terça-feira, 19 de agosto de 2008

O Corpo e excesso na literatura: uma elaboração acerca do êxtase (I)



Introdução

Embora a literatura não seja um campo imediatamente associável às questões sobre as quais tenho me debruçado, i.é., a mudança no estatuto do corpo diante das tecnologias de manipulação molecular da vida, a decisão de realizar uma incursão em um terreno tão alheio tem boa justificativa. Talvez não seja suficientemente conhecido o quanto certos discursos supostamente radicais acerca do estatuto do corpo na contemporaneidade, da necessidade de sua reconfiguração, do surgimento de um corpo pós-humano devem à literatura e arte modernistas. Eis um primeiro e bom motivo: reconhecer este débito; purgar-nos desse tipo de impostura intelectual.

Citemos aqui o futurismo, mas também o surrealismo e o dadaísmo como exemplos bastante concretos de antecipação temas relacionados ao "fim do corpo" e que contradizem tal desejo de originalidade. O corpo-máquina, do homem em simbiose com seu automóvel, de que nos fala Marinetti já em seu primeiro Manifesto Futurista; o corpo-fragmentado e remontado de modo a provocar a vertigem do inusitado, que encontramos nas bonecas articuladas ou nas graviras de Hans Bellmer(1); a busca de uma estética não-artística, a busca de uma experiência imediata, não reflexiva, que visa à carne, proposta pelo dadaísmo; tudo isso parece desconfortavelmente contemporâneo para que aceitemos imediatamente hipóteses de um fim do corpo, de um fim do humano, como grande novidade.

Embora relevante, embora tenha sido este meu ponto de partida no percurso de elaboração do presente ensaio, a motivação que o impulsiona é mais ampla - o que não significa que esse ponto não vá retornar com freqüência ao longo deste texto. Acredito que um determinado tipo de literatura, sensível ao ‘mal’, com diz Bataille, ao excessivo, ao abjeto, proporciona um mergulho na experiência moderna do corpo com uma força filosófica notável. Mantenhamos por um momento em suspensão essa idéia e nos perguntemos se o desejo pelo excessivo caracteriza apenas esse tipo de literatura que encontramos em Sade, Lautréamont, Bataille, ou há nele algo de essencial acerca do próprio exercício literário. Acredito, por exemplo, que na escolha de temas como a abjeção do poeta, a idolatria de Satã, que encontramos em Baudelaire são fundamentais para compreendermos o seu modernismo: o excesso é ali uma estratégia que nos impõe como questão os limites do exercício literário. Conta-se que Buñuel, após filmar a célebre cena do 'Cão Andaluz' em que um olho humano (supostamente) é cindido por uma navalha, passou uma semana de cama vomitando. O que se buscava ali?

Em seu texto ‘A Linguagem ao Infinito’, Foucault trabalha uma hipótese bastante interessante; hipótese que, de certo modo, já havia sido considerada por Benjamin em seu em seu ensaio acerca do nascimento da crítica literária. A literatura pressupõe não apenas o exercício de uma arte da narrativa, mas de um exercício metalingüístico acerca do fazer literário. A produção da arte como exercício reflexivo e meta-artístico, sustenta Benjamin, é uma conquista do proto-romantismo alemão(2). De modo semelhante, Foucault acredita que a literatura ocuparia o lugar vazio do sagrado em uma sociedade secularizada. Seu exercício pressupõe uma crise da representação em que a narrativa precisa debruçar-se sobre a legitimidade de ‘contar um conto’. Desta perspectiva, a literatura traz consigo a reflexão de seus próprios limites e, nessa qualidade, torna-se potencialmente excessiva. Ou seja, ela pressuporia um tipo de performatividade estética que se abre constantemente ao vazio e à finitude dentro dos quais esta performatividade é produzida.

Quem pensa o humano, pensa necessariamente os limites do humano; quem se debruça sobre o exercício literário, tal como o entende Foucault, depara-se com esses mesmos limites e com a questão de sua transposição. No final de sua vida, Simmel afirmou isso de vários modos: debruçar-se sobre a vida é colocar-se a questão da morte, colocar-se a questão da forma é impossível sem refletir sobre as forças de deformação. Pensar Apolo é refletir sobre Dionisos.

Nem todo exercício literário é materialmente excessivo, todavia. Nem toda literatura dirige, não apenas seu olhar, mas o seu passo em direção a esta região de morte e de loucura, ao terreno de Dionisos – o estrangeiro, o louco e o que faz enlouquecer; aquele que morre e ressuscita periodicamente. Menciono e trabalharei aqui um autor excessivo: Antonin Artaud, este que esteve entre os surrealistas, mas achou-os por fim demasiadamente bem comportados, ansiosos demais para servir a uma causa, a do socialismo, por exemplo, para serem levados a sério. A respeito de sua obra, como não admirar o ensaio que Susan Sonntag nos oferece à guisa de introdução ao Selected Writings que ela própria organiza a partir das cartas, poesias, roteiros, manifestos escritos por Artaud. O ‘literário’ em Artaud seria estruturado como desejo de uma apreensão total da subjetividade. Ou seja, a apreensão literária enquanto exercício de expressividade do sujeito é necessariamente finita, precária; ao mesmo tempo, ele a deseja total, absoluta(3).

A questão literária e meta-literária que se propõe Artaud abre-se em um outro sentido que buscarei investigar neste ensaio a partir de diversas fontes. Não me interessa aqui o tema da subjetividade na literatura do mal, nem temas correlatos como o da representação e expressão, mas a questão do corpo. Interessa-me o corpo de Dionisos, um corpo na vertigem da decomposição que aparece num tempo em que a literatura ocupa e aparentemente desloca o sagrado.

Ocupar o lugar do sagrado neste contexto significa algo bastante distinto daquilo que temos em mente quando dizemos que a ciência ocupou o lugar do dogma. Se é bem verdade que também nesse movimento chegou-se ao religioso, como prova a religião positivista de Comte, interessa-me um tipo de ocupação do sagrado em que o corpo descobre-se na vertigem, ou seja, configura-se precariamente na instabilidade. Uma elaboração cerebral disto que acabamos de dizer nos é proporcionada pelo dadaísmo, por exemplo, em sua busca em atingir a sensibilidade antes de atingir a consciência . Bataille procura durante muito tempo uma estética que materialize uma experiência mística, um salto para além da lógica do trabalho, da razão, das formas produtivas. Mas o corpo em vertigem que nos interessa como dimensão fundamental dessa experiência artística aparece de um modo mais brutal nos escritos que têm, como Sade ou Lautréamont, ou ainda Baudelaire, o mal como campo privilegiado da literatura. Pensemos aqui em Lautréamont. Cito uma passagem, entre muitas dos seus Cantos de Maldoror, com essa capacidade de produzir a vertigem.

He cogido entonces un cortaplumas, cuya hoja tenía um filo muy cortante, y me he hendido la carne em los sítios em que juntaban los lábios. Por um momento creí haber conseguido mi objeto. Examine em um espejo esta boca desgarrada por mi proprio deseo! Era um error! La sangre que corria com abundancia de las dos heridas impedia, además, distinguir si era aquello realmente la risa de los otros (DUCASSE, 1982, p. 40-41).


Ou ainda esta:
No encontrando lo que buscaba, levante mis párpados atarrados aún más arriba, hasta que distinguí un trono formado de excrementos humanos y de oro, sobre el cual reinaba, lleno de estúpido orgullo y con el cuerpo envuelto em um sudário hecho com sábanas sucias de hospital, aquel que se tutila el creador! Tenía em la mano el tronco podrido de um hombre muerto, y se llevaba, alternativamente, de los ojos a la nariz y de la nariz a la boca; una vez a la boca puede adivinarse lo que hacía (DUCASSE, 1982, p. 222)


Como não tremer diante dos horrores dos Cantos de Maldoror, diantes dos sofrimentos terríveis de Justine, e do regozijo de um certo Marquês? Interessa-me portanto o corpo em vertigem, o corpo diante do precipício, que é um aspecto importante da literatura excessiva que se produz em Lautréamont, em Artaud, em Rimbaud, Baudelaire ou Sade. “La lectura de Maldoror es un vértigo. Ese vértigo parece el efecto de la aceleración de un movimiento tal que el envolvimeinto del fuego, en el centro del cual uno se encuentra, procura la impresión de un vacío ardiente o de una inerte y sombría plenitud” (BLANCHOT, 1990, p. 73). Acredito que encontramos uma elaboração bastante sofisticada do sentido filosófico dessa vertigem na obra de Bataille – ele próprio capaz de um exercício literário excessivo, como encontramos na Histoire de l’oeil. Refazer em alguma medida o significado filosófico desse exercício seria um primeiro passo para nos ocuparmos de suas implicações sociológicas. Este, por seu turno, seria importante para virmos a compreender a atual mudança que se opera no estatuto do corpo. Tenho ainda a esperança que o texto seja divertido.

Notas
(1)“Fragmentar, decompor, dispersar: essas palavras se encontram na base de qualquer definição do ‘espírito moderno’ (MORAES, 2002, p. 56)
(2)Benjamin tem em mente nomes como os irmãos Schlegel e Novalis, mas também Fichte. Ver ‘O Conceito de Crítica no Romantismo Alemão’ (BENJAMIN, 1996)
(3)Dessa perspectiva, Artaud seria mais um, embora não seja qualquer um, na fila de pensadores que se colocaram a problemática Kantiana, nomeadamente, a existência de uma esquizofrenia transcendental e insolúvel entre o sujeito pensante e o sujeito pensado. Fichte, Hegel estruturaram suas contribuições a partir desse nó essencialmente moderno. Mais uma vez: o problema aqui é um problema da ordem do representar. A dicotomia alma/mente versus expressão, entre o que é pensado e o que objetivamente expressado, aparece na obra de Artaud de modo obsessivo, o que justificaria a leitura de Sonntag e se coadunaria com a suposição foucauldiana: a literatura constitui-se historicamente como exercício meta-literário.

Jonatas Ferreira
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(nas carreiras e por editar)

9 comentários:

Anônimo disse...

Jonatas, você está ficando perverso. Como se divertir em mais um funeral patrocinado pela ala pomo?

Ai. Deixa eu voltar para a minha aulinha sobre Durkheim. Pelo menos o Suicídio é mais alegrinho.

Le Cazzo disse...

É verdade. Mas eu acho que a discussão é relevante. Aguarde a continuação do post. Beijo, Jonatas

Anônimo disse...

Velhão,

acho fascinante o objeto de teu artigo. Daria para fazer outro, só resenhando as questões envolvidas. Bela sacada, ao relacionar a mudança no estatuto do corpo com alguns escritos literários. Pessoalmente, sempre achei um mistério a capacidade antecipatória da literatura -- um cara como George Steiner, crítico literário, trabalha essa questão de uma forma interessante (não concordo, mas é uma interpretação possível do problema).

Parafraseando tua análise, será que a literatura adquiriu esse poder de vidência quando assumiu sua prática "como exercício reflexivo e meta-artístico" no proto-romantismo alemão?

Inclusive, fazendo uma associação livre: lembro-me das discussões de Thomas Mann sobre a tuberculose (a Montanha Mágica), antecipando algumas representações modernas sobre doença, que serão assumidas, do ponto de vista de uma "construção social da doença", quando do surgimento da Aids (meu objeto de estudo).

Mas não é sobre isso que quero falar. Na verdade, quero comentar a respeito da época e do tipo de literatura que vc escolheu para sua análise. Pessoalmente, acho que vc teria um filão espetacular, um "excesso excessivo", na ficção científica e nas histórias em quadrinhos, quanto à mudança do estatuto do corpo -- essa questão é constante na FC e na HQ, principalmente a partir da década de 50.

Até mesmo, eu arriscaria o seguinte: a literatura examinada por vc, envolve sim uma mudança no estatuto do corpo, mas acho que é na FC (e na HQ) que o estatuto do corpo torna-se verdadeiramente "pós-humano".

Le Cazzo disse...

Arturo,

Podemos pensar em trabalhar conjuntamente a sua idéia. Sei que os assuntos relacionados ao corpo de certa forma despertam seu interesse e eu sempre quis fazer algo com SCIFI - na verdade já fiz: um artigo e orientei uma dissertação muito boa de Wanderlice Pereira. No momento dou uma versão mais acabada de Negros Mulheres...

Quanto, a Thomas Mann, você veja: tive recentemente que parar o livro no meio exato de suas oitocentas e tantas páginas porque a vida me chamou recentemente em outra direção - já é a segunda vez que tento. Eu pessoalmente vou terminar de ler por obrigação intelectual - como se eu tivesse uma vida de duzentos anos... Mas para mim o livro só faz sentido como uma tentativa de transformar em prosa algumas discussões filosóficas importantes na época. É um sanatório onde se vive Bergson, Comte, debate-se sobre o destino do ocidente, sobre sua relação com o oriente e evidentemente discute-se a biologia da época: embates entre vitalistas e mecanicistas; sobre a psicanálise. Olhe, é feito filme daquele canadense que fez O Declínio do Império Americano: o prazer é identificar as citações. Mas entendo e concordo com sua observação. Abraço, JOnatas

Le Cazzo disse...

E a cor do pano de fundo de nosso blog? Cheira a lavanda. Foi Cynthia que escolheu!!! JOnatas

Anônimo disse...

Comentário rápido: rapaz, tive essa dificuldade em terminar a leitura, especialmente com dois livros: Dr. Fausto, do próprio Mann, e o Homem Sem Qualidades, de Musil (aqui, fui um leitor absolutamente fracassado) -- em suma, para fazer uma piada fácil, não tive qualidades para lê-lo.

Preciso pensar em como entrar na seara da scifi e de outros estudos -- o problema de ter sido médico é a condenação à sociologia da saúde. Mas tenha paciência e me aguarde.

Anônimo disse...

Para combinar com o Kong, Jonfer, que tem jeito de fedorento. No meu computador de casa, que tem um monitor mais high tech, ficou bem clarinho, offwhite. Na universidade ficou um horror.

Já conseguiu a aula de Remo? Estou ansiosa para ler.

Arture, você voltou!

Anônimo disse...

Também já comecei os dois algumas vezes. Roubei o Musil do meu pai, que apostou comigo que eu não conseguiria lê-lo. Vou começar de novo em breve.

Mas será o benedito, sexta feira à noite e os três na frente do computador?

Anônimo disse...

Nem venha, pois defendo Cynthiazinha na questão do pano de fundo. Está clean, com luz, inaugurando, para tua aflição, uma fase iluminista no blog (hehe). Aliás, imagino o tom fúnebre que o senhor colocaria no blog. Convenhamos, já basta um gorila gigante, embora tenha gostado muito da foto, principalmente do pôr-do-sol (hehe).