Tâmara de Oliveira
Outro dia, conversando aqui com cientistas sociais sobre o ataque religioso-fundamentalista em nossa última campanha eleitoral, ataque que inevitavelmente chocara laicos tão ortodoxos como costumam ser intelectuais franceses, ouvi de um deles a apresentação de outra problemática sobre a sucessão governamental no Brasil: sua “preocupação” devido ao “acordo” do governo Lula com o Irã de Ahmadinejad e seus aiatolás. Fiquei passada. Constrangida mesmo, afinal de contas quem, vivendo na Europa, não sabe que o Irã é representado quase exclusivamente como um totalitarismo religioso fianciador do terrorismo islâmico internacional, a quem governantes democráticos não devem dizer nem bom dia ?
Mas eu tinha uma resposta na ponta da língua : acho até importante que a América Latina e outros emergentes baguncem um pouco a geo-política no oriente médio, já que Israel parece-me uma democracia que cai há um bom tempo em armadilhas do fundamentalismo religioso e, considerando os efeitos geo-políticos da aliança EUA/Israel e da culpa européia pelo nazismo, isso prejudica inclusive a sustentabilidade de Israel. Todavia, o risco de que com essa resposta eu fosse acusada imediatamente por anti-semitismo-de-esquerda, era grande demais. Preferi então temperar a goela com o vinhozinho nacional deles (a França ainda tem seus encantos) e responder constrangida que as relações Brasil/Irã não implicam em afinidades entre o governo brasileiro e o fundamentalismo islâmico e que, além disso, as prioridades brasileiras são outras. Mas fiquei com aquilo atravessado na garganta. Haja vinho francês !
Pois no dia 1° de novembro, em coluna da Folha.com sobre os resultados do segundo turno, um patrício de Lisboa chamado João Pereira Coutinho pôs a mesma espinha em minha garganta :
(…)Os 3% que desaprovam Lula, aposto, desaprovam a forma indigna como ele elegeu Ahmadinejad seu amigo; como manteve relações amistosas com Chávez; como foi displicente perante os presos políticos cubanos.
Acompanhei as eleições brasileiras. Comentei-as. Escrevi a respeito. Mas, nessa hora em que Lula sai para Dilma entrar, os meus únicos pensamentos estão com os 3% que não perderam a cabeça e mantiveram-se à tona da sanidade.
Nessa noite fria de Lisboa, um brinde a eles! (acesso : http://www.folha.uol.com.br)
No lugar dele eu não apostaria muito que esses 3% estejam muito preocupados com Ahmadinejad, Cháves e os presos políticos cubanos, mesmo concordando plenamente que foram imperdoáveis as atitudes oficiais do governo Lula para com os presos políticos cubanos. Cultivo uma certa idéia : aquela que diz que nós brasileiros, apesar da globalização e da visibilidade internacional cada vez maior de nosso país, continuamos auto-centrados, torturados entre um desejo de sermos o melhor país do mundo e um sentimento ameaçante de que somos o pior, sem muito interesse em acompanhar o que acontece pelo resto do mundo ou como nossos governos relacionam-se com ele. Ou, como disse a psicóloga Mériti de Souza (1999), capturados por um dupla e sintomática fantasia : a da democracia estrangeira e da democracia formal brasileira, idealizando-a na Europa e nos Estados Unidos ao mesmo tempo em que a desvaloriza no Brasil (devido à dissociação entre seu formalismo e a experiência social cotidiana de uma democracia profundamente desigual). De qualquer forma, o que me assustou não foi essa aposta arriscada e típica de um bom liberal europeu contemporâneo, mas sim sua argumentação sobre como um país democrático deve se relacionar com teocracias e outras ditaduras « aberrantes » :
Sou um realista. Países democráticos não lidam apenas com democracias; por vezes, nossos interesses estratégicos ou econômicos exigem que sujemos as mãos com autocracias, teocracias, ditaduras e aberrações políticas. Mas devemos fazer isso com decoro; envergonhados; como um cavalheiro que frequenta o bordel e não faz publicidade de seus atos. (acesso : http://www.folha.uol.com.br)
Francamente, isso parece-me tão monstruoso quanto certas declarações do presidente iraniano sobre Israel! Mas não deixa de ser também muito significativo do état des lieux da democracia pelo mundo.
Recentemente o Cazzo divulgou o lançamento do livro de Luciano Oliveira (2010) sobre a contribuição de Claude Lefort em torno da democracia e do totalitarismo, onde este não é entendido como oposto mas como possibilidade inscrita na própria fragilidade substancial daquela. Sabe-se que a contribuição de Lefort (1999) foi importante para que a crítica do comunismo soviético entrasse no interior mesmo do horizonte da esquerda – embora até hoje tenha gente da esquerda que não o perdoa por isso e o veja como intelectual que deu legitimidade à direita liberal. Pois eu penso (já aberta às críticas aos simplismos inevitáveis de minha condição de não-leitora de Lefort) que seu conceito de poder como lugar vazio e sua argumentação sobre a potencialidade substancial de que, numa democracia viva, forças totalitárias joguem o jogo democrático para incorporarem a política de um povo, é complementar do reconhecimento de expressões outras da fragilidade substancial da democracia na contemporaneidade. Nem só de fundamentalismos religiosos vive o fardo de nossas democracias, hélas…
Refiro-me a expressões políticas que parecem saltar do conteúdo das representações desse caro João Pereira Coutinho sobre o que é legítimo em regimes democráticos, ou seja, e de meu ponto de vista, fundamentar-se no realismo estratégico-econômico e fazer da hipocrisia o modo legítimo de funcionamento e da publicidade da esfera política. Em outros termos, falo da fragilidade da democracia diante da potência objetiva e simbólica do mercado vivido e representado sem freios nem estribeiras, impregnando o funcionamento, a estrutura e as representações dos grupos de interesse ou lobbies – que aproximam-se concretamente do que parecem-me ser representações sociais moralistas de Pereira Coutinho sobre bordéis. A subsunção de campanhas eleitorais ao marketing político e suas sondagens de opinião é uma das manifestações desses « bordéis », como assistimos tristemente entre uma candidata acuando-se e outro instrumentalizando interesses político-religiosos obscurantistas, demonstrando mais uma vez que fundamentalismos religiosos e regimes democráticos não são necessariamente antagônicos e, o que é pior, que essas forças obscurantistas também funcionam como grupos de interesse politicamente organizados.
Melhor dizendo, parece evidente que os bordéis estratégico-econômicos desse mundo globalizado são os mais poderosos nos embates democráticos contemporâneos, mesmo porque pensamos que sua lógica impregna os mais diversos grupos de atores políticos. Se é difícil dizer que o mercado pode incorporar a identidade de um povo, da instituição política de uma sociedade (talvez ele seja tão lugar vazio quanto o poder na democracia), podemos dizer facilmente que seu ethos é estruturante dos corpos e mentes dos sujeitos sociais, atravessando as fronteiras identitárias mais diversas. Pensar sob os parâmetros do mercado é mais efetivamente universalizável do que quaisquer expressões identitárias e inclusive exerce, pelo menos, um papel importante de mediação em suas (re)construções.
Costumo refletir e me angustiar bastante com um fenômeno bem contemporâneo : a de que enquanto os atores políticos das categorias sociais desmunidas tem deslocado suas reivindicações e causas para horizontes ditos « culturalistas » (embora não completamente), os das categorias abastadas costumam orientar sua ação coletiva quase exclusivamente num horizonte de classe social. Mas ambas participam do jogo democrático sob a maestria de grupos de pressão que, funcionando sob a lógica de “quem dá e pode se mostrar mais”, potencializa o fator desigualdade na dinâmica política :
Uma outra simplificação, sublinhada por Michel Offerlé (1994), consiste em construir uma dicotomia rígida entre o universo – suspeito – dos movimentos sociais e aquele – mais respeitável – dos grupos de pressão. Isso deixaria escapar os elementos de continuidade e de interpenetração entre essas duas categorias que precisam ser pensadas sob o modo de uma gradação de situações.(…)
A questão da relação à publicidade (no sentido jurídico) é provavelmente um ponto de clivagem mais decisivo. Os movimentos sociais tem necessidade de publicidade : a das mídias, da argumentação pública, do barulho também. Os grupos de pressão podem fazer um uso comparável disso tudo, como mostram as ações de comunicação das indústrias do tabaco. Mas eles funcionam em princípio sob negociação discreta, sob associação permanente e frequentemente silenciosa com os processos de decisão que lhes asseguram seu reconhecimento como interlocutores pelas autoridades politico-administrativas. Os paradoxos de tal situação no que diz respeito ao ideal democrático devem ser sublinhados(…).
(…)Sim, os movimentos sociais constituem tendencialmente uma arma de grupos que, num espaço social e num tempo dados, estão do mau lado das relações de força.(…)(Erik Neveu, 2005, pp. 18-19)
Vejamos também como uma norte-americana em ruptura com o governo de Barack Obama (cuja derrota nas recentes eleições parlamentares anuncia grandes fardos democráticos) analisa a política norte-americana atual:
Muitos apontam o dedo para Washington. E acusam nosso sistema politico de paralisia devida a uma classe política dividida entre dois campos irredutíveis, incapazes do menor consenso. Eu acredito que os dois partidos caíram exatamente do mesmo modo nas mãos dos mestres da indústria, dos bancos e dos negócios que enchem suas caixas de campanha. O princípio democrático fundador, « um homem, uma voz », foi substituído pela aritmética da política dos grupos de interesse. Os lobbies e seu dilúvio de dólares invadiram Washington. Uma verdadeira tomada de poder. E o governo fixa suas prioridades no meio desse bazar de tráfico de influência.(…). Ariana Huffington, Le Monde Magazine, n° 20456, 30 de outubro de 2010.
Não se trata aqui de justificar o regime de governo iraniano, cubano ou venezuelano. Apenas de fazer incidir o conceito de poder como lugar vazio sobre o horizonte amplo das democracias concretas : o poder que grupos de interesse exercem sobre a política, cuja dinâmica exige muito dinheiro, é um problema sério para quem pensa nas possibilidades de empoderamento (ô termo esquisito, meus deuses !) dos atores políticos que não o tem, nas redes e jogos contemporâneos das nossas democracias. O fardo é grande, não só para quem tem uma expressão identitária – uma religião, um populismo nacionalista, uma ideologia comunista – incorporando a política de uma sociedade. Ou seja, é fardo que aproxima gregos e troianos ao mesmo tempo em que separa perversamente ricos de pobres, no que diz respeito às possibilidades respectivas nas decisões do legítimo e do ilegítimo na política em sentido amplo e, na políticas públicas em sentido restrito.
Mas nosso caro e lusitano Coutinho, tão cioso de seu horror diante de sua classificação particular de aberrações políticas, todas situadas ao que às vezes ainda podemos chamar de esquerda, ou relativamente comprometidas com algum tipo de redistribuição dos bens sociais para as camadas populares, talvez não veja nenhum problema na hegemonia de grupos de interesse economicamente poderosos nos embates democráticos. Será que para ele, desde que se frequente esses bordéis sem fazer publicidade, desde que a tirania objetiva e simbólica do mercado seja praticada sob uma dissimulação cavalheiresca, inclusive negociando secretamente com as tais aberrações políticas totalitárias, a democracia estará salva ? Valei-me Eça de Queirós ! Quanto a mim, se devemos ter como ideal uma Ilustre Casa de Ramires da era globalizada, continuo preferindo que o Brasil nunca cumpra aquele ideal de se tornar um imenso Portugal. Com todo o respeito a Portugal, aos portugueses e também a João Pereira Coutinho.
BIBLIOGRAFIA
COUTINHO, João Pereira. Os heróicos 3%. In : http://www.folha.uol.com.br. Acessado em 1°.11.2010.
HUFFINGTON, Arianna. Les Etats-Unis se délabrent. In : Le Monde Magazine, n° 20456, le 30 octobre 2010
LEFORT, Claude. La complication. Retour sur le communisme. Paris : Fayad, 1999.
NEVEU, Erik. Sociologie des mouvements sociaux. Paris : La Découverte, 2005.
OLIVEIRA, Luciano. O enigma da democracia. O pensamento de Claude Lefort. Piracicaba : Jacinta Editores, 2010.
QUEIRÓS, Eça de. A Ilustre Casa de Ramires. Rio de Janeiro : Ateliê Editorial, 2000.
SOUZA, Mériti. A Experiência da Lei e a Lei da Experiência – Ensaios sobre Práticas Sociais e Subjetividade. Rio de Janeiro : Revan, 1999.
2 comentários:
Discussão difícil. Só tenho perguntas:
- como escapar do realismo político, principalmente na relação entre nações?
- a política será sempre instrumental?
- há como superar o paradigma da correlação de forças na política? Como superar Maquiavel? E José Dirceu? Hehe...
- é possível uma ética na política ou uma ética da política?
- como tornar coerente posições éticas e posições políticas -- existirá sempre um fosso entre a convicção e a responsabilidade?
- existirá sempre um fosso entre fato e valor?
Arthur,
Concordo com você, a discussão é difi'cil; e so' não tenho respostas. Kkkk.
Mas vamos matutar sobre suas perguntas barra-pesada e, quem sabe, vislumbrar uma luz no fim do tu'nel (original, né?).
Caio na tentação de lançar mão de Laclau e dizer que ( simplificando e abusando de sua argumentação): o fosso sempre existira' (convicção/responsabilidade; ética/"realismo poli'tico"; fato/valor) e se ele deixasse de existir talvez estive'ssemos apenas mergulhados numa forma de totalitarismo; mas é exatamente porque o fosso "é", que a idéia do universal nos persegue também inevitavelmente e que podemos construir conexões convicção/responsabilidade na poli'tica - embora parciais e proviso'rias.
E' nesse sentido que a posição de João Pereira Coutinho parece-me escandalosa: seu "realismo" poli'tico é adesão à poli'tica como razão instrumental-econômica, combinada à pretensão de julgar moralmente outra manifestação de "realismo" poli'tico: o dele seria legi'timo porque dissimulado; o do governo Lula seria ilegi'timo porque revelado. Ora, como Caetano, eu acho mais bonito um rei nu: ele permite que a gente veja e pense sobre suas deformações, ou seja, que aquela perseguição da idéia do universal seja acionada e perturbe nossas representações ancoradas, nossas indistinções cotidianas entre convicção e responsabilidade.
Na semana passada vi um documenta'rio bacana sobre Charles De Gaulle, onde seu populismo manipulador (o general controlava ostensivamente a televisão francesa, justificando-se porque a oposição ja' tinha a imprensa escrita) aparece conectado à sua ética da responsabilidade, ou seja, à sua posição de chefe de um regime democra'tico que deve abandonar seu posto quando sua instrumentalização dos eleitores não funciona mais e eles dizem: "basta!" Respeitando as regras do jogo, admitindo sua derrota e indo morrer velho e sozinho.
Sera' que essa conexão gaullista ética da convicção/ética da responsabilidade foi possi'vel porque a lo'gica estratégico-econômica ainda não tinha a completa hegemonia do poli'tico? Porque nem toda estratégia é econômica...E' isso que me pergunto.Mas não desespero, não. Penso que a naturalização/absolutização da ação racional-instrumental (versão homo economicus), da qual muita gente nas ciências sociais participou sobretudo a partir dos anos 1970 (penso aqui na dupla hermenêutica de que fala Giddens), sustenta um universo de representações sociais que aumenta perigosamente o fosso entre convicção e responsabilidade e o fator desigualdade na correlação de forças. Mas a idéia do universal (ela também perigosa, como não admitir), parece-me também intransponi'vel. Ou seja, as coisas podem melhorar - ou não. Abraço.
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