segunda-feira, 15 de março de 2010

O romantismo e as ciências sociais 1


Théodore Géricault: Le radeau de la Meduse (1819)

Jonatas Ferreira

Para possível desespero de Cynthia, estou novamente às voltas com a questão da importância do Romantismo nas ciências sociais. Mais uma vez estou trabalhando nisso que entendo como primeira expressão de uma crítica à sociedade industrial que, entre os séculos XVIII e XIX, se formava na Europa a partir de ritmos bem variados. Sem o Romantismo fica complicado entender a emergência de uma sociologia não positivista no velho mundo, ou seja, fica difícil entender em que tradição se inscreveria a hermenêutica de Schleiermacher e Dilthey, o impressionismo que marca a obra de Simmel, o azedume de Weber em ensaios como Ciência como Vocação ou Política como Vocação. As referências, as pistas estão ali, aguardando um trabalho de investigação que, de algum modo, estou me propondo a fazer já faz algum tempo.

Falemos de alguns rastros que nos indicam estarmos no bom caminho. Weber cita explicitamente Tolstoi e Nietzsche naqueles dois escritos, como haveremos de lembrar. Diz-nos que a modernidade necessita abrir espaço para forças irracionais, carismáticas, que a retirem da ossificação que o industrialismo e a burocracia moderna implicam. Diz-nos que a racionalização da vida a que assiste a cultura ocidental não pode conferir sentido a nossa existência etc. etc. Fala-nos ali de temas caros à sensibilidade romântica, tais como a morte, o empobrecimento da vida nos processos de civilização etc.

De que modo entender o vitalismo simmeliano, sem aceitar a enorme contribuição que o movimento romântico confere à cultura modernista como um todo e ao vitalismo, em particular? E como falar em vitalismo sem mencionar Nietzsche; ou Nietzsche sem citar Wagner e Schopenhauer? Como discorrer acerca de temas como "interpretação endopática", entender exegese como diálogo, ou seja, como falar em Dilthey e Schleiermacher, sem passar pela contribuição fundamental dos irmãos Schlegel e de Novalis?

E, no entanto, o que é mesmo Romantismo?

A resposta a essa questão nos coloca diante de uma diversidade de contribuições considerável. O que as torna romântica? O que torna Lord Byron, Rousseau, Hamann, Herder, Novalis, Nietzsche, Tolstoi, Pushkin, Wagner, Brahms, Beethoven, Caspar David Friedrich, Stendhal, Burke, Goethe românticos? A literatura que trata do assunto parece unânime em reconhecer essa dificuldade e propor algumas soluções. A primeira delas, seria aceitar um corte cronológico, que iria das duas ou três últimas décadas do século XVIII à segunda metade do século XIX - o que coloca novas dificuldades. Não lembro ao certo se foi Novalis ou August Schlegel a afirmar que considerava o Dom Quixote, ou seja, uma obra do século XVI, o exemplo mais acabado de arte romântica. Os dois, em todo caso, acreditariam encontrar no trabalho de Cervantes uma forma perfeita daquela postura que eles afirmavam ser a essência da nova arte: reflexividade. A arte deve não apenas ser uma produção que visa ao prazer, à ilustração, ao aperfeiçoamento etc., mas realiza-se enquanto tal apenas quando for também capaz de pensar o próprio ato de produzir. O que seria da ideia modernista da vanguarda artística sem essa pressuposto fundamental: a arte tem de ser ao mesmo tempo artística e meta-artística, ou seja, deve ser reflexiva.

Jacques Barzun também acredita que Pascal, por seu turno, que sua insistência no caráter ambíguo da condição humana - fadada à miséria e à grandeza, à queda e ao mesmo tempo a ser o ponto mais alto da criação - o tornariam um romântico avant la lettre (perdoe-me, leitor(a), o hábito provinciano de usar expressões francesas, inglesas, alemãs em texto tupiniquim. Prometo tomar jeito e jamais voltar a repetir a graça). Pois, então, o gajo era romântico temporão.

Esse caminho esclarece, portanto, bem pouco e geralmente resulta em conclusões do tipo: romantismo é irracionalismo; romantismo é anti-industrialista; romantismo é buscar sempre o sentimento em lugar da razão; romantismo é fuga do real. Para todo romântico que se possa encontrar com uma ou outra ou todas essas características, ainda um segundo, terceiro, quarto e quinto será recordado que fugiriam aos chavões. Barzun acredita que uma melhor alternativa seria, então, falar em problemas típicos da cultura romântica, cujas soluções poderiam ser múltiplas. Assim, seriam questões gerais sobre as quais os mais diversos românticos se debruçaram: uma oposição a formas estéticas caducas, que perderam a vitalidade diante de situações históricas particulares, isto é, com a ascensão da burguesia ao poder, a percepção da necessidade de ir além das tarefas negativas do Esclarecimento, a percepção de um novo lugar do artista e do intelectual nessa nova sociedade.

Em todo caso, não evitaremos necessariamente uma abordagem esquemática a esse tema através do caminho proposto por Barzun. Procurando também questões centrais da cultura romântica, Ernst Fischer (183, p. 63) afirma: "O romantismo foi um movimento de protesto, de protesto apaixonado e contraditório contra o mundo burguês capitalista, contra o mundo das "ilusões perdidas", contra a prosa dos negócios e dos lucros".

O que se perde aqui, de partida, é a possibilidade de perceber que o Romantismo possa ter significado coisas relativamente distintas em realidades sociais por vezes bastante dessemelhantes. Até porque o capitalismo não avançou do mesmo modo na França, Inglaterra e Alemanha e um eventual protesto à emergência e consolidação da burguesia nesses contextos certamente significaria coisas distintas, mesmo da perspectiva marxista que orienta Fischer. Se falarmos especificamente da caducidade de certas formas estéticas que o movimento romântico tem em mira, ou seja, se falarmos de uma oposição à arte cortesã, ao classicismo, também aqui teremos casos bastante específicos. O pensamento clássico, seu formalismo, seu humanismo de inspiração greco-latina, penetrou bem mais na França, por exemplo, do que na Alemanha. Esta última muito mais marcada pela Reforma protestante que pela Renascença, segundo afirma Gerd Bornheim (1978).

Assim, embora nos próximos posts venha a falar do Romantismo francês, e especialmente na influência de Rousseau, como Bornheim, dedicarei especial atenção ao caso alemão, dada a sua inquestionável importância para o surgimento de uma tradição crítica nas ciências sociais.


Isso, porém, farei amanhã. Agora, vou ver se encontro algo bem romântico para ilustrar e fazer fundo musical a esse post.

(Por revisar)

11 comentários:

Cynthia disse...

Não tenho nada contra as forças irracionais, o anti-industrialismo, a fuga da realidade e outros chavões românticos, professor. Na música, então, acho os românticos praticamente imbatíveis (à exceção de Wagner, que pode ser meio xaroposo). Vou gostar muito de ler o que você tem a dizer sobre o assunto. Aproveito para lançar uma perguntinha: existe uma ética propriamente romântica que deriva (ou que tem relações de proximidade) com a estética?

Menino, onde diabos vc desencavou essa foto do Rei Roberto??? Ganhou longe dos quadros do Caspar David Friedrich!!!

Cynthia disse...

Você não adora o google? Acabo de encontrar o poema de Wordsworth que, supostamente, inaugura o romantismo inglês. Fazia tempo que tentava lembrar de quem era e qual seu título, mas não conseguia. Só sabia que era sobre os daffodils, aquelas florezinhas amarelas com cara de gato que surgem na primavera na Inglaterra. Seu texto agiu como uma madeleine proustiana e me fez lembrar da expressão "inner eye". Talvez porque esteja preocupada com reflexividade e subjetividade - aquelas coisas que você odeia. Dei um google em "romantic poetry daffodil inner eye". E eis que ei-la!

Daffodils
by: William Wordsworth

I wandered lonely as a cloud
That floats on high o'er vales and hills,
When all at once I saw a crowd,
A host, of golden daffodils;
Beside the lake, beneath the trees,
Fluttering and dancing in the breeze.

Continuous as the stars that shine
And twinkle on the milky way,
They stretched in never-ending line
Along the margin of a bay:
Ten thousand saw I at a glance,
Tossing their heads in sprightly dance.

The waves beside them danced; but they
Out-did the sparkling waves in glee:
A poet could not but be gay,
In such a jocund company:
I gazed -- and gazed -- but little thought
What wealth the show to me had brought:

For oft, when on my couch I lie
In vacant or in pensive mood,
They flash upon that inward eye
Which is the bliss of solitude;
And then my heart with pleasure fills,
And dances with the daffodils.

(Putz! O nome da danada era Daffodils e fazia anos que eu procurava!)

Le Cazzo disse...

Obrigado pelo poema de Wordsworth sobre o Narciso - procurei a tradução. E sobre o Rei, selecionei quase ao acaso está foto na coleção de fotografias brasas que eu tenho. Abraço. JF.

Cynthia disse...

Morria e não sabia que aquilo era um narciso.

Mas olha que interessante: se, por um lado, o romantismo de Wordsworth enfatiza esse "olhar que olha para dentro" ("that inward eye"), por outro, esse automonitoramento ou reflexividade é o avesso do pensamento ("I gazed - and gazed - but little thought") e traz o autor de volta à natureza.

É o limite oposto da reflexividade do agente de que fala Margaret Archer em sua teoria das conversações interiores, cuja base está na tradição católica (agostiniana) da introspecção. Também se contrapõe à noção de self de Mead.

Estou tentando encontrar um outro limite para essa noção de reflexividade (em sentido bem amplo) numa passagem de Cem Anos de Solidão, de Garcia Marquez. Ainda não tive tempo de voltar ao livro, mas lembro que uma das personagens (creio que Amaranta) passa três páginas inteiras, sem um ponto ou uma vírgula, numa conversa interior na qual destila seu ódio por alguma coisa que o coronel Aureliano Buendía fez com ela. Creio que é um tipo de introspecção no melhor estilo "fluxo de consciência" de Bergson e que apontaria para uma concepção inteiramente diferente de sujeito. Qualquer dia escrevo sobre isso por aqui.

Le Cazzo disse...

Escreverei um pouco a esse respeito da perspectiva alemã nos próximos posts. E gostaria de ver o que você desenvolvendo algo como uma ideia de subjetividade no romantismo inglês. Se fizer, talvez dê um ensaio comparando as duas estratégias. Abraço, Jonatas

Cynthia disse...

Só isso que você quer? Acho que não será dessa vez, Jonatas: prefiro pensar sobre o realismo mágico latinoamericano, que me é mais próximo e mais intrigante. Mas suas reflexões sobre o romantismo (e sua influência no vitalismo) me serão de grande ajuda.

Ai, que frustração horrorosa. Tanta coisa interessante para ler, para pensar, para escrever, e eu enrolada com a burocracia da Capes e do CNPq. É realmente um grande estímulo à vida intelectual...

Tâmara disse...

Jonatas,
Sua ilustração bem romântica pode ser inclui'da no chavão "fuga do real", mas também é possi'vel acrescentar mais um para sermos temporais: o romantismo é fuga do presente. Rapaz, esse casal ja' se separou ha' tanto tempo que o Rei ja' pôde até entrar e sair de uma viuvez! Ja' a moça, foi vista mais recentemente na Canção Nova, renovando carismaticamente o catolicismo. Pensando nisso, Miriam Rios também é importante para para as ciências sociais, para seus especialistas do fenômeno religioso. Adorei!

Renan Cabral disse...

Mui caro Professor, num artigo que busca mostrar que "sem o Romantismo fica complicado entender a emergência de uma sociologia não positivista", senti falta de algum destaque ao ceticismo filosófico, bem presente ,por exemplo, no citado Dom Quixote - que a esse respeito tem curiosiadades interessantes, como o fato de que o número de batalhas ganhas é igual ao das perdidas.

Tal reflexividade, caráter ambíguo etc, não são consequência de doses do veneno pirrônico?

Trabalho tão admirável quanto árduo esse seu.

Um abraço.

Le Cazzo disse...

Tâmara e Renan,

Escrevi uma respota grande para vocês mas deu xabu e perdi tudo. Mesmo assim, respondo novamente; modestamente.

Fiquei decepcionado que um amor tão bonito como o do Rei e da Mirinha (olha a intimidade de súdito) tenha se acabado. Estou sem palavras.

E adoro o Dom Quixote.

Abraço, Jonatas

Renan Cabral disse...

Pena que deu zebra... E viva Dom Quixote!

Tâmara disse...

Noutras palavras sou muito romântico...(O pior é que isso é de Caetano, né?)
Afinal de contas, Jonatas, o romantismo do Rei estaria mais pro'ximo do alemão, do francês ou do inglês? Acho que a pista esta' com Cynhtia: de Garcia Marques, sua Macondo e outras Itabaianas.
Aguardo a continuação de seu texto para tentar situar essa questão grave. E junto-me a vocês: viva Dom Quixote! Abraço.