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quarta-feira, 6 de maio de 2009
OUTROSSIM É A PUTA QUE O PARIU! O humor no mau humor de Graciliano Ramos (II)
Dois problemas, entre outros, afetam a teoria durkheimiana ─ e, conseqüentemente, aquelas outras que nela se inspiram: em primeiro lugar, nos vemos diante de uma verdadeira hipóstase da sociedade, que passa a ser vista como um ente dotado de uma “intenção” ─ que, evidentemente, ninguém sabe qual é; em segundo lugar, tudo no mundo, desde que exista e persista, cumpre uma função para a manutenção da mesma sociedade ─ o que, sem dúvida, leva a um círculo vicioso de tipo hegeliano: o real é racional porque... é real! Independentemente do seu aspecto explicativo-funcionalista, porém, a teoria bergsoniana sobre o riso é fértil ao descrever como funcionam os mecanismos sociais que levam a esse fenômeno tão intrigante. Nesse caso, o rabugento, o enfezado, o sujeito de pavio curto, por sua rigidez, cairiam sob o cutelo do filósofo francês. Acho que é o caso de Graciliano Ramos ─ tanto a pessoa de carne e osso (muito osso, aliás), quanto o autor de livros escritos na primeira pessoa, notadamente São Bernardo e Angústia, cujos “narradores”, Paulo Honório e Luís da Silva, são o que se chama de sujeitos de “maus bofes”.
Vai aqui uma confissão. A idéia mais remota deste artigo, na verdade, surgiu quando peguei-me certa vez, ao ler Angústia, rindo com uma passagem em que Luís da Silva descreve o odioso Julião Tavares escanchado na poltrona de uma vizinhança humilde, num desses serões familiares que já não existem:
“O que não achava certo era ouvir Julião Tavares todos os dias afirmar, em linguagem pulha, que o Brasil é um mundo, os poetas alagoanos uns poetas enormes e Tavares pai, chefe da firma Tavares & Cia., um talento notável, porque juntou dinheiro. Essas coisas a gente diz no jornal, e nenhuma pessoa medianamente sensata liga importância a elas. Mas na sala de jantar, fumando, de perna trançada, é falta de vergonha. Francamente, é falta de vergonha.”
Julião é um dos personagem mais sensacionais saídos da pena do Velho Graça. Gordo, vermelho, rico e sedutor de moças sonhadoras da periferia pobre de Maceió, representa bem o famoso “ódio ao burguês” que o Graciliano comunista não perdia a ocasião de destilar. Um foco especial desse ódio é justamente a manipulação da linguagem para fins de empulhação, que tanto pode se dar pelo uso de termos “difíceis” para impressionar, quanto pelo apelo ideológico a lugares comuns patrióticos que escamoteiam a dominação. Bem ilustrativo desse duplo uso e do ódio correspondente de Luís da Silva é uma seqüência em que o narrador, voltando para casa, surpreende Julião Tavares na sua própria janela, flertando com Marina, sua vizinha e noiva. Eis a reação que o ressentido Luís da Silva partilha com o leitor:
“Canalha. Meses atrás se entalara num processo de defloramento, de que se tinha livrado graças ao dinheiro do pai. Com o olho guloso em cima das mulheres bonitas, estava mesmo precisando uma surra. E um cachorro daquele fazia versos, era poeta.”
Luís interpela Julião: “Tem negócio comigo? [...] Nunca estou em casa a esta hora. Estou no serviço, percebe? Sou um homem ocupado.” O sedutor de mocinhas, cheio de dedos, refugia-se num inacreditável lero-lero edificante: “Perfeitamente, respondeu Julião Tavares. Uma vida cheia, uma vida nobre, dedicada ao trabalho.” E o narrador, voltando à confidência com o leitor, partilha com ele o seguinte comentário: “Só a pontapés.”
Nesse caso ─ e os livros de Graciliano estão repletos de outros ─, a grosseria do narrador é animada pela intenção de desmistificar. Não se trata de uma raiva às cegas, mas de uma ira política no sentido mais abrangente da expressão. O que esse escritor singular quer é devolver à linguagem sua vocação de autenticidade, seu potencial, por assim dizer, libertador. No antológico capítulo inicial de São Bernardo há um bom exemplo disso, quando Paulo Honório dispensa a trupe de literatos de província, pomposos e ocos, que tinha convocado para ajudá-lo na empreitada de escrever um livro. Ao ler dois capítulos datilografados por Gondim ─ encarregado da “composição literária” do livro ─, Paulo Honório explode com sua habitual rudeza: “Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá alguém que fale dessa forma!” Eis aí o xis da questão: Gondim acha justamente que “um artista não pode escrever como fala”, ao que Paulo Honório replica: “Não pode? E por quê?”
Num nível evidentemente metalingüístico, Graciliano está investindo contra a literatura de “belos efeitos” e tomando o partido da obra literária como desmistificadora da “linguagem estereotipada” [20] que manipula os homens. Em 1948, numa entrevista, ele comparou o trabalho do escritor ao das lavadeiras “lá de Alagoas” que batem na pedra a roupa suja muitas e repetidas vezes, até que a limpeza refulja, concluindo com uma frase de sabor todo seu, mas que tem também algo da secura objetiva de um João Cabral de Melo Neto: “A palavra não foi feita para enfeitar [...] a palavra foi feita para dizer.” Essa profissão de fé do escritor Graciliano era posta em prática no seu contínuo trabalho de reescritura e enxugamento do texto, até que ele chegasse à mais rigorosa exatidão. Por isso a sua explosão contra Gondim. Explosão que, noutros momentos, ele contém e apenas o leitor dela toma conhecimento. Esse impropério retido apresenta efeitos igualmente cômicos. Um desses momentos figura nesse primeiro capítulo, quando Paulo Honório começa a desconfiar que a empreitada coletiva não vai dar certo, pois o encarregado da pontuação, ortografia e sintaxe, João Nogueira, “queria o romance em língua de Camões, com períodos formados de trás para diante.” Piscadela de Paulo Honório para o leitor: “Calculem.”
Em Angústia, num diálogo tenso entre o narrador Luís da Silva e o odioso mas impagável Julião Tavares, o primeiro apresenta o segundo ao leitor em termos que já são em si cômicos: “Conheci esse monstro numa festa de arte no Instituto Histórico.” O epíteto arma o leitor contra a criatura e, pela brutalidade do termo, já o põe de sobreaviso, antecipando uma explosão. A espera é capaz de induzir uma hilaridade presa. Julião pega Luís da Silva pelo braço, arrastando-o para uma conversa sobre as belezas dos coqueiros, das praias, do céu azul de Maceió. O leitor quase sente a pressão arterial do narrador subindo. Quando o “monstro” diz que “adorava o Brasil”, o narrador parece chegar ao limite. Mas não explode. Nova investida de Julião: “Eu vi perfeitamente que o senhor é patriota.” O narrador solta para o leitor: “Foi a conta.” Mas a explosão, ainda uma vez, não vem. Julião continua seu discurso patrioteiro: “Quem o não é, meu amigo? Nesta hora trágica em que a sorte da nacionalidade está em jogo...” Fervendo por dentro, Luís da Silva “decepciona” o leitor ao concordar com o sedutor de menores: “Efetivamente, murmurei, as coisas andam pretas.” E só!
No caso, é a ausência mesma de um pontapé que se torna cômica. Nas Memórias do Cárcere, onde Graciliano já não está escondido atrás de um personagem e fala por si mesmo, há uma outra situação em tudo semelhante a essas ─ o que mostra como a relação entre o escritor perfeccionista e o indignado cidadão era uma via de mão dupla freqüentemente percorrida num e noutro sentido. “Uma noite de calor, suando no colchão duro, chateava-me a folhear um romance idiota” ─ escreve Graciliano. Um colega de cela, aparentemente um chato, perturba a leitura fazendo comentários elogiosos ao livro, indicando “passagens onde se arrumavam belezas imperceptíveis. Aborrecia-me”. Mais uma vez, o efeito cômico é produzido pela espera de uma explosão que termina não ocorrendo, com um irritado Graciliano fazendo esforços de contemporização:
─ Está bem. Isso mesmo.
O sujeito continua atrapalhando a leitura e irritando o Velho Graça, mas este persiste na sua resistência, de modo a poder continuar em paz a leitura chinfrim:
─ Isso mesmo. Sem dúvida.
Lêdo Ivo, no depoimento já mencionado, descreve Graciliano como uma “personalidade carcerária por excelência”, um sujeito que “viveu escravizado às mais irracionais ou insípidas regras de gramática”. Um revisor de textos que de vez em quando,
“diante de um pronome deslocado ou de um anacoluto (figura de gramática a que devotava um ódio particular, comparável ao que dedicava aos nazistas) não se continha. Mas não ofendia o autor ignorante ou desleixado. Preferia referir-se à senhora mãe dele.” [21]
O mesmo Lêdo lembra ainda uma incrível reprovação que ele fazia a seu amigo José Lins do Rego: não ter corrigido, na reedição de Moleque Ricardo, a frase em que chamava urubu de pássaro, “quando até as crianças das escolas sabiam tratar-se de uma ave”... [22]
A referência anedótica ao anacoluto como inimigo mortal não deve minimizar o significado mais profundo do que é, sem dúvida, uma rigidez cômica, mas cujo sentido verdadeiro não é meramente anedótico, significando, a meu ver, um exemplo a mais de uma postura de nenhuma condescendência com tudo que seja leniência e falta de seriedade. A intolerância que Graciliano ostentava em relação aos que se punham a escrever sem conhecer as regras do ofício significa bem mais do que uma submissão estúpida a uma insípida regra de gramática, e ela transita com a mesma firmeza do memorialista para o romancista. Nas Memórias do Cárcere, Graciliano tem uma atitude de sarcasmo frente a um hino anti-fascista cantado por um comunista companheiro de desdita:
“Abaixo o integralismo,
O vômito do fascismo...”
Comentário cortante do Velho Graça: “Vômito do fascismo – ótimo. Ruim era o homem dizer intregalismo”. Em Angústia, é a vez de um irritado Luís da Silva indignar-se frente a um “Proletários, uni-vos” que lê num muro de Maceió. Informação do narrador: “Isto era escrito sem vírgula e sem traço, a piche.” E o seu comentário irado em seguida:
“Aquela maneira de escrever comendo os sinais indignou-me. Não dispenso as vírgulas e os traços. Queriam fazer uma revolução sem vírgulas e sem traços? Numa revolução de tal ordem não haveria lugar para mim. [...] Um homem sapeca as pestanas, conhece literatura, colabora nos jornais e isso não vale nada? Pois sim. É só pegar um carvão, sujar a parede. Pois sim.”
Os dois exemplos são muito interessantes porque mostram um Graciliano – mesmo que, no segundo caso, sob a roupagem de Luís da Silva – destilando a habitual causticidade contra militantes da causa comunista, doutrina à qual terminará por aderir, simplesmente por mal uso do vernáculo! Nas Memórias do Cárcere, há um outro episódio do mesmo jaez: ao ouvir um militante preso oriundo do Paraná, carregado de sotaque alemão, dizer “nós disseram” em vez de “nos disseram”, “nós fizeram” em vez de “nos fizeram” ─ e assim por diante, não se conforma. Pensa naquilo insistentemente e chega à confissão, quase inacreditável, de que “a confusão pronominal me abalava.”
* * *
Voltemos, para concluir, à hipótese do riso provocado pela rigidez de comportamento ─ de que o abalo provocado em Graciliano pelo sotaque alemão do preso é mais um exemplo. Ariano Suassuna, filiando-se à teoria bergsoniana, observa que “o que torna cômico um caráter é aquela espécie de endurecimento que, instalando-se no espírito de uma pessoa, impede que ela se adapte flexivelmente à vida social em comum.” [23] E dá como exemplo o riso provocado pela rabugice de Alceste, o célebre personagem d´O Misantropo de Molière. Ao reivindicar um ideal de honestidade na vida e transparência nas relações entre as pessoas, Alceste se choca com a hipocrisia e a frivolidade típicas da sociedade cortesã do século XVII francês. Mas o argumento poderia também aplicar-se ao Velho Graça e seus conhecidos impropérios. Até aí, acompanho esses autores.
O que não me parece satisfatória é a sua filiação à sociologia durkheimiana e a analogia que ela implica entre a sanção penal e o riso ─ aquela punindo comportamentos delituosos, este punindo comportamentos rígidos. Ocorre que, nesse caso, como no caso da pena para o crime, a sociedade teria razão... Nesse caso, ao rirmos diante da indignação de Vitorino Papa-Rabo, de uma frase demolidora de Mencken ou de um impropério de Graciliano Ramos ─ ele mesmo ou um de seus alteregos ─, estaríamos sancionando Vitorino, Mencken e Graciliano, quando, na maioria das vezes, o que estamos de fato fazendo é empatizando com eles! O riso, no caso, seria uma expressão de simpatia com o rígido, e se alguma sanção há, o seu objeto seriam aqueles contra quem a rigidez se dirige: a molecada desrespeitosa do Pilar, o wasp reacionário americano, o sórdido Julião Tavares e assim por diante. Bem sei que essa objeção também parece não se aplicar a todos os casos. No episódio da implicância de Graciliano com o sotaque do prisioneiro, a nossa simpatia iria para o “alemão”, e um eventual riso, nesse caso, seria para sancionar a intolerância do Velho Graça. Numa palavra, aqui como alhures, nenhuma teoria adequa-se satisfatoriamente à totalidade dos eventos que supostamente recobre. Mas isso já é outra história.
Notas
[1] Dênis de Moraes, O Velho Graça, Rio de Janeiro, José Olympio, 1996, p. 243.
[2] Idem, pp. 188-189.
[3] Lêdo Ivo, “Angústia, de Graciliano Ramos”, in Heloisa Seixas (org.), Obras-Primas que poucos leram (vol. I), Rio de Janeiro, Editora Record, pp. 155-156.
[4] Dênis de Moraes, op. cit., p. 173.
[5] Otto Maria Carpeaux, “Amigo Graciliano”, in Teresa ─ Revista de literatura brasileira, São Paulo, USP / Editora 34, nº 2, 2001, p. 146.
[6] Graciliano Ramos, Viventes das Alagoas, Editora Record, p. 153.
[7] Dênis de Moraes, op. cit., p. xviii.
[8] A frase demolidora está num artigo de Oswald a propósito de duas obras de Mário de Andrade, Primeiro andar, livro de contos, e Amar, verbo intransitivo, romance. Compreensivelmente, os dois grande nomes da Semana de 22 terminaram seus dias sem se falar. O registro da autoria está no livro Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Moraes, neto (1924-1936), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, p. 223. Devo a precisão da informação à sempre preciosa garimpagem do professor Fernando da Mota Lima.
[9] Citado por Homero Senna, República das Letras, Rio de Janeiro, Gráfica Olímpica Editora, 1968, p.192.
[10]“Bebo para tornar as outras pessoas interessantes.”
[11] “Um homem que detesta crianças e cachorros não pode ser mau de todo.”
[12]“A única contribuição do protestantismo ao pensamento humano foi provar, de forma irrefutável, que Deus é um chato.”
[13] As frases citadas foram extraídas de Ruy Castro (editor), Mau Humor ─ uma antologia definitiva de frases venenosas, São Paulo, Companhia das Letras, 2007.
[14] Graciliano Ramos, “Relatório ao Governador do Estado de Alagoas”, in Viventes das Alagoas, p. 170.
[15] Agripino Grieco, “Graciliano Ramos – ‘Caetés’”, in Sônia Brayner (org.), Graciliano Ramos – Seleção de Textos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira (Coleção Fortuna Crítica), 1978, p. 148.
[16]Virgínius da Gama e Melo, “O Humanismo Incidente de Graciliano Ramos”, in Sônia Brayner, op. cit., p. 236.
[17] Álvaro Lins, “Valores e Misérias das Vidas Secas”, in Graciliano Ramos, Vidas Secas, São Paulo, Editora Martins, 1974, p. 13.
[18] Henri Bergson, O Riso – Ensaio sobre a significação do cômico, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980. A utilização de sua teoria no contexto do riso provocado pelo mau humor foi-me sugerido pela professora e colega Cynthia Hamlin, da UFPE, a quem agradeço a “dica”.
[19] Idem, pp. 18 e 19
[20] Marcelo Magalhães Bulhões, Literatura em campo minado, São Paulo, FAPESP / Editora Annablume, 1999, p. 165.
[21] Lêdo Ivo, op. cit., pp. 154 e 156.
[22] Idem, p. 162.
[23] Ariano Suassuna, Iniciação à Estética, Rio de Janeiro, José Olympio, 7ª edição, 2005, p. 161.
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Um comentário:
O anacoluto, claro!
Eu sempre soube disso.
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