sexta-feira, 28 de maio de 2010

O ateu, o muçulmano e as abelhas : quando representações sociais ancoradas encontram uma experiência-problema



Tâmara de Oliveira

Tudo começou num final de tarde primaveril. Um enxame de abelhas tinha se instalado de uma hora para outra numa árvore do jardim. Imagem desconfortável essa, a de uma multidão agrupada, organizada e produtiva (vista ?), aparentemente disposta a fundar uma nova colônia – a rainha, suas operárias e seus machos desesperados – em propriedade humana alheia, ou seja, em nossa casa ! O que fazer ? Entre o arrepiado fascínio pela concretude daquela solidariedade mecânica em movimento e a consciência da impotência para expulsá-la dali sem mais nem menos, optamos por um sono reparador. « Amanhã a gente vê ». E vimos ! A massa holística continuava no mesmo lugar, mas alguns indivíduos já se deslocavam para experimentar o gosto das flores de nosso jardim. Será que estávamos diante de um processo histórico individualista, de passagem da solidariedade mecânica para a orgânica?


8 comentários:

Cynthia disse...

Tâmara,

a experiência do multiculturalismo é sempre interessante (carnaval "multicultural" do Recife não vale!) pela possibilidade de chacoalhar nossas crenças mais arraigadas, inclusive acerca de nós próprios. Mas é interessante pensar como uma mesma experiência pode ser interpretada de forma a subverter ou a reafirmar nossas representações e percepções das Lorettas da vida. Em relação a você e seu marido, treinados na imaginação sociológia, eventuais mudanças não surpreendem; mas dado que o contato entre pessoas de grupos distintos com base em uma atividade comum frequentemente reforça tais representações, o que, no contato desses dois, possibilitou a abertura para o outro?

Tâmara disse...

Cynthia,
Se é verdade que eu fui treinada em imaginação sociolo'gica, ja' não se pode dizer o mesmo de meu marido, logo, minha hipo'tese sobre nossa pro'pria abertura (na verdade o reconhecimento de que partilhamos representações que detestamos)estava no terreno ideolo'gico e não no terreno cienti'fico: jogamos como meia-esquerda, ou seja, temos representações também ancoradas que nos orientam contra a percepção dicotômica "franceses"/"imigrantes". Ou seja, ja' entramos na interação em questão com representações disparatadas - caso em que, parece-me, a abertura para uma nova percepção do outro fica facilitada.
No caso dos pro'prios apicultores,talvez seja legi'timo pensar que eles não têm apenas uma atividade comum, que o pro'prio fato de estarem experimentando uma atividade comum tem rai'zes em outras afinidades simbo'licas. Por que o jovem muçulmano esta' formando-se apicultor e numa associação francamente ecologista? Por que o ex-fiscal de apicultores esta' trabalhando nessa mesma associação? No texto, eu penso ter sugerido que uma abordagem ecologista da apicultura é a base de consenso entre eles. E considerando que, apesar de toda a diversidade espaço-temporal do movimento ecologista, este tem vi'nculos histo'ricos com uma visão ideolo'gica de mundo mais ou menos de esquerda, acredito que o ateu e o muçulmano tinham mais representações em comum do que eles pensavam quando se viram pela primeira vez.
Por outro lado, eles são realmente pessoas de grupos distintos? Se a gente pensa o caso em termos de representações/experiências identita'rias, acho que não, porque nenhum dos dois reivindicou qualquer pertencimento identita'rio. O jovem parece aspirante a salafista, mas não orienta sua vida dentro de um grupo religioso delimitado - ainda não, pelo menos. A esse respeito, lembro de algo que ele fez questão de frisar: "a palavra islã quer dizer submissão, mas minha religiosidade não é submissa".
Ou seja, penso realmente que o contato desses dois não se configura como contato entre grupos distintos através de uma atividade comum, mas entre pessoas distintas inseridas num contexto histo'rico-social que os representa como membros de grupos distintos.
Relendo o que escrevi até agora, dou-me conta de que "esquerda", "ecologia", "ideologia" estão realmente aparecendo como o que possibilitou a abertura para o outro. Ja' que é assim, eu vou assumir uma hipo'tese redutiva: existe nos apicultores, assim como na fami'lia que os recebeu, um horizonte ideolo'gico humanista universalista. E isso não quer dizer necessariamente rejeição do multiculturalismo. Quem sabe queira dizer interculturalismo? Seja como for, acho difi'cil pensar em abertura para o outro na ausência de representações que supõem a possibilidade de um "no's".
Vige maria! Escrevi demais! Abraço.

Le Cazzo disse...

INVADO O POST DE TÂMARA PARA DAR UMA NOTÍCIA GRAVE: o(a) leitor(a) só tem mais um dia para votar na sensacional enquete proposta por Cynthia. Tenho recebido diariamente umas vinte mensagens de leitores e leitoras lamentando o fato de suas religiões não lhes permitirem participar desses fóruns tão emocionantes. Se você não tem esse tipo de restrição, não perca a oportunidade. E, ah!, obrigado mamãe por ter votado em Metodologia Científica. Ou terá sido parente de Cynthia? Jonatas

Tâmara disse...

Aproveito sua invasão, Jonatas, para dar uma noti'cia ainda mais grave, sobre a validação que podemos (não) esperar dessa enquete fundamental. Como sou moça religiosamente desprendida, participei entusiasmada da enquete. Tão entusiasmada que votei duas vezes - na mesma opção, que não foi metodologia cienti'fica. E até hoje não sei se meu segundo voto foi notificado ou não...Abraço

Le Cazzo disse...

EEEEIII!!!

Não se preocupe, o seu computador só pode votar uma vez. Jonatas

Cynthia disse...

Tâmara,

você tem razão: dificilmente o ponto de contato se reduz a um só. Mas é interessante pensar no que torna possível considerar essas "comunalidades" na interação com a alteridade. Caso a diferença seja considerada muito fundamental (e o seu caso sugere que não era), como fazer as pessoas adotarem aquilo que você chama de 'horizonte humanista universalista'?

Enfim, não espero uma resposta definitiva para esta questão, mas achei seu texto instigante para pensar o problema gadameriano da fusão de horizontes, que continua me perseguindo.

Tâmara disse...

Fico aliviada, Cynthia, por você não querer uma resposta definitiva! Falando sério, não entendo nada da fusão de horizontes da Gadamer, mas também persigo e sou perseguida pelo mesmo problema - a partir de outras referências.
Serei aqui weberiana (para o abuso de Jonatas; perdoe-me, amigo):penso esse horizonte humanista universalista como idéia de valor.Que pode até ser traduzida em termos pragma'ticos, mas não pode ser garantida em termos de sua adoção por pessoas/grupos que representam suas diferenças como algo substancial - em sua relação com um outro. E' uma luta, e as ciências sociais são atravessadas também por ela; afinal de contas, eu mesma conheço um monte que não partilha esse horizonte. Sem falar nos que dizem partilhar mas, como eu, vêem-se aqui e acola' distinguindo franceses de imigrantes como "si de rien n'était"...E sem considerar que, quando digo "universalista", sei o quanto esse termo é suspeito - e legitimamente.
Sendo assim, fico com minha orientação de valor "Ferdinando era um touro - que gostava das flores": sem representações que supõem a possibilidade de um "no's" e, acrescento, de um "todos", zero abertura para o outro. E' por isso que, apesar de meu respeito por Laclau e companhia, termino tendo mais afinidades com "a turma do bem" do que com "os radicais-chic" Beijão.

Anônimo disse...

Leer el mundo blog, bastante bueno