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sábado, 23 de agosto de 2008
O Positivismo de Émile Durkheim 1
Semana passada, comecei meu curso de metodologia das ciências sociais no Doutorado em Sociologia. Para o desgosto geral dos alunos, costumo colocar diversas seções sobre positivismo, partindo de Durkheim, passando pelo empirismo lógico, pelo modelo nomológico-dedutivo e terminando com a auto-implosão do sistema inteiro por Karl Popper. A idéia é fazer com que o positivismo deixe de ser um simples xingamento e passe a ser compreendido como uma teoria do conhecimento fundamentalmente insustentável e que adquiriu diversas nuances ao longo do tempo. É interessante, por exemplo, que mesmo autores do porte de um Adorno ou de um Habermas ofereçam críticas bastante consistentes ao positivismo nas ciências sociais, mas implicitamente pressuponham que ele é uma teoria adequada para explicar a construção do conhecimento nas ciências naturais. Não é. De fato, como argumenta Ted Benton (1977), a incoerência desta teoria do conhecimento é tal que sua aplicação é impossível. Mesmo os simpatizantes declarados do positivismo, como é o caso de Durkheim, não conseguem sustentar suas prescrições metodológicas de forma consistente.
Inicialmente, pensei em me dedicar apenas à exposição de algumas das principais idéias metodológicas de Durkheim, relacionando-as com alguns de seus escritos substantivos, especialmente O Suicídio, que, a rigor, deveria ser uma aplicação da metodologia exposta nas Regras do Método Sociológico. Depois, consultando meus alfarrábios, dei-me conta de que há muito devia a mim mesma a sistematização das minhas notas de aula sobre este autor. São estas notas que compartilharei com vocês aqui, embora meu objetivo principal seja o de demonstrar por que Durkheim, assim como qualquer positivista, não consegue aplicar seu positivismo em sua obra substantiva. Na verdade, mesmo as Regras, que deveriam constituir sua obra positivista por excelência, revelam um sem número de contradições que apontam para uma concepção muito mais complexa de construção de conhecimento do que o positivismo autoriza.
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Qualquer texto ou curso sobre os autores clássicos levanta a questão de saber por que, depois de tantos anos, ainda os lemos. A verdade é que lemos os clássicos porque eles são clássicos. Mas o que os torna clássicos? Creio que uma das melhores respostas a esta questão foi dada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann. Para ele, uma teoria é clássica “quando ela fornece um sistema interconectado de afirmações que não é mais convincente em sua forma original, mas que sobrevive sob a forma de um desafio, desiderato ou problema [...]. O texto retém sua relevância contemporânea na medida em que sua maneira de colocar problemas ainda pode ser aceita”. Entretanto, continua Luhmann, “ele se mantém como um padrão de autoridade em um sentido ambivalente: a partir dele, podemos inferir o que deve ser alcançado, mas não mais como [as coisas] devem ser alcançadas” (Luhmann, 1982: 4; ênfases no original).
Pode-se perguntar, entretanto, por que nós, cientistas sociais, ainda precisamos recorrer aos clássicos para colocar problemas. Na verdade, esta pergunta contém um viés positivista, pois pressupõe que a ciência se desenvolve sob a forma de acúmulo de conhecimento e, o que quer que os clássicos tenham produzido de verdadeiro, já foi incorporado nas teorias contemporâneas. Ocorre que não existe consenso sobre o que é verdadeiro no conhecimento científico (nem mesmo sobre o que é a verdade) e essa falta de consenso é particularmente presente nas ciências sociais. Isso significa que a argumentação assume uma importância central entre nós e, como afirma Jeffrey Alexander (1982), os clássicos nos fornecem uma linguagem comum, possibilitam uma economia na nossa argumentação quando podemos, por exemplo, afirmar que estamos usando o conceito “x” ou “y” no sentido que Fulano atribuiu ao termo, ou que estamos investigando a questão “z”, conforme colocada por Sicrano.
E o que faz de Durkheim um clássico? Quais os problemas colocados por ele e por que eles continuam a ser relevantes? Na verdade, muitos, mas podemos destacar dois problemas principais. O primeiro diz respeito à própria relevância da sociologia como uma forma de conhecimento. Existe uma forma “sociológica” de se perceber o mundo? Mais especificamente, a sociologia nos diz algo sobre o mundo que outras formas de conhecimento não o faz? O segundo problema, que de certa forma já pressupõe uma resposta afirmativa para a pergunta anterior (pois pressupõe a existência do objeto da sociologia), pode ser colocado da seguinte forma: como as nossas ações individuais se combinam no sentido de produzir os padrões de comportamento e as instituições que podemos observar em nossa vida cotidiana? Em outros termos, o que torna a sociedade possível? Isto constitui, de fato, um dos problemas centrais da sociologia e é conhecido como “o problema da ordem” (Alexander, 1988).
Existe ainda um interesse histórico na figura de Durkheim, embora esse interesse não assuma a mesma importância que um clássico assume nas ciências naturais porque, diferentemente dessas, a maneira como as ciências sociais foram institucionalizadas tem repercussões importantes para o papel que atribuímos a elas hoje. Assim, por exemplo, poucas pessoas se questionam sobre a influência das fontes de financiamento dos cientistas naturais, ou como as condições históricas que possibilitaram seu surgimento afetaram o tipo de perguntas e de respostas considerados legítimos. Certamente que também podemos, e devemos, fazer considerações dessa ordem nas ciências naturais, mas, como essas questões são mais visíveis nas ciências sociais (pelo simples fato da fragilidade do conhecimento produzido por nós ser mais evidente), elas sempre foram parte integrante da reflexão sociológica.
A trajetória institucional de Durkheim nos diz coisas importantes acerca do surgimento da sociologia como uma disciplina acadêmica. Embora não vá me deter em questões dessa ordem aqui, é importante enfatizar que, antes de Durkheim, a sociologia não era uma disciplina acadêmica, na forma como hoje se ensina nas universidades. Embora muitas das questões sociológicas já tivessem sido colocadas por filósofos sociais, historiadores, economistas políticos etc, elas só adquirem um viés propriamente sociológico após a institucionalização da sociologia como uma disciplina ensinada nas universidades. E Durkheim fez mais do que nenhum outro para institucionalizar a sociologia: foi a partir de um curso criado para ele em 1887, o “curso de ciência social e de pedagogia” da universidade de Bordeaux, que a sociologia entrou oficialmente no sistema universitário francês, embora sob a égide de “ciência social”. Foi apenas ao entrar para a Sorbonne, em Paris, em 1913, que o nome “sociologia” aparece na cátedra que Durkheim passou a ocupar: “Ciência da Educação e Sociologia”.
Conhecida por sua tradição humanista em filosofia, história e direito, a Faculdade de Letras de Bordeaux apresentou inúmeras oposições à entrada de Durkheim. O que se temia era que, ao enfatizar a sociologia em detrimento das disciplinas tradicionalmente humanistas, Durkheim acabaria por estabelecer uma espécie de “imperialismo sociológico” que, em conseqüência de suas explicações a partir de causas sociais, negasse a importância da liberdade individual e da responsabilidade moral dos indivíduos. Além disso, sua defesa da sociologia era interpretada por muitos como resultado de uma abordagem “agressivamente científica” para todos os problemas, tudo o mais sendo reduzido a “misticismo, diletantismo e irracionalismo” (Jones, 1986:2).
Também foi Durkheim o responsável pela fundação da primeira revista de ciências sociais da França, o L’Année Sociologique, cujas principais contribuições consistiram em enquetes anuais acerca da literatura sociológica produzida no mundo, assim como a publicação de artigos originais de sociologia. Foi, portanto, sua crença na pertinência de um conhecimento sociológico, concebido por como uma ciência natural da sociedade, que orientou sua produção intelectual e também política.
Cynthia Hamlin
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7 comentários:
Esse tema me interessa. Discuti-o num artigo "a construção social dos sentidos: subjetividade e individualidade em Durkheim". Segunda, à noite, publico um texto complementar ao teu -- seria uma recauchutada do meu artigo.
Mas creio que a senhora discordará da minha posição, principalmente da forma pela qual utilizo a noção de "positivismo" (uma postulação mais normativa do que epistemológica) -- não importa: oferecerei o pescoço e te darei o machado. Perco a cabeça, mas não perco a piada.
Aliás, vc postou dois textos; assim, pergunto, não é melhor deixá-los mais tempo no ar? Publico meu post quando? Quarta?
Arture,
eu tb acho que o positivismo é muito mais uma posição normativa do que descritiva. Os caras dizem o que deve ser feito na produção do conhecimento científico, mas ninguém faz ciência seguindo as regras colocadas pelo positivismo.
Sei lá quando você coloca. Estou preparando o terceiro post sobre isto, mas na verdade é uma espécie de introdução à questão do empirismo como base dos positivismos. Acho que termino de hoje para amanhã, mas, se você preferir, posso esperar para postá-lo no próximo fim de semana (e vc publica o seu na quarta). O que acha?
Publique o terceiro post sobre o assunto. Acho mais interessante, pois permitirá a leitura do texto completo. Eu publico o meu depois. Bjs
eita, Artur, eu acho que vou precisar de uns 4 ou 5 posts para colocar tudo o que estava pensando.
É uma pena que Durkheim continue sendo abordado nos cursos de maneira tão redutivista e equivocada, como esta visão tão desgastada de que ele é um positivista e que, paralelamente, o positivismo seria uma ilusão metodológica, senão mesmo uma aberração conservadora. Em primeiro lugar, é preciso entender o que significa o positivismo em seu contexto histórico, assim como diferenciar a proposta metodológica de Durkheim daquilo que, a rigor, era propriamente o positivismo comteano. Em segundo lugar, as críticas de Popper são endereçadas ao positivismo no que se refere à rejeição total do pensamento filosófico na produção do conhecimento científico. Para ele, ainda caberia a Filosofia um espaço importante no que se refere ao "contexto da descoberta". Finalmente, a proposta metodológica durkheimiana, às vezes chamada de naturalismo metodológico, não difere muito das pretensões de Popper quanto à necessidade de se colocar as teorias à prova de testes empíricos. Claro que enquanto Durkheim, seguindo o "espírito cientítico" de seu tempo, propõe o método indutivo, algo já defendido anteriormente por Stuart Mill, Popper propõe o método dedutivo de teste. Mas, a ênfase na análise empírica é a mesma. Desse modo, chamar de positivista um autor cuja metodologia teria como premissa a aproximação dos métodos das Ciências Sociais aos das Ciências da Natureza e a orientação de neutralidade axiológica para análises empíricas é um simplificação bastante rudimentar. E, claro, como de praxe, introduz-se Adorno no debate, desconsiderando que ele não apenas não é um especialista nem em metodologia, nem em epistemologia, como também é claramente um ideólogo da esfarrapada "teoria crítica", um arremedo de doutrina soviética da verdade exclusiva do proletariado aplicado ao conhecimento científico. Então, realmente é uma pena que num curso de metodologia um autor como Durkheim, precursor da análise multivariada tão utilizada atualmente em análises estatísticas avançadas, seja abordado desse maneira extremamente simplista, que reproduz a velha cantilena dos cursos dados no Brasil. Realmente, faltam especialistas tanto de metodologia quanto de teoria sociológica. Mas, especialistas mesmo, não pessoas que lerem alguns textos, usam alguns conceitos, mas não pesquisam sistematicamente tais temas.
Prezados Colegas.
Ao ler sobre o suicídio anômico, especificamente na parte IV em que ele aborta sobre a associação do divórcio com o suicídio, Durkhiem vai se contrapor à proposição de Bartillon, e à idéia de que o divórcio está ligado, associado, especificamente, ao suicídio como causa.
Não entendi as razões ou justificativas de Durkheim. Ele fala de uma espécie de constituição sui generis matrimonial.
O que vem a ser essa constituição matrimonial?
Enfim, qual sua justificativa quando ele também diz que a causa não pode ser uma predisposição orgânica presente nas pesoa como causa como diz Bartillon?
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