"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate":
Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
domingo, 7 de março de 2010
O Diverso que nos mete medo. Por que a tolerância não nos basta mais?
Por Zigmunt Bauman
Trecho da videoconferência pronunciada no congresso sobre “A qualidade da integração escolar”, na cidade de Rimini, publicado na edição do dia 16/11/09 do jornal italiano La Repubblica e republicado em Política Democrática: Revista de Política e Cultura, ano 9, no 25, 2010. Tradução de Marco Mondaini. Agradeço a Marcelo Medeiros, meu consultor para assuntos de ciência política, por me haver presenteado com uma cópia de Política Democrática após um profundo debate relâmpago via msn sobre intolerância e democracia em Slavoy Zizek e Paul Ricoeur. Agora vai de presente para Tâmara e demais leitores do Cazzo. A propósito: Política Democrática é blog friendly e autoriza a divulgação de seus artigos, desde que citada as fonte.
Cynthia
Viver com os estrangeiros – que é o fundamento demográfico e social da exposição às diferenças e a qualquer espécie de alteridade -não é de forma alguma um fato novo na história moderna. Mas antes a ideia era, grosso modo, a de que qualquer um que fosse estranho, estrangeiro, diverso de você perderia mais cedo ou mais tarde o seu caráter de estrangeiro.
A política dominante em relação aos estrangeiros, durante a maior parte da história moderna, foi uma política de assimilação: “Vocês estão aqui, estão fisicamente vizinhos; tornemo-nos, pois, vizinhos também espiritualmente, mentalmente, eticamente”, o que quer dizer aceitar os mesmos valores universais, onde, porém, como “universais”, sempre eram entendidos os “nossos” valores. Assim, com essa perspectiva, na qual o ser estrangeiro era apenas um desagradável incômodo passageiro, não existia a ideia de dever aprender a viver com o diverso.
Agora, pela primeira vez na história moderna, conseguimos nos dar conta de que as coisas não são bem assim.A modernidade sempre foi um período de migrações massivas de pessoas de um continente a outro, de uma extremidade do mundo a outra, de uma cultura a outra, e a migração aconteceu por necessidade nas circunstâncias modernas em que, para as pessoas assim chamadas em excesso, pessoas para quem não se podia encontrar uma colocação na sua sociedade de origem, não havia espaço na nova ordem, no novo estado avançado do progresso econômico, sendo forçadas a viajar.
Todavia, há uma diferença: as migrações contemporâneas têm um caráter diaspórico, não assimilatório. As pessoas que vão para um outro país não vão com a intenção de se tornar como a população hóspede. E a população hóspede, nativa, não é particularmente interessada em assimilá-las.
Existem cerca de 180 diásporas que convivem em Londres, 180 diversas línguas, culturas, tradições, memórias coletivas. Eo problema é que se a política de assimilação não é mais facilmente percorrível, como podemos viver, dia após dia, com os estrangeiros? Como podemos comunicar, cooperar, viver em paz sem que nós percamos a nossa identidade e que eles percam a sua – portanto, em uma coabitação que não leve à uniformidade? Em outras palavras, a questão não é mais aquela de ser tolerante a pessoas diversas.
A tolerância, na verdade, é muito frequentemente uma outra face da discriminação. “Sou tolerante em relação aos teus hábitos e aos teus modos bizarros. Sou uma pessoa muito aberta, sou superior a ti. Compreendo que o meu estilo de vida é inaceitável para ti. Tu não podes alcançar o mesmo nível. Então, permito-lhe de seguir o teu estilo de vida, mas eu não o faria nunca se estivesse em você”. O desafio com que devemos nos confrontar hoje consiste em passar dessa atitude de tolerância a um nível mais alto, isto é, a uma atitude de solidariedade. Devemos nos resignar ao fato de que existem estrangeiros, mas também aprender a extrair vantagens.
A maior parte de nós vive em grandes cidades. As cidades estão sempre cheias de estrangeiros e a sua presença é inquietante porque tu não sabes como se comportariam se não os mantivesse à distância – despertam suspeitas, causam horror simplesmente porque são entidades estranhas. Os estrangeiros metem medo. Chamei esse medo típico das cidades contemporâneas de mixofobia, a fobia de misturar-se com outras pessoas, porque lá onde nos misturamos a outras pessoas em um ambiente pouco familiar tudo pode acontecer.
Mas a mesma condição de mistura com os estrangeiros provoca também uma outra atitude. Existem duas reações contraditórias ao fenômeno, ambas observáveis nas cidades contemporâneas. A segunda é a mixofilia, a legria de estar em um ambiente diverso e estimulante. Hannah Arendt foi provavelmente a primeira pensadora moderna que repensando Gotthold Ephraim Lessing, um dos pioneiros do iluminismo alemão, viu nele uma das figuras mais perspicazes entre os filósofos da primeira modernidade.
Segundo Lessing, não é necessário limitar-se a aceitar o fato de que a diferença seja destinada a perdurar, mas é preciso efetivamente apreciá-la, reconhecer que há nesta um potencial criativo sem precedentes. O fato de colocar juntas experiências, recordações, visões de mundo muito diversas pode levar a uma prosperidade de desenvolvimento cultural. É muito cedo para dizer quais poderão ser os desenvolvimentos porque as duas tendências contrapostas, a mixofobia e a mixofilia, têm mais ou menos força igual. Às vezes prevalece uma, às vezes a outra. A questão é incerta e estamos ainda no meio de um processo que não sabemos bem como irá acabar.
Aquilo que estamos fazendo nas ruas das cidades, nas escolas primárias e secundárias, nos lugares públicos onde estamos ao lado de outras pessoas é de extrema importância não somente para o futuro das cidades onde queremos transcorrer o resto da nossa vida, ou pelo menos onde vivemos no momento, mas é de suma importância para o futuro da humanidade.
Vivemos em um mundo globalizado. A globalização alcançou um ponto de não retorno, não podemos andar para trás, estamos todos interconectados e interdependentes. O que acontece em lugares remotos tem um impacto formidável sobre as perspectivas de vida e sobre o futuro de cada um de nós. Então, chegou o momento de fazer aquilo que Lessing previu que deveríamos fazer, isto é, aprender a apreciar as oportunidades criadas pelas nossas diferenças. Confrontemo-nos com as conseqüências da globalização em cada estrada das cidades em que vivemos, em cada escola que ensinamos.
Mas, por outro lado, pela mesma razão, as cidades, as escolas, são o laboratório em que desenvolvemos os modos para aprender, obter benefício, entesourar e alegrarmo-nos exatamente pela natureza diaspórica da realidade contemporânea. Não estou dizendo que se trata de um dever fácil. Confrontar-se com um desafio que os nossos antepassados nunca acolheram, nos põe de frente a um dever que coloca a dura prova a nossa mente e as nossas emoções, e que devemos conseguir enfrentar nos seus desdobramentos, no curso da obra, sem dispor de soluções pré-constituídas.
Não sei, não sei. Ler Bauman sempre me dá a sensação de voltar à escola dominical da Igreja Batista do Cordeiro - pois é, esse quadril flexível, esse jeitinho todo para o samba, de onde vieram? Claro que concordo que tolerância é uma ideia liberal demais, sobretudo por não entender que as diferenças são historicamente construídas e escondem no mais das vezes cumplicidades não assumidas. O liberal tem de "aguentar o fardo" (creio que o sentido etimológico do verbo "tolerar") porque não admite que a produção de sentidos culturais se constitui em relação a (o que evidentemente coloca a questão da generosidade, ou seja, de deixar o estrangeiro gerar algo em você; mas também o do antagonismo). Constituir-se em relação a significa também constituir-se em conflito com. Mas o pensamento iluminista tem uma dificuldade grande de pensar a questão do conflito - precisamente por escamotear suas violências epistemológicas, culturais, políticas. É por não querer enfrentar o conflito e a diferença que atualmente a França e a Suiça tornam-se politicamente violentas: vide a questão das burcase a questão dos minaretes. Concentrar-se apenas no aprendizado intercultural, na generosidade (uma necessidade) é edulcorar a possibilidade da política hoje no ocidente - no que pese Arendt ter terminado sua vida na busca de um fundamento não trágico do político. De qualquer forma, o texto me deu ideia de uma boa discussão para o meu curso na pós esse semestre: Bauman versus Laclau. Jonatas
Mas Jonatas, você já leu Amor Líquido? É de um conservadorismo a toda prova! Não dá para se surpreender muito. Tudo bem que todos esses caras escrevem livros de divulgação que não expressam nenhuma complexidade, mesmo no que diz respeito às suas próprias teorias (vide Giddens e Bourdieu), mas Bauman se superou.
Se você está pensando em introduzir esse debate, sugiro contrastar Laclau com Zizek, por um lado, e com Ricoeur, por outro. O conceito de tolerância deste último me parece muito mais interessante (e não de todo incompatível com a ideia de hegemonia), embora este seja um conceito que me causa um certo incômodo.
Semana passada estive conversando com Frédéric e um amigo dele e argumentei que parte do meu incômodo é que percebo o limite da tolerância como indiferença. Frédéric discorda de mim veementemente e sugeriu que eu pensasse nos termos em inglês ("in-difference, as to live-in-difference"). Sei não.
De qualquer forma, a definição de tolerância de Bauman me parece excessivamente simplista e sua substituição pela noção de solidariedade não resolve o problema.
Pois é, pessoal, eu até andei publicando em Poli'tica Democra'tica em 2007, através de meu inesqueci'vel ex-professor Raimundo Santos: é bom vê-la por aqui. E eu também acho que essa conversa de bom pastor de Bauman não poderia tornar seus quadris suficientemente flexi'veis para o samba. De fato, o comenta'rio de Jonatas remeteu-me a uma mesa redonda que assisti ha' anos em Aix-en-Provence sobre fluxos imigrato'rios, na qual Isaac Joseph (citando não lembro mais quem) propôs um elemento fundamental para a ana'lise desses processos: a fadiga do outro. Por outro lado, a poli'tica iluminista de assimilação não pode ser definida de forma uni'voca. Os franceses, penso como Luciano Oliveira, foram diferentes dos britânicos. Estes parece que tenderam a acomodar os diferentes em gavetas separadinhas, sob um controle institucional (disse "parece" porque dos britânicos nada sei) ; os franceses pretenderam suprimir o mais ra'pido possi'vel os diferentes pelas instituições republicanas: duas maneiras diferentes de evitar o inevita'vel - relações de poder e de conflito intercultural, que foram ficando cada vez mais complicados com a crise do trabalho a partir dos anos 1970. O que fazer? Por enquanto, acho que vou tentar fazer um bom couscous marroquino. Abraço.
Puxa, Jonatas, eu sempre pensei que seu programa de metodologia incluia Comte, os positivistas y otras cositas más porque vc era fã deles. Que bom que você me avisou.
Discutir tolerância, pós-modernidade, pela categórica observação de Bauman, em Sociedade individualizada,onde aborda o desafio humano entre ser livre num mundo marcado pelas incertezas e inseguranças é por demais convidativo.
7 comentários:
Não sei, não sei. Ler Bauman sempre me dá a sensação de voltar à escola dominical da Igreja Batista do Cordeiro - pois é, esse quadril flexível, esse jeitinho todo para o samba, de onde vieram? Claro que concordo que tolerância é uma ideia liberal demais, sobretudo por não entender que as diferenças são historicamente construídas e escondem no mais das vezes cumplicidades não assumidas. O liberal tem de "aguentar o fardo" (creio que o sentido etimológico do verbo "tolerar") porque não admite que a produção de sentidos culturais se constitui em relação a (o que evidentemente coloca a questão da generosidade, ou seja, de deixar o estrangeiro gerar algo em você; mas também o do antagonismo). Constituir-se em relação a significa também constituir-se em conflito com. Mas o pensamento iluminista tem uma dificuldade grande de pensar a questão do conflito - precisamente por escamotear suas violências epistemológicas, culturais, políticas. É por não querer enfrentar o conflito e a diferença que atualmente a França e a Suiça tornam-se politicamente violentas: vide a questão das burcase a questão dos minaretes. Concentrar-se apenas no aprendizado intercultural, na generosidade (uma necessidade) é edulcorar a possibilidade da política hoje no ocidente - no que pese Arendt ter terminado sua vida na busca de um fundamento não trágico do político. De qualquer forma, o texto me deu ideia de uma boa discussão para o meu curso na pós esse semestre: Bauman versus Laclau. Jonatas
Mas Jonatas, você já leu Amor Líquido? É de um conservadorismo a toda prova! Não dá para se surpreender muito. Tudo bem que todos esses caras escrevem livros de divulgação que não expressam nenhuma complexidade, mesmo no que diz respeito às suas próprias teorias (vide Giddens e Bourdieu), mas Bauman se superou.
Se você está pensando em introduzir esse debate, sugiro contrastar Laclau com Zizek, por um lado, e com Ricoeur, por outro. O conceito de tolerância deste último me parece muito mais interessante (e não de todo incompatível com a ideia de hegemonia), embora este seja um conceito que me causa um certo incômodo.
Semana passada estive conversando com Frédéric e um amigo dele e argumentei que parte do meu incômodo é que percebo o limite da tolerância como indiferença. Frédéric discorda de mim veementemente e sugeriu que eu pensasse nos termos em inglês ("in-difference, as to live-in-difference"). Sei não.
De qualquer forma, a definição de tolerância de Bauman me parece excessivamente simplista e sua substituição pela noção de solidariedade não resolve o problema.
Cynthia
Depois pego suas referências, mas de partida já lhe explico que não trabalho apenas com autores que admiro. Daí, Bauman. Jonatas
Pois é, pessoal, eu até andei publicando em Poli'tica Democra'tica em 2007, através de meu inesqueci'vel ex-professor Raimundo Santos: é bom vê-la por aqui.
E eu também acho que essa conversa de bom pastor de Bauman não poderia tornar seus quadris suficientemente flexi'veis para o samba. De fato, o comenta'rio de Jonatas remeteu-me a uma mesa redonda que assisti ha' anos em Aix-en-Provence sobre fluxos imigrato'rios, na qual Isaac Joseph (citando não lembro mais quem) propôs um elemento fundamental para a ana'lise desses processos: a fadiga do outro.
Por outro lado, a poli'tica iluminista de assimilação não pode ser definida de forma uni'voca. Os franceses, penso como Luciano Oliveira, foram diferentes dos britânicos. Estes parece que tenderam a acomodar os diferentes em gavetas separadinhas, sob um controle institucional (disse "parece" porque dos britânicos nada sei) ; os franceses pretenderam suprimir o mais ra'pido possi'vel os diferentes pelas instituições republicanas: duas maneiras diferentes de evitar o inevita'vel - relações de poder e de conflito intercultural, que foram ficando cada vez mais complicados com a crise do trabalho a partir dos anos 1970.
O que fazer? Por enquanto, acho que vou tentar fazer um bom couscous marroquino. Abraço.
Puxa, Jonatas, eu sempre pensei que seu programa de metodologia incluia Comte, os positivistas y otras cositas más porque vc era fã deles. Que bom que você me avisou.
Achei muito bom.
Discutir tolerância, pós-modernidade, pela categórica observação de Bauman, em Sociedade individualizada,onde aborda o desafio humano entre ser livre num mundo marcado pelas incertezas e inseguranças é por demais convidativo.
Postar um comentário