"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate":
Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
segunda-feira, 8 de março de 2010
Discutindo "o homem" no dia internacional da mulher
Plágio descarado de idéia retirada do Philosopher's Magazine sobre obra de Roy Lichtenstein
Por Robson Fernando (aluno do Curso de Ciências Sociais da UFPE)
Neste dia que comemora a luta feminista, vale apontar algo que me deixa constrangido, embora eu seja um homem, nesse universo de desigualdades de gênero: a aceitação por parte de tantas pessoas, incluindo muitas mulheres(!), do milenar dogma de que o homem é o centro da humanidade, através do uso, sem questionamentos, da palavra “homem” como sinônimo de “ser humano”.
Afirmam que “homem”, embora defina seres humanos adultos do sexo masculino, tem originalmente o significado de “ser humano”, o qual perduraria até hoje. Não entendem, no entanto, que essa palavra, por ter sido masculinizada ao longo da história, tornou-se enviesada e ambígua demais, logo inadequada, para continuar representando uma entidade de gênero neutro (o ser humano genericamente falando).
É certo que as traduções que equivalem etimologicamente a “homem” originaram-se de fato significando “ser humano” (exemplos: “homo” no latim, “man” no inglês, “mann” no alemão), mas nem sempre significaram “humano adulto do sexo masculino”. Foi na Idade Média, consolidando um processo de centralização sociocultural da imagem da humanidade na figura masculina e consequente desuso dos termos que estritamente significavam “humano adulto do sexo masculino” (como “uir” no latim clássico e “wer” no inglês arcaico; essa palavra não existiu na língua portuguesa), provavelmente acelerado pelo cristianismo de raízes misóginas semitas e gregas, que “homem” passou a significar simultaneamente a humanidade e os seus machos, tornou-se uma palavra dúbia e excelentemente masculina.
A neutralidade original do “homem”, aliás, foi o manto que escondeu na Declaração de Independência dos Estados Unidos e na francesa Declaração Universal dos Direitos do Homem(sic) e do Cidadão que os direitos declarados só começariam a valer para os homens – as mulheres continuariam presas ao lar como servas domésticas, e privadas da maioria dos direitos humanos e políticos.
O mesmo valeu para as escrituras dos mais diversos filósofos dos séculos 18 e 19. Quando falavam “o homem” ou “os homens”, Rousseau, Kant, Comte e muitos outros realmente só estavam falando de homens, embora a palavra “homem” estivesse aparentemente significando a humanidade inteira.
Esse androcentrismo dos pensadores e a consequente continuidade do patriarcalismo ocidental foram muito facilitados pelo fato de que “homem” realmente era/é uma palavra dúbia e tende a masculinizar a humanidade. Imagine se não tivesse havido a tendenciosa unificação etimológica entre a humanidade e os humanos machos – ou teriam que usar “todos os ‘uirs’ têm direitos e são iguais perante a lei” e assumir que eram realmente direitos masculinos, não humanos, ou “todos os ‘seres humanos’ têm direitos e são iguais perante a lei” e obrigatoriamente estender os direitos às mulheres, indo de encontro aos interesses machistas de sua época.
Hoje chamar o indivíduo humano genérico de “homem” continua tendo uma tendência androcêntrica, e desperta uma interessante pergunta: por que nos referimos aos seres humanos e à humanidade como “o homem”, nunca como “a mulher”? Etimologicamente essa questão é muito facilmente respondível, mas, sob a perspectiva da desigualdade de gênero, tem todo um sentido problemático.
Por muito tempo o uso pseudogenérico da referida palavra foi uma legitimação do homem como centro de sua espécie, como ator principal – enquanto a mulher era relegada a uma coadjuvante, o sexo secundário. Atualmente tal simbolização continua ativa, ainda que despercebida e mesmo com as mulheres tendo obtido direitos e possuindo no presente mais dignidade social do que há um século. Pode-se considerá-lo um resquício de patriarcalismo, um dos diversos pontos em que, por escassez de discussão, ainda não avançou a luta feminista. É um ponto em que se admite inconscientemente que ele tem mais poder do que ela, logo merece herdar até mesmo aquele que se constituiu o nome de sua espécie.
Apesar de tudo, mesmo muitas mulheres – incluindo até algumas feministas – continuam usando “homem” num sentido genérico, sem saber que a neutralidade plena e não ambígua desse termo já não existe desde a Idade Média. Nossa educação insiste em não ensinar a história dessa palavra, marcada por um contexto de machismo extremo e opressão contra mulheres – pelo contrário, perpetua esse vício social, até mesmo na universidade de História, Ciências Sociais e Filosofia, cursos que justamente deveriam questionar e repudiar a dubiedade androcêntrica do termo “homem”.
O uso unissex da palavra “homem” é algo que precisa ser pensado e discutido neste e nos próximos Dias Internacionais da Mulher, pois é algo mais problemático do que se supõe. Já depôs e depõe gente como Olympe de Gouges, John Stuart Mill, Casey Miller, Kate Swift e Richard Dawkins, o “homem” é a cabeça do androcentrismo linguístico de grande parte dos idiomas indoeuropeus, e está na hora de se fazer algo direcionado a essa questão, não mais manter a situação como está, com a reiteração linguística da supremacia masculina.
10 comentários:
Cynthia
disse...
Caro Robson,
Depois que assistimos o vídeo da escritora nigeriana Chimamanda Adichie nós, aqui no Cazzo, ficamos tão preocupados com essa coisa de uma única história que eu resolvi contar uma historinha alternativa para essa questão.
A palavra Homem vem de Humanus, que, por sua vez, vem de Manus (mão). O termo Humanus era usado pelos romanos no sentido de “conhecedor” o que, obviamente excluía as mulheres. Mas não pense que era por maldade. A origem dessa história está, como quase sempre, na Grécia. Foi mais ou menos assim:
Prometeu e seu irmão Epimeteu, ambos titãs, foram encarregados de criar os animais e os seres humanos, atribuindo uma característica a cada um. Como eles deixaram o homem por último, e não restava mais nenhuma qualidade legalzinha, Prometeu resolveu roubar o fogo e dar de presente a eles. Como você deve ter aprendido nas aulas de Jonatas, ao conhecimento que visa ao controle da natureza por meio de instrumentos etc. dá-se o nome de técnica. Pois bem: quando roubou o fogo que deu de presente ao homem, Prometeu roubou a técnica, o conhecimento, que era privilégio dos Deuses (tá reparando bem a relação entre a mão humana e a capacidade de transformação da natureza por meio da técnica?). O homem, então, passou a se diferenciar dos outros animais pelo conhecimento. Os deuses ficaram enfurecidíssimos e, como castigo, enviaram de presente a Epimeteus a primeira mulher, que se chamava Pandora.
Pandora, como toda mulher, não era propriamente humanus (no sentido romano do termo), não detinha a técnica, o conhecimento. E por mais que tentasse, não conseguia entender Wittgenstein. Mas ela tinha uma caixinha muito especial, cheia de coisas que não existiam no mundo, como a fome, a miséria e toda uma série de hecatombes que nós mulheres temos a capacidade de liberar. Claro que os deuses não eram tão maus assim e deram uma chance aos homens. Antes de oferecer Pandora a Epimeteus eles lhe deram mil conselhos para não abrir aquela caixinha por nada no mundo. Mas, como toda mulher, ela pensou “ah, que mal faz só uma olhadinha” (nós mulheres não somos humanus, mas somos curiosas, o que já é um primeiro passo). Aí deu-se a desgraça que todo mundo já conhece.
Realmente, depois dessa história não dava mesmo para considerar a gente como igual, né? É um tal de caixinha, de maçã, de rebolation- tudo para expulsar os homens do paraíso. Mas tem um porém. No fundo da caixa de Pandora ficou a esperança. E a caixinha ainda tá com a gente!!!!!!
Ah! E antes que você caia na tentação de falar na crueldade dos deuses, lembre-se que o castigo de Epimeteu foi super light, se comparado com Prometeu, que até hoje está acorrentado num rochedo onde os abutres devoram seu fígado.
Ah, isso é influência do baixo-aramaico nas línguas germânicas: eles escrevem humannus com dois enes.
Brincadeira!
(Desculpa, não deu pra perder a piada).
Uai, Robson, a raiz latina é a mesma, não?
Mas olha, eu desconfio que você está se prendendo excessivamente ao significado etimológico dos termos. O mais importante (e aí a referência a Wittgenstein não é pura brincadeira) são as "formas de vida" ou comunidades que atribuem sentido a essas palavras. São essas "histórias" (mitos, lendas, teorias científicas etc) que nos possibilitam perceber o jogo de linguagem mais amplo no qual os termos se inserem.
Aliás, por essa razão o politicamente correto é uma faca de dois gumes: se, por um lado, pode chamar atenção para determinados fenômenos, por outro, pode levar à crença de que substituir um nome por outro resolve os problemas. E o significado não se resume a isso.
Mas obrigada pelo texto. Ficou muito legal.
Quanto aos comentários no Acerto de Contas, blog é isso mesmo. Vai ver os comentadores não gostaram porque descobriram o verdadeiro significado do feminismo: "um movimento político que encoraja as mulheres a largarem seus maridos, matar suas crianças, praticar bruxaria, destruir o capitalismo e tornarem-se lésbicas" (Pat Robertson).
Cynthia, eu tava me lembrando aqui, e parece que homo, que deu origem às palavras latinas "homem", "hombre", "homme", "uomo" etc. veio de "humus". O "homo" seria algo como "o ser que habita a terra".
Curioso é observar que para traduzir a idéia de homem, o latim se serve da palavra uir e homō. Homō tem um campo semântico mais abrangente do que uir. Homō pode incluir a femina “mulher”. É uma palavra que tem a mesma origem de humus terra. Ao pé da letra, portanto, homō é o terrestre, o que habita a terra. Na evolução para o português, deixou-se de aproveitar o termo uir.
É isso mesmo, Robson, você tem razão. Veja como são as coisas e como nós mulheres somos sofredoras:
Estávamos eu e a professora Tâmara de Oliveira (lembra disso, Tâmara?) em companhia de um professor heideggeriano que nos veio com essa história da relação entre manus e humanus. Como sou uma pessoa crédula e ingênua- além de morrer de medo dos heideggerianos- acreditei piamente.
Pois não é que Jonatas - que apesar de homem e heideggeriano é uma pessoa muito confiável - me liga hoje à noite para me perguntar a origem dessa relação? E acabou me dizendo a mesma coisa que você.
Mas a história de Pandora é absolutamente verdadeira (e a relação entre humanismo e conhecimento dos romanos também)! Verdade alética, conforme Heidegger! Pergunta pra Jonatas que ele te explica direitinho.
hehehehehe, você tem medo de heideggerianos... (e eu, em minha "noobice" intelectual, mal sei quem é Heidegger)
Sobre Pandora, eu conheço o mito sobre ela.
Aliás, vou mandar pra você o artigo que fiz sobre a palavra "homem", aquele que mandei pro prêmio de igualdade de gênero do CNPQ e pro Naíde Teodósio. Não está um artigo perfeito -- e sinceramente duvido que ganhe um dos dois prêmios --, mas é o primeiro esforço meu em descrever a história dessa palavra que tantos interesses patriarcais atendeu.
Cynthia, Como ando muito ocupada esta semana, não tinha lido seu comenta'rio onde pergunta se eu lembro da histo'ria com o professor heideggeriano. Eu também acreditei piamente! Bom confirmar que também é possivel construir uma tipologia de heideggerianos - ja' andava desconfiada disso. Não precisamos então ter medo de todos eles. E viva a curiosidade de Pandora. Beijão.
10 comentários:
Caro Robson,
Depois que assistimos o vídeo da escritora nigeriana Chimamanda Adichie nós, aqui no Cazzo, ficamos tão preocupados com essa coisa de uma única história que eu resolvi contar uma historinha alternativa para essa questão.
A palavra Homem vem de Humanus, que, por sua vez, vem de Manus (mão). O termo Humanus era usado pelos romanos no sentido de “conhecedor” o que, obviamente excluía as mulheres. Mas não pense que era por maldade. A origem dessa história está, como quase sempre, na Grécia. Foi mais ou menos assim:
Prometeu e seu irmão Epimeteu, ambos titãs, foram encarregados de criar os animais e os seres humanos, atribuindo uma característica a cada um. Como eles deixaram o homem por último, e não restava mais nenhuma qualidade legalzinha, Prometeu resolveu roubar o fogo e dar de presente a eles. Como você deve ter aprendido nas aulas de Jonatas, ao conhecimento que visa ao controle da natureza por meio de instrumentos etc. dá-se o nome de técnica. Pois bem: quando roubou o fogo que deu de presente ao homem, Prometeu roubou a técnica, o conhecimento, que era privilégio dos Deuses (tá reparando bem a relação entre a mão humana e a capacidade de transformação da natureza por meio da técnica?). O homem, então, passou a se diferenciar dos outros animais pelo conhecimento. Os deuses ficaram enfurecidíssimos e, como castigo, enviaram de presente a Epimeteus a primeira mulher, que se chamava Pandora.
Pandora, como toda mulher, não era propriamente humanus (no sentido romano do termo), não detinha a técnica, o conhecimento. E por mais que tentasse, não conseguia entender Wittgenstein. Mas ela tinha uma caixinha muito especial, cheia de coisas que não existiam no mundo, como a fome, a miséria e toda uma série de hecatombes que nós mulheres temos a capacidade de liberar. Claro que os deuses não eram tão maus assim e deram uma chance aos homens. Antes de oferecer Pandora a Epimeteus eles lhe deram mil conselhos para não abrir aquela caixinha por nada no mundo. Mas, como toda mulher, ela pensou “ah, que mal faz só uma olhadinha” (nós mulheres não somos humanus, mas somos curiosas, o que já é um primeiro passo). Aí deu-se a desgraça que todo mundo já conhece.
Realmente, depois dessa história não dava mesmo para considerar a gente como igual, né? É um tal de caixinha, de maçã, de rebolation- tudo para expulsar os homens do paraíso. Mas tem um porém. No fundo da caixa de Pandora ficou a esperança. E a caixinha ainda tá com a gente!!!!!!
Ah! E antes que você caia na tentação de falar na crueldade dos deuses, lembre-se que o castigo de Epimeteu foi super light, se comparado com Prometeu, que até hoje está acorrentado num rochedo onde os abutres devoram seu fígado.
Cynthia, e no caso dos idiomas de origem nórdico-germânica, que utilizam "man", "mann" etc. com o mesmíssimo androcentrismo?
O pessoal que lê o blog Acerto de Contas não pareceu curtir muito o texto..
http://acertodecontas.blog.br/artigos/discutindo-o-homem-no-dia-internacional-da-mulher/
Dê uma comentadinha lá, se você for de visitar outros blogs.
Abs
Ah, isso é influência do baixo-aramaico nas línguas germânicas: eles escrevem humannus com dois enes.
Brincadeira!
(Desculpa, não deu pra perder a piada).
Uai, Robson, a raiz latina é a mesma, não?
Mas olha, eu desconfio que você está se prendendo excessivamente ao significado etimológico dos termos. O mais importante (e aí a referência a Wittgenstein não é pura brincadeira) são as "formas de vida" ou comunidades que atribuem sentido a essas palavras. São essas "histórias" (mitos, lendas, teorias científicas etc) que nos possibilitam perceber o jogo de linguagem mais amplo no qual os termos se inserem.
Aliás, por essa razão o politicamente correto é uma faca de dois gumes: se, por um lado, pode chamar atenção para determinados fenômenos, por outro, pode levar à crença de que substituir um nome por outro resolve os problemas. E o significado não se resume a isso.
Mas obrigada pelo texto. Ficou muito legal.
Quanto aos comentários no Acerto de Contas, blog é isso mesmo. Vai ver os comentadores não gostaram porque descobriram o verdadeiro significado do feminismo: "um movimento político que encoraja as mulheres a largarem seus maridos, matar suas crianças, praticar bruxaria, destruir o capitalismo e tornarem-se lésbicas" (Pat Robertson).
Cynthia, eu tava me lembrando aqui, e parece que homo, que deu origem às palavras latinas "homem", "hombre", "homme", "uomo" etc. veio de "humus". O "homo" seria algo como "o ser que habita a terra".
Rosário, em http://www.filologia.org.br/revista/artigo/9%2825%2902.htm, diz que:
Curioso é observar que para traduzir a idéia de homem, o latim se serve da palavra uir e homō. Homō tem um campo semântico mais abrangente do que uir. Homō pode incluir a femina “mulher”. É uma palavra que tem a mesma origem de humus terra. Ao pé da letra, portanto, homō é o terrestre, o que habita a terra. Na evolução para o português, deixou-se de aproveitar o termo uir.
Sobre a citação de Pat Robertson, eu ri aqui. hehehehehe
E obrigado por ter apreciado o texto.
É isso mesmo, Robson, você tem razão. Veja como são as coisas e como nós mulheres somos sofredoras:
Estávamos eu e a professora Tâmara de Oliveira (lembra disso, Tâmara?) em companhia de um professor heideggeriano que nos veio com essa história da relação entre manus e humanus. Como sou uma pessoa crédula e ingênua- além de morrer de medo dos heideggerianos- acreditei piamente.
Pois não é que Jonatas - que apesar de homem e heideggeriano é uma pessoa muito confiável - me liga hoje à noite para me perguntar a origem dessa relação? E acabou me dizendo a mesma coisa que você.
Mas a história de Pandora é absolutamente verdadeira (e a relação entre humanismo e conhecimento dos romanos também)! Verdade alética, conforme Heidegger! Pergunta pra Jonatas que ele te explica direitinho.
hehehehehe, você tem medo de heideggerianos... (e eu, em minha "noobice" intelectual, mal sei quem é Heidegger)
Sobre Pandora, eu conheço o mito sobre ela.
Aliás, vou mandar pra você o artigo que fiz sobre a palavra "homem", aquele que mandei pro prêmio de igualdade de gênero do CNPQ e pro Naíde Teodósio. Não está um artigo perfeito -- e sinceramente duvido que ganhe um dos dois prêmios --, mas é o primeiro esforço meu em descrever a história dessa palavra que tantos interesses patriarcais atendeu.
Abs
Cynthia,
Como ando muito ocupada esta semana, não tinha lido seu comenta'rio onde pergunta se eu lembro da histo'ria com o professor heideggeriano. Eu também acreditei piamente! Bom confirmar que também é possivel construir uma tipologia de heideggerianos - ja' andava desconfiada disso. Não precisamos então ter medo de todos eles. E viva a curiosidade de Pandora. Beijão.
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