segunda-feira, 15 de junho de 2009

Pudor, despudor e modernidade

Abaixo, trecho de um ensaio a ser apresentado no próximo encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia.



Jonatas Ferreira e Antônio Ricardo Silva

Precisamente por ter sido compreendido como uma experiência ontológica fundamental, ou seja, uma abertura à nossa finitude como tal, o pudor é necessariamente histórico. É possível falar de uma história do pudor, ou seja, da mudança no modo como experimentamos a nossa própria nudez, portanto. E de pronto percebemos que embora remetendo a algo fundamental em nós, a percepção da própria nudez pode se manifestar de diversos modos. Poderíamos dizer que o pudor é um elemento que articula a oposição entre o que é civilizado, ou seja, próprio de seres humanos, e incivilizado, região indigna de animalização. Não é fortuito, portanto, que o que foi considerado civilizado ao longo da história moderna do ocidente tenha produzido uma educação corporal e um sentido moral que se articularam em torno da idéia de responsabilidade pessoal. E isso já nos coloca na perspectiva de uma certa ascese. Assim, será em nome do decoro e da educação que Erasmo falará em Da civilidade das crianças: “Você talvez queira oferecer a alguém de quem gosta a carne que está comendo. 'Evite isso', diz Erasmo. 'Não é decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada'” (ELIAS, 1993, vol. 1, p. 71). À mesa e fora dela, o processo civilizador no ocidente caminhará com a modernidade no sentido de um controle corporal cada vez mais individualizador, como passam a demandar códigos de etiqueta de um mundo cada vez mais racional.

"O que faltava nesse mundo courtois, ou no mínimo não havia sido desenvolvido no mesmo grau, era a parede invisível das emoções que parece hoje se erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e separando, a parede que é freqüentemente perceptível à mera aproximação de alguma coisa que esteve em contato com a boca ou as mãos de outra pessoa, e que se manifesta como embaraço à mera vista de funções corporais de outrem, e não raro à sua mera menção, ou como um sentimento de vergonha quando nossas próprias funções são expostas à vista de outros, e em absoluto apenas nessas ocasiões" (Ibid., p. 82).


A pudicícia passa paulatinamente a requerer um controle das disposições naturais dos corpos: suas secreções, hálitos, nudez, emoções e tudo que se possa associar diretamente à existência de um tal 'corpo animal', incivilizado. A partir do século XVII, por exemplo, esse controle começa a impor como despudorado o hábito parisiense de tomar banhos nus no rio Sena. Isso não impede, ainda no século XVIII, Mme de Châtelet de banhar-se diante de seu criado ou que Luís XIV se sentisse absolutamente confortável em receber seus convidados enquanto defecava. No primeiro caso, a diferença social entre ela e o seu lacaio torna esse último invisível, objeto impossível de constrangimento precisamente por não ser considerado exatamente humano, mas algo como um autômato (BOLOGNE, 1986, p. 44 e 45). Mme de Châtelet despe-se, assim, diante de alguém menos visível que o bichano de Derrida. E isso faz diferença, pois a nudez depende precisamente da reflectividade que o outro proporciona. No século XIX, por exemplo, ficar despida diante de um médico era uma experiência de nudez bem mais intensa que ficar nua diante de um pintor (Ibid., p. 111).

Se a sociedade burguesa caminha de um modo geral em direção à pudicícia, posto que se torna mais individualizadora, racional, disciplinar, parece estranho que em nome desses valores o Antigo Regime pudesse ter lançado um profundo grito de despudor. Esse brado é a obra de Sade, do “sargento do sexo”, como se não nos falha a memória dizia Blanchot; deste acerca de quem teria dito Rousseau: a jovem que ler uma só página de seus livros estará perdida para sempre (BLANCHOT, 1990, p. 17). Como é sobejamente comentado, a literatura do marquês de Sade se estrutura sobre a solidão absoluta da lei do prazer (Ibid., 19). E, assim, o moto perpétuo sadeano seria:

“a natureza nos faz nascer sós, não existe nenhuma espécie de relação entre um homem e outro. A única regra de conduta é, pois, que eu prefira tudo o que me afete de modo feliz, sem ter em conta as conseqüências que esta decisão pode acarretar no próximo” (Ibid., p. 19).


O universo sadeano pode nos dar a impressão de algo desordenado, caótico. Não é obviamente o que Sade tem em mente. Se ele investe contra o interdito, ele o faz com regras de um rigor extremo; suas orgias são administradas com precisão, com regras intransponíveis, hierarquias estritas, sucessões de prazer que devem ser obedecidas, por uma apuro na busca de uma ordem de prazeres que sempre está a serviço da intensificação do gozo, mas que não é menos burocrática por isso. Essa racionalização do gozo, o poder de sua lógica, é condição para que Sade possa investir contra toda forma de interdição, e portanto contra toda forma de pudor: o divino, os laços sanguíneos, a vida do outro, o sofrimento do outro, a própria morte. Protegido no rigor de sua lógica iconoclasta, nada envergonha Sade. “Oh, Juliette, diz a Borghese, eu quisera que os meus extravios pudessem me levar como a última das criaturas à sorte para a qual nos conduz o abandono. O patíbulo mesmo será para mim o trono das voluptuosidades, ali desafiarei a morte, gozando de prazer de espirar vítima de minhas maldades” (SADE apud BLANCHOT, 1990, p. 33 e 34).
Em Sade, o homem e o animal estão submetidos a um só princípio natural: a busca egoísta pelo prazer. Tudo se move na natureza em torno desse princípio que, seguido, diluiria as fronteiras da interdição e do pudor. É isso que concluiríamos se, como Eugênia, escutássemos a voz de Dalmâncio, seu preceptor.

“Foram os primeiros cristãos, diariamente perseguidos por seu sistema imbecil, que gritaram a quem queria ouvi-los: 'Não nos queimem, não nos esfolem. A natureza diz que não se deve fazer aos outros o que não queremos que nos seja feito'. Imbecis! Como ela, aconselhando-nos sempre ao deleite, e jamais imprimindo em nós outras inspirações, poderia, em seguida, numa inconseqüência sem limites, assegurar-nos de que não devemos nos deleitar se isso pode causar pena nos outros? Ah! Crede, Eugênia, crede, a natureza, mãe de todos, só nos fala de nós mesmos; nada é tão egoísta quanto sua voz” (SADE, 1988, p. 45).


Como a ciência moderna, Sade busca um princípio, uma mathesis universalis, a partir do qual todos os viventes seriam compreensíveis; e se como a ciência o domínio de tudo é também uma motivação, o fim último de todo esforço intelectual ou físico é um só: desprender tudo no gozo, no prazer. No primeiro sentido, Sade é a consumação metafísica do humanismo naquilo que ele tem de impensado, ou seja, em sua redução do humano ao animalitas. “O ponto de partida do ateísmo de Sade é o desamparo humano. Ninguém nasce livre, lançado no mundo como qualquer outro animal, está 'acorrentado à natureza', sujeitando-se como um 'escravo' às suas leis”, diz Robert de Moraes (2006, p. 30). O libertino apenas está em condições de projetar no outro, em seu corpo, o poder inapelável dessa natureza. Diferentemente dessa consumação da racionalidade, ou do logos ocidental, entretanto, todo esse esforço visa apenas ao excesso, ao gozo, ao noturno, ao ato absoluto de dispêndio, como diria Bataille. A radicalidade do seu gesto confinou sua literatura durante décadas até que os surrealistas se interessassem pelo sentido despudorado, excessivo dessa violência literária1.

"Na base da admiração dos surrealistas por Sade está uma espécie de materialismo cósmico, que põe em xeque o primado do homem no universo, operando um deslocamento radical dos valores humanistas que sustentam, no Ocidente, vários séculos de cultura. Se é desse materialismo que nasce a erótica sádica do marquês, é também dele que partem os signatários do Manifesto na tentativa de reinventar o mundo sob o princípio fundante do desejo" (ROBERT DE MORAES, 2006, p. 116)


Se o surrealismo de Breton, Leiris namorou com o anti-humanismo sadeano, com a violência, a exceção, com uma região da experiência humana colocada para além do interdito, do pudor, é a obra de Bataille que levará as conclusões literárias e filosóficas do marquês mais longe. A literatura batailleana investe claramente no excessivo, como poderemos perceber em obras como O azul do céu, ou História do olho. Sua contribuição filosófica, como pode ser constatado em O erotismo, é uma elaboração teórica da relação entre erotismo e violência, Eros e Thanatos, que já se apresenta na obra de Sade. A apropriação dionisíaca do erotismo em Bataille também é algo que salta aos olhos, como na frase que abre O erotismo: “Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”. E o elemento fundamental da experiência do erotismo é precisamente o desnudamento.

"A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto é, ao estado de existência contínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade através desses canais secretos que nos dão acesso ao sentimento da obscenidade. A obscenidade significa a desordem que perturba um estado dos corpos que estão conforme à posse de si, à posse da individualidade durável e afirmada. [...] O desnudar-se, visto nas civilizações onde isso tem um sentido pleno, é, quando não um simulacro, pelo menos uma equivalência sem gravidade da imolação" (BATAILLE, 1987, p. 17)


O erotismo seria um ato despudorado por princípio. A nudez que ele proporciona pressupõe a transgressão das fronteiras do interdito e, assim, a experiência “dionisíaca”, de afirmar vida e morte como partes de um todo, a perturbação da descontinuidade dos corpos e sua afirmação a um só tempo, a perda de si e da individualidade como condição da afirmação da vida como um princípio maior. Impossível, de fato, não escutar a voz do velho e libertino marquês aqui. Do mesmo modo, é preciso afirmar o sentido cultural desse investimento na região de limite onde pudor e despudor, nudez e desnudamento se articulam: a experiência do excesso, sua reincorporação nas práticas da cultura ocidental, seria um antídoto contra a razão individualizadora, disciplinadora que submete tudo à lógica do trabalho e da produtividade. De um modo amplo, esse é um grito surrealista ao qual a cultura ocidental – suas contra-culturas – abriu bem os ouvidos. É a desestabilização dos lugares de segurança do sujeito, do humano, do logos, que constituem o foco desse investimento na fronteira entre o pudor e o despudor. O discurso de liberação pela sexualidade ecoa aquele brado de modo muitas vezes impensado.


Referências

AGAMBEN, Giorgio. 2004. The Open. Man and Animal. California, Stanford University Press.
BATAILLE, Georges. 1987. O erotismo. São Paulo, L&PM.
BLANCHOT, Maurice. 1990. Lautréamont e Sade. México, Fondo de Cultura Económica.
BOLOGNE, Jean-Claude. 1986. História do Pudor. Rio de Janeiro, Elfos Editora.
DERRIDA, Jacques. 2002. O Animal que logo sou. São Paulo, Editora da UNESP.
-----------. S/d. “Os Fins do Homem”. In Margens da Filosofia. Porto, Rés-Editora.
ELIAS, Nobert. 1993. O Processo Civilizador, vols. 1 e 2. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
FREUD, Sigmund. 1976. “O 'estranho'”. In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago.
GLENDINNING, Simon. 1998. On Being with the Others. New York, Routledge.
HEIDEGGER, Martin. 1987. Carta sobre o Humanismo. Lisboa, Guimarães Editores.
MORAES, Eliane R. 1994. Sade: A felicidade Libertina. Rio de Janeiro, Imago.
---------. 2006. Lições de Sade. Lições sobre a imaginação libertina. São Paulo, Iluminuras.
SADE. 1998. Ciranda dos Libertinos. (coletânea organizada por L.A. Contador-Borges). São Paulo, Max Limonad.
--------. 2006. Os 120 dias de Sodoma. A escola da libertinagem. São Paulo, Iluminuras.

Um comentário:

Le Cazzo disse...

Esse post apresentava um problema grave: ao transportar parte do texto de um arquivo produzido no formato doc, algumas formatações se perderam, como, por exemplo, avanços de parágrafos nos casos em que temos citações longas. Essas citações em geral não são aspeadas pelo fato de se encontrarem destacadas e com crédito de autoria. Como esse destaque se perde, no entanto, temos que refazê-lo no editor de textos do blogspot. Esqueci de fazer isso inicialmente e disso resultou que três citações não estavam corretamente creditadas. Corrigi o erro, mas é possível que alguns leitores tenham lido o texto ainda com o equívoco. A esses todos, minhas desculpas. Jonatas