As Regras do Método Sociológico constituem a obra positivista de Durkheim por excelência, já que é nela que podemos identificar a defesa explícita dos principais elementos que constituem o positivismo. Aqui, finalmente começamos a “arranhar” a superfície do termo.
Positivismo é um dos termos mais polissêmicos das ciências sociais. Em um pequeno grande livro sobre o tema, Peter Halfpenny (1982) chega a identificar 14 sentidos diferentes para o termo, atribuídos por positivistas e por anti-positivistas. Alguns desses sentidos são claramente “inflacionados”, referindo-se a práticas tão difundidas entre nós que sua aplicação necessariamente levaria a uma definição da sociologia como a ciência positivista por excelência. Assim, por exemplo, positivismo às vezes é associado à busca pela generalização, à utilização de métodos estatísticos, à explicação causal, ao naturalismo. Embora se possa afirmar que todas essas características estejam ligadas ao positivismo, elas não são suficientes para caracterizar uma dada abordagem como positivista. Em outros termos, é possível concepções não positivistas de naturalismo, de explicação causal, de generalizações empíricas e do uso de métodos estatísticos. De forma geral, entretanto, quando essas noções aparecem associadas a concepções empiristas (humeanas) de causalidade e de leis causais, de uma valorização excessiva de dados empíricos em detrimento da teoria, de uma concepção cientificista de conhecimento, dentre outras coisas, pode-se apostar que a teoria do conhecimento que guia as práticas de pesquisa em questão é positivista. De fato, se tivermos que selecionar uma única característica que perpassa todos os tipos de positivismo, esta seria o empirismo. O positivismo é, antes de tudo, uma forma de empirismo, embora ele possa assumir formas mais ou menos radicais.
Farei agora um pequeno parêntese para adentrar um pouco na idéia de empirismo. Definido de forma ampla, o empirismo pode ser caracterizado como a visão segundo a qual a experiência, em particular a experiência sensorial, é a fonte primária – ou única – do conhecimento. Também de forma ampla, contrapõe-se ao racionalismo, ou a visão que defende que a razão é a fonte primária – ou única – do conhecimento. Tradicionalmente, os racionalistas tendem a argumentar que o conhecimento construído com base na observação por meio dos nossos sentidos é notadamente frágil: como Descartes (mais ou menos) colocava, vai que existe um demônio que altera a aparência das coisas para tentar nos enganar!
Depois de Kant, no entanto, passou a ser geralmente aceito que o conhecimento científico envolve uma mistura de observação empírica e de razão (“a experiência sem teoria é cega, mas teoria sem experiência é mero jogo intelectual”). A menos, claro, que sejamos como o rei da Polônia (ou como os pós-estruturalistas):
O rei da Polônia e um séqüito de duques e condes saíram para uma caçada real de javalis. Logo que chegaram à floresta, um servo veio correndo de trás de uma árvore, balançando os braços excitadamente e gritando: “Eu não sou um javali, eu não sou um javali!”. O rei armou seu arco, apontou para o servo e trespassou seu coração com uma flecha, matando-o instantaneamente. “Majestade”, disse um duque, “por que o senhor fez isto? Ele disse que não era um javali!”. “Oh, meu Deus”, disse o rei, “eu pensei que ele tinha dito que era um javali!”.
Claro que se poderia argumentar que o rei errou ao confiar em apenas um dos seus sentidos, a audição. O que um empirista faria seria mais ou menos o seguinte:
Um cientista e sua esposa saem para um passeio de carro pelo campo. A mulher diz, “veja! Aquelas ovelhas foram tosadas”. “Sim,” diz o marido, “deste lado”.
Embora à primeira vista possa parecer que o empirista em questão é o marido, a menos que estejamos falando de Otto Neurath, do Círculo de Viena, o verdadeiro empirista aí é a mulher. O raciocínio dela é tipicamente humeano. Sua “experiência” não se restringe à experiência sensorial direta, mas a experiências prévias (generalizadas indutivamente sob a forma de leis ou, mais propriamente, hábitos psicológicos relativos a conjunções constantes entre eventos) que lhe permitiram inferir determinadas coisas. O que ela estava efetivamente dizendo era algo do tipo: “O que eu vejo são ovelhas tosadas, pelos menos de um lado. A partir de experiências prévias, eu sei que os fazendeiros não costumam tosar suas ovelhas de um lado só e, mesmo que o fazendeiro dono desta ovelha tivesse feito isto, seria improvável que as ovelhas tivessem se alinhado tão perfeitamente de forma a mostrarem apenas o lado tosado. Assim, sinto-me relativamente segura para afirmar que aquelas ovelhas foram completamente tosadas”.
Captou?
Como Durkheim se enquadra nesta caracterização geral de positivismo? A primeira dificuldade que encontramos ao lidar com o positivismo de Durkheim (1980: 9) é a sua auto-definição como um “racionalista científico” no prefácio à primeira edição das Regras:
A única [denominação] que aceitamos é a de racionalista. O nosso principal objectivo, com efeito, é estender ao comportamento humano o racionalismo científico, mostrando que, considerado no passado, ele é redutível a relações de causa a efeito que uma operação não menos racional pode transformar depois em regras de acção para o futuro. Aquilo a que se chamou o nosso positivismo é a penas uma conseqüência deste racionalismo (ênfases no original).
E continua, numa nota de pé de página: “quer dizer que não deve ser confundido com a metafísica positivista de Comte e de Spencer” (Ibid.).
Isto parece sugerir uma ênfase muito maior no racionalismo (isto é, na idéia de que a forma mais segura de conhecimento é o uso da razão via o estabelecimento de relações lógicas entre conceitos e categorias) do que no empirismo (a forma mais segura de se adquirir conhecimento é a observação empírica por meio do uso dos sentidos). É preciso lembrar, no entanto, que os empiristas são racionalistas no sentido Iluminista mais geral de que o conhecimento deve ser construído com base na razão. Entendendo o racionalismo de Durkheim neste sentido amplo, é possível compreender a primazia que ele atribui aos “fatos” empiricamente observáveis ao longo das Regras (uma posição que, como pretendo demonstrar, ele não consegue sustentar). De fato, uma investigação mais cuidadosa revela que a “operação racional” envolvida no estabelecimento relações de causa e efeito é completamente empirista. Ou melhor, a concepção de explicação causal que Durkheim toma de empréstimo de J. S. Mill é basicamente humeana. Voltarei a este ponto mais adiante ao expor seu método comparativo.
A crítica de Durkheim em relação à metafísica positivista de Comte e de Spencer também deve ser interpretada com cautela. A ênfase, aqui, recai sobre “metafísica”, não sobre “positivista”. Já na introdução das Regras, Durkheim (1980: 27) afirma que o Curso de Filosofia Positiva de Comte “foi o único estudo original e importante” sobre o método para o estudo dos fatos sociais. A fim de não tornar esta exposição excessivamente longa, tomarei de empréstimo as principais características do método defendido por Comte, conforme resumidos por Halfpenny (1982):
• o empirismo, já que a experiência humana é entendida como o árbitro do conhecimento;
• o sociologismo, no sentido de que a subjetividade humana não deve ser levada em consideração no estudo dos fenômenos sociais (vale lembrar que, para Comte, a psicologia sequer era considerada uma “ciência” digna deste nome);
• o naturalismo, ou a idéia segundo a qual a explicação dos fenômenos sociais é fundamentalmente igual à explicação dos fenômenos naturais;
• o cientificismo, ou a crença de que apenas a ciência pode ser considerada conhecimento;
• o reformismo social, ou a idéia de que a ordem social pode ser restaurada ao se ajustar os desejos humanos às leis da sociedade, e não por meio de revoluções.
O principal problema que Durkheim via em Comte não dizia respeito, portanto, aos métodos considerados adequados ao estudo dos fenômenos sociais, mas ao fato de que Comte foi incapaz de aplicá-los quando estabeleceu sua famosa “lei dos três estágios”. Esta “lei” seria um exemplo de metafísica porque foi construída com base na especulação, e não na observação direta ou na comparação entre tipos distintos de sociedade.
Mas será que, de acordo com seus próprios critérios, grande parte dos conceitos e categorias utilizados por Durkheim também não seriam “metafísicos”? Vamos ver, vamos ver.
Cynthia Hamlin
4 comentários:
“De fato, se tivermos que selecionar uma única característica que perpassa todos os tipos de positivismo, esta seria o empirismo. O positivismo é, antes de tudo, uma forma de empirismo, embora ele possa assumir formas mais ou menos radicais”.
E como fica o pragmatismo diante disso?
Lena, não entendi sua pergunta. Você poderia elaborar um pouco?
É que Durkheim tem essa coisa de um inconsciente coletivo que está tão acima dos indivíduos, mas tão acima que fica além do próprio social. Ao que me parece, isso já é metafísica, mas há uma “comprovação empírica” feita pelo direito. Daí fico pensando onde está de fato o empirismo qd se parte de um a priori completamente fora da realidade.
Foi aí que lembrei do pragmatismo, e isso deve ter sido uma ligação meio estranha. Mas, por buscarem a experiência (ainda que sem separá-la do pensamento), as teorias pragmatistas me parecem muito mais empiricamente comprováveis (ou descartáveis) que as de Durkheim.
rsrsrs Fez algum sentido agora?
Lena,
A consciência coletiva não está tão "acima" das consciências individuais como pode parecer: ela simplesmente diz respeito a coisas que são compartilhadas, o que significa dizer que, em sua totalidade, não se encontra presente na consciência de nenhum indivíduo particular. O problema é que, às vezes, Durkheim hipostasia o termo.
Quanto à forma como Durhkeim atribui existência à consciência coletiva, ele, de fato, não é um critério empírico, mas teórico. Ele não observa diretamente a consciência coletiva, mas infere sua existência e suas propriedades a partir dos efeitos que ela gera (o que significa dizer que ele se utiliza de um critério causal de atribuição de realidade).
Ao criticar os economistas políticos (J.S. Mill, em particular), ele afirma que o problema com um conceito como o de produção, conforme analisado por Mill, é que ele "não reconheceu a sua existência ao observar de que condições dependia a coisa que estuda; pois, nesse caso, teria começado por expor as experiências donde tirou essa conclusão" (Regras, cap 2). Isto aponta para o fato de que o próprio Durkheim reconhece que a experiência não precisa ser direta: "não as podemos atingir diretamente, mas só através da realidade fenomenal que as exprime".
O problema surge quando, mais adiante, nas Regras, ele afirma que os conceitos científicos, diferentemente dos conceitos do senso comum, devem ser construídos a partir de um retorno absoluto à natureza, quando o cientista se livra de todos os preconceitos e prenoções e se atém aos dados empíricos, conforme eles se apresentam. Não é isso que ele faz. Ele não se atém apenas aos dados empíricos, mas faz uma série de inferências acerca deles com ajuda de uma teoria. O exemplo clássico é a inferência sobre a existência da consciência coletiva (e de um tipo particular) a partir da manifestação de tipos específicos de direito. Isto jamais poderia ter sido feito se ele tivesse construído seus conceitos se atendo aos dados empíricos apenas.
Em relação aos pragmatistas, o critério de teste da teoria não é empírico, no sentido de partir de uma comparação entre o conceito e a realidade (teoria da verdade como correspondência), mas de sua utilidade. Isto é o que se conhece como instrumentalismo. Um conceito não é um reflexo da realidade empírica, mas um instrumento, uma ferramenta para se chegar a ela. Uma ferramenta não pode ser considerada verdadeira ou falsa, mas útil ou inútil. Dewey, por ex., afirma que as teorias são soluções apresentadas pelos cientidsas em situações indeterminadas, i.e., problemáticas. Neste sentido, não seriam verdadeirs ou falsas, mas mais ou menos úteis, mais ou menos trabalháveis, sempre em função de um contexto determinado, de um problema particular. Durkheim, por outro lado, parte de uma teoria da verdade como correspondência (entre conceito ou teoria e realidade empírica).
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