode votar uma vez. Jonatas
Tâmara,
você tem razão: dificilmente o ponto de contato se reduz a um só. Mas é interessante pensar no que torna possível considerar essas "comunalidades" na interação com a alteridade. Caso a diferença seja considerada muito fundamental (e o seu caso sugere que não era), como fazer as pessoas adotarem aquilo que você chama de 'horizonte humanista universalista'?
Enfim, não espero uma resposta definitiva para esta questão, mas achei seu texto instigante para pensar o problema gadameriano da fusão de horizontes, que continua me perseguindo.
Fico aliviada, Cynthia, por você não querer uma resposta definitiva! Falando sério, não entendo nada da fusão de horizontes da Gadamer, mas também persigo e sou perseguida pelo mesmo problema - a partir de outras referências.
Serei aqui weberiana (para o abuso de Jonatas; perdoe-me, amigo):penso esse horizonte humanista universalista como idéia de valor.Que pode até ser traduzida em termos pragma'ticos, mas não pode ser garantida em termos de sua adoção por pessoas/grupos que representam suas diferenças como algo substancial - em sua relação com um outro. E' uma luta, e as ciências sociais são atravessadas também por ela; afinal de contas, eu mesma conheço um monte que não partilha esse horizonte. Sem falar nos que dizem partilhar mas, como eu, vêem-se aqui e acola' distinguindo franceses de imigrantes como "si de rien n'était"...E sem considerar que, quando digo "universalista", sei o quanto esse termo é suspeito - e legitimamente.
Sendo assim, fico com minha orientação de valor "Ferdinando era um touro - que gostava das flores": sem representações que supõem a possibilidade de um "no's" e, acrescento, de um "todos", zero abertura para o outro. E' por isso que, apesar de meu respeito por Laclau e companhia, termino tendo mais afinidades com "a turma do bem" do que com "os radicais-chic" Beijão.
Leer el mundo blog, bastante bueno
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