Tâmara de Oliveira
Chegando há pouco na França, meu coração tropical foi perdendo a paciência: como ela é cansativa, essa République, com seus dilemas sobre a identidade nacional e suas inimigas muçulmanas! Desde o final dos anos 1980 que esse país se enrola com o affaire du voile islamique. Segundo mídias, os franceses estariam em plena quarta questão do véu islâmico, estrelada agora pelo niqab ou véu integral, tipo de vestimenta parecido/confundido com a burka afegã, porque em geral deixa os olhos visíveis mas pode ser complementado por um tecido transparente cobrindo também os olhos. Sem falar nos velhos dilemas de integração, agora com os imigrantes de terceira ou quarta geração. Falando em quarta, um antigo partido trotskista recomposto e renomeado como Nouveau Parti Anticapitaliste, ousou colocar uma jovem adepta do véu (não integral) como sua candidata para as próximas eleições regionais. Lendo certos jornais e artigos, vendo programas ou documentários na tv, consultando sites e blogs e, tomando conhecimento das demandas por legislação repressiva e das queixas na justiça contra outros « atentados aos valores de liberdade e laicidade republicanos », dir-se-ia que a França sofre uma invasão de uma espécie de Quarta Internacional Muçulmana… Haja !
Ainda bem que a imaginação sociológica sempre está circulando e pode fazer contraponto à impaciência dos corações – tropicais ou temperados. Imaginação que, no caso, materializou-se a partir de duas fontes : um post do Cazzo com Chimamanda Adichie e uma reportagem do Le Monde Magazine de 30 de janeiro último (realizada por Agnès De Féo). Adichie remeteu-me a um sentido profundo do « perigo muçulmano », qual seja o da articulação entre esses « dilemas de quarta geração » e a história única do olhar colonizador sobre os fluxos migratórios. Agnés De Féo refrescou minha imaginação sobre a importância de uma metodologia que considere os atores sociais em sua atividade de construção social da realidade, trazendo empiricamente a pluralidade das histórias contra a única história de que fala Adichie.
No caso em questão, a única história, a dos republicanos universalistas, convergindo orientações políticas diversas e confortando o senso comum em torno da defesa da liberdade das mulheres como valor inalienável da République e da inadequação entre o véu integral e esse valor, aparece imediatamente contraposta a uma outra única história : a do universalismo dominador da França, impermeável à diversidade cultural real do país, estigmatizando a parte muçulmana de si própria e, por isso mesmo, incapaz de lidar com a expressão de uma religiosidade vinda das ex-colônias – eis a história dos mais ou menos multiculturalistas. Os defensores da primeira única história demandam uma lei que proíba o uso do véu integral nos serviços públicos (inclusive nos transportes), sendo capitaneados por uma Missão Parlamentar cujo relatório em favor de uma lei interditiva foi tornado público em 26 de janeiro de 2010. Já os defensores da segunda única história são contra uma lei desse calibre, argumentando sobre a insensatez de se legislar sobre um fenômeno marginal (mesmo as estimativas governamentais falam em menos de 2000 pessoas sobre uma população em torno de 65.000.000 de habitantes) e, principalmente, sobre o acréscimo de estigmatização que ela trará à população francesa muçulmana.
Seria então algo como « dois em um » ou « pague uma e leve duas», a história inacabada da descolonização à francesa, aquela que você paga de qualquer maneira, escolhendo uma ou outra de suas versões. História em que o princípio da análise e da avaliação é o da separação entre “franceses de origem” e “franceses saídos da imigração », cuja afinidade com a sistêmica e dicotômica distinção tradição/modernidade é considerável. Enquanto os inimigos da burka constatam a separação para julgar que o melhor é reprimir as « tradições imigrantes », seus adversários constatam a mesma separação para julgar entretanto que o melhor é reeducar/integrar os tradicionais, trazê-los à modernidade por esclarecimento e não por repressão. As mulheres veladas são assim unilateramente abordadas e avaliadas exclusivamente como portadoras, coagidas por homens muçulmanos, de uma tradição religiosa estrangeira e obscurantista.
Daí a importância de reportagens como a de Agnès De Féo (2010) que, vivendo dois meses em espaços parisienses de moradia dessas mulheres, quis descrever a diversidade das experiências e discursos sobre o nikab/burka por seus sujeitos concretos : as muçulmanas integralmente cobertas. De Féo diferenciou suas entrevistadas em três tipos etários : as jovens entre 19/24 anos, para quem o uso do niqab é a expressão de sua condição de futuras boas-esposas e de seu zelo religioso, mas que têm o cuidado de só usá-lo em ambientes muçulmanos ; as de 30/40 anos – que usam o niqab como meio para se lavar de um passado julgado feio para a moralidade muçulmana ; as que têm mais de cinquenta anos, viúvas ou divorciadas – que resolveram se consagrar à vida religiosa. Dois componentes as unificariam : a) elas seguem os princípios de dois movimentos muçulmanos fundamentalistas que preconizam uma vida regrada estritamente sobre o exemplo suposto do Profeta, suas esposas e seus companheiros, ou seja, voluntária e vestuariamente distinta dos outros ; b) elas vivem sob um princípio de « obssessiva » (De Féo, p. 20) separação entre os sexos, acedendo ao espaço público, reservado aos homens, exatamente quando usam o niqab,.
Descritas assim, penso que as diferenças propriamente sociológicas entre os três tipos etários dessas mulheres ficam no ar, enquanto a visibilidade do que é comum pode ser facilmente interpretada como demonstração do caráter unilateralmente tradicional de sua conduta, remetendo-nos novamente à única história dicotômica : todas articulam o uso do niqab à religiosidade/moralidade sexista desses movimentos fundamentalistas ; todas têm seu acesso ao espaço público condicionado a uma vestimenta criando uma barreira comunicativa entre elas e todos os que não são muçulmanos fundamentalistas. Considero que isso se deve ao fato de que De Féo não realizou uma metodologia tipológico-compreensiva para a sua reportagem ; sua démarche parece muito mais com o que Dominique Schnapper (1999) chamaria de procedimento classificatório, onde as práticas e representações sociais são distribuídas segundo critérios exteriores aos sentidos da ação dos atores e ao seu contexto social amplo – no caso, a simples diferença etária, sem nenhuma relação entre diferentes faixas de idade e evolução recente da sociedade francesa. Por exemplo, a particularidade das jovens de 19/24 anos que põem ou tiram o niqab segundo estejam ou não em ambientes muçulmanos, poderia ser reconstruída sociologicamente se a coleta e a análise dos dados tivessem sido efetuadas através da atenção metodológica às justificativas dessas entrevistadas sobre sua particularidade, bem como à relação entre tais justificativas e a dinâmica sócio-histórica da imigração francesa, desde os anos 1950 até agora. Dinâmica esta que poderia trazer luz sociológica às diferentes formas de praticar/justificar o uso do niqab segundo gerações diferentes de mulheres.
Felizmente, enquanto titular de um mestrado e doutoranda em sociologia, a jornalista De Féo soube aproveitar sua experiência de pesquisadora que usa procedimentos etnográficos, trazendo componentes das práticas/representações cotidianamente observadas que falam muito mais sociologicamente do que sua classificação etária. Eu diria que há duas ordens de componentes diferentes, uma articulada por De Féo ao que chamo aqui de « ordem social interna » dos movimentos muçulmanos fundamentalistas, onde o niqab parece praticado/representado como expressão de status social (mulheres cobertas não precisam trabalhar), controle da sexualidade dos maridos (todas cobertas = tentações extra-conjugais suspensas) e/ou sensação de potência diante dos homens (uso do niqab = poder de observar sem ser observada + estímulo de fantasias masculinas, numa ordem social onde a visibilidade do corpo feminino é sistematicamente negada). Esses componentes já revelam que os sentidos do uso do niqab são sociologicamente bem mais complexos do que o de uma simples coerção masculina tradicional.
Prefiro entretanto exercitar a imaginação sociológica sobre a segunda ordem de componentes que a jornalista apresenta sem analisar/interpretar, pois que eles podem ser articulados ao contexto amplo da França contemporânea, ou seja, ao fato de que essas mulheres são integrantes de uma sociedade que, ao mesmo tempo, não cicatrizou suas feridadas da colonização e participa de tendências sócio-políticas visíveis nesse nosso mundo globalizado. Trata-se de representações justificativas visivelmente orientadas para o conjunto da sociedade francesa, cujos conteúdos principais são : preocupação em se distinguir do terrorismo dos movimentos muçulmanos integristas ; afirmação da convergência entre o uso do niqab e posições feministas (pois é…) ; crítica do projeto de interdição legal do niqab, sob argumentos do Estado de direito. Tais conteúdos merecem ser citados (extraídos da reportagem de De Féo e traduzidos por mim) :
«As pessoas nos associam aos terroristas mas isso é completamente falso. É exatamente porque nós tememos Alá que nós não devemos fazer mal ao nosso próximo. (…) Eu compartilho todos os seus combates [das feministas]. Eu recuso obedecer ao que os homens nos impõem. Eu não sou um vulgar pedaço de carne na prateleira, mas uma mulher. As mulheres não são objetos no islam, elas têm direito ao respeito. É esse respeito que eu encontro no niqab.» (Oum Alkheiyr, quinquagenária).
E ainda :
« (…)Na França existem estruturas suficientes para que uma mulher possa se defender. Se meu marido ou meu pai tivessem me forçado, eu teria ido a uma delegacia ou em associações. Neste país, a gente é livre ! (…) No início eu não pensava que fosse ter problemas com a sociedade. Eu via a França como um país de liberdade, onde cada um é indiferente aos outros e pode se vestir como lhe apraz » (Oum Aldina, trintenária)
Por causa dessa articulação problemática mas significativa entre uso do niqab, feminismo e Estado de direito, penso que analisar o véu integral muçulmano pede que abandonemos uma abordagem sob aquela única história dicotômica de « mulheres subjulgadas por uma tradição estrangeira ». E, verdade seja dita, para além de De Féo, há vários atores do debate na França que vão além desse «dois em um » – principalmente entre intelectuais para quem o Islam é familiar. Foi então num estudioso da religião islâmica contrário a uma lei repressiva (Abdennour Bidar) que tive o prazer de ver que as « inimigas da République » podem ser vistas como integrantes de uma França contemporânea, para além de uma separação analítica/avaliativa que as classifica a priori numa tradição estrangeira :
« (…)Deste ponto de vista, a burka pediria uma interpretação para além de suas significações habitualmente invocadas, como a expressão de uma dessas rebeliões vestimentárias da individualidade contemporânea que se exprimem contra a espécie de uniformidade e de pura aparência que lhe é colocada! Rebelião que essas mulheres exprimem conscientemente quando reivindicam alto e forte fazer uma escolha contra o ‘sistema ambiente’. E para além disso, rebelião, provavelmente não vivida conscientemente como tal, contra o sofrimento da individualidade contemporânea, a quem tinha sido prometido um mundo centrado sobre ela e dedicado à sua expressão, mas que se acha frequentemente frustrada nessa promessa de aprofundamento de si e que só encontra, como remédio, esse tipo de recurso à produção de um aparecer público suicidado – tal ‘aparecer’ sendo, no caso, um ‘desaparecer’ porque ele exprime a recusa dessa redução ao aparecer. A identidade completamente escondida atrás da burka é a identidade profunda do eu moderno, tornado não encontrável por trás da profusão de suas imagens e de suas superfícies ostentadas no vazio deixado pela ausência de qualquer grande projeto de existência » (Bidar, Le Monde, 24.01.2010. Tradução pessoal)
Sem abraçar a hipótese demasiadamente ensaística de Bidar (que, aliás, publicou um livro em favor de um « islam existencialista ») , acredito entretanto que pensar o véu integral como fenômeno inscrito no cenário urbano contemporâneo, ao invés de abordá-lo necessariamente como tradição estrangeira a ser suprimida pelos princípios normativos modernos (quer por repressão, quer por esclarecimento), é uma démarche fundamental. Por exemplo : em pesquisa exploratória com adolescentes franceses, tomei conhecimento do uso de turbante muçulmano à moda palestina por rapazes não necessariamente muçulmanos, nem « saídos da imigração », nem defensores da causa palestina, cuja motivação pode ser aproximada a de uma busca de expressividade provocativa contra a uniformidade vestimentária das griffes. Mas embora Bidar construa sua hipótese através da subjetividade dos atores sociais, as práticas destes são aí deduzidas de uma argumentação exclusivamente teórica sobre um projeto moderno falido que teria deixado a individualidade contemporânea em tamanha carência que exprimir-se-ia também na burka. Isso faz-me pensar no que Jonatas disse aqui sobre seus amigos lacanianos que «não sabem o que fazer com a pá com que enterraram a última metanarrativa» : já pensou se eles resolvem jogar a pá e enfiar uma burka?!!
Porque, francamente, o nikab não assusta apenas républicains universalistas e criancinhas desavisadas. Confesso que, pessoalmente, sinto-me bastante incomodada quando cruzo essas mulheres (em geral na Prefeitura de Polícia de Marseille, lutando por um visa, mas às vezes no metrô ou na rua) cobertas dos pés à cabeça, com mãos enluvadas e às vezes com olhos velados. A possibilidade de interação parece absolutamente recusada ! O sentimento ameaçante de ser observada sem poder observar é inevitável ! A tentação de concluir, sobretudo se ao lado está um homem, que uma dominação masculina tradicional é unilateralmente responsável por essa fantasia sinistra, é grande ! Sendo assim, devemos manter a tensa distância entre tomada de posição e olhar sociológico diante desse fenômeno – com diante de todos, aliás. O caráter visivelmente estratégico das representações justificativas que foram aqui citadas, usando calculadamente ideais feministas e do Estado de direito para militar em favor de uma orientação de vida segregada, proíbe que recusemos a essas mulheres, analiticamente, sua condição de atores modernos e globalizados. Um opositor comum do niqab pode sustentar, e sustenta muitas vezes, que o discurso dessas mulheres é perigoso e exprime simplesmente « um consentimento a uma pressão sofrida » ou « uma forma de fascinação, de subjugação » típica dessas conversões sectárias à cultura do harém (Wassyla Tamzali, 2010). Mas um observador sociólogo não deve ter essa facilidade de julgamento, posto que seu primeiro papel é o de analista dessas práticas e representações, bem como da dinâmica entre os atores opostos no debate.
É verdade que devemos também considerar a evolução recente das sociedades, vivendo uma dinâmica que segundo Alain Touraine ( 2005) marca a passagem de questões do « social » para questões do « cultural », mas que eu prefiro, seguindo Robert Castel (2009), pensar como cruzamento de questões (sócio-econômica, étnico-cultural e urbana). Seja como for, essa evolução recente implica que as ciências sociais não podem esquecer que os discursos contra a discriminação de franceses com ascendência nas ex-colônias orientava-se nos anos 1980 por um sentido sócio-econômico e político, mas desde os anos 1990 eles têm sido cada vez mais atravessados por um sentido étnico-religioso.
Mas é verdade também que essas questões cruzadas são tratadas pelo governo francês a partir de uma lógica politicamente securitária e economicamente neoliberal – desde 2002 quando os socialistas perderam as eleições e, diria eu, o juízo. Não são apenas os niqabs das muçulmanas fundamentalistas que sofrem ataques sistemáticos de reformas e projetos de lei, bem como de políticas governamentais de controle repressivo da população. Reforçando instrumentos legais de supressão da liberdade em casos de controle policial e, impondo aos agentes de segurança pública cotas de produtividade (viva a Capes !), o governo francês tem inflacionado de maneira assustadora o chamado « garde à vue » (instrumento do direito penal que permite a guarda de suspeitos durante um mínimo de 24 horas por « necessidade de enquete policial »). Para 2009, estimativas falam em mais ou menos 830.000 « gardes à vue » (Mucchielli, 2010) sobre uma população em torno de 65.000.000 habitantes ! A maioria dessas « gardes à vue » atingem estrangeiros irregulares, mas são crescentes os testemunhos de « franceses de origem » que tiveram sua casa invadida pela polícia em horários típicos de ditaduras militares, foram algemados diante do cônjuge e dos filhos e sofreram humilhações físicas e psicológicas em celas sujas, fedorentas e frias, por causas como : transgressão pedestre no trânsito, seguida do que o policial decidiu interpretar como « desacato à autoridade » ; uso (sem tráfico) de droga ilegal ; participação em manifestação reivindicativa, etc. Caso emblemático : um jornalista do Le Monde que, no quadro de um processo aberto por calúnia e difamação contra o presidente da república, sofreu todas essas violências no ano passado.
A midiatização dos projetos e políticas de controle repressivo da população em geral, é menor e menos espetacular do que aquela referente aos véus muçulmanos. Fica aqui a pergunta : poderíamos levantar a hipótese de que a hiper-midiatização da provável interdição dos niqabs e outras burquas é um bom véu para encobrir a crescente repressão policial dos cidadãos franceses como um todo ? Afinal de contas, pretende-se proibir o véu integral em nome da liberdade (das mulheres) e contra o obscurantismo de movimentos religiosos fundamentalistas típicos de « tradições estrangeiras ». Pretensão que, confortando franceses dos mais diferentes matizes ideológicos, pode distraí-los do fato de que todos, e não apenas as populações « saídas da imigração », são objeto da vontade securitária dos governos franceses recentes. Lembrando do que disse Luciano Oliveira sobre a especificidade da violência estatal no Brasil da ditadura militar, na França atual os historicamente não-torturáveis ou seja, os « franceses de origem », também parecem ameaçados…Será que estudos feministas e leituras críticas do conceito foucaultiano de biopoder trariam mais luz sobre essas muçulmanas totalmente cobertas em nome da dignidade das mulheres e sobre esses guardados/humilhados em nome da produtividade do trabalho policial, num contexto neoliberal?
BIBLIOGRAFIA
BIDAR, Abdennour. La burqa, symptôme d’un malaise. Le Monde, Paris, 24.01.2010.
CASTEL, R. La montée des incertitudes – travail, protections, statut de l’individu. Paris, Éditions du seuil, 2009.
DE FÉO, A. Derrière le voile. In : Le monde magazine – Niqab un autre regard. Paris, Suplément au Monde du samedi 30 janvier 2010. pp. 16-21.
MUCCHIELLI, L. Comprendre l’explosion des gardes à vue. In : www.laurent-mucchielli.org Publicado em 18.02.2010.
SCHNAPPER, D. La compréhension sociologique – démarche de l’analyse typologique. Paris : PUF, 1999.
TAMZALI, W. Porter le niqab, c’est aberrant. In : Le monde magazine – Niqab un autre regard. Paris, Suplément au Monde du samedi 30 janvier 2010. p. 19.
TOURAINE, A. Un nouveau paradigme – pour comprendre le monde aujourd’hui. Paris : Fayard, 2005.
9 comentários:
Que horror, escrevi um comentário enorme e ele simplesmente sumiu! Depois eu volto, que estou atrasada. Mas obrigada pelo post, Tâmara. Muito instigante.
Estou aguardando então, Cynthia, a reescritura de seu comenta'rio enorme. Modéstia de banda, eu não esperava menos: quando percebi que os niqabs das francesas davam-me coceira para escrever qualquer coisa, percebi logo depois que seus posts de estudos feministas e sua defesa do realismo cri'tico eram minha outra fonte de coceira. Como não sou "branchée" em questões e estudos feministas, meu texto fez-se como provocação (no bom sentido, claro) a um dos temas recorrentes do Cazzo. Abraço grande.
Tâmara,
Por mais que eu tente, não consigo perceber isso que você chama de segunda única história como uma história única, no sentido atribuído pela Chimamanda Adichie. A menos que tenha entendido errado, a ideia segundo a qual o Estado não deve regulamentar determinadas questões me parece o próprio cerne do pluralismo. O princípio de laicidade do Estado não pode impedir a manifestação de credo religioso por parte do indivíduo. Para dar um exemplo bastante prosaico: acho que pouco importa se o atual reitor da UFPE, católico praticante confesso, quiser andar com um crucifixo pendurado no pescoço ou carregar uma cruz inteira pelos corredores da reitoria. Ainda que ele esteja representando um cargo, creio ser seu direito manifestar sua fé. Mas a imagem do Cristo esquálido que ele insiste em manter no auditório da reitoria são outros quinhentos, pois ali, ao contrario de seu corpo, não há espaço privado. A laicidade do Estado visa justamente garantir a pluralidade de perspectivas, e se essa pluralidade não pode ser manifestada pelos indivíduos na esfera pública, onde mais ela se manifestaria? No espaço puramente privado? Que diabo de liberdade seria essa? Que o reitor tenha o direito de carregar sua cruz e, as funcionárias públicas e parlamentares francesas, sua burqua preta de telinha, se assim o desejarem. Só isso garante histórias múltiplas.
(continua)
Saindo da esfera do Estado e entrando na sociedade civil, aí eu acho que a coisa se complica um pouco mais. De um ponto de vista histórico, todos conhecemos a relação entre o uso do véu e o controle do corpo feminino. Desta perspectiva (ou seja, das relações de gênero), não dá para não pensar nisso como violência simbólica pura e simples – aquela à qual nos submetemos docilmente porque introjetamos os valores que a sustentam. Mas, como você aponta em seu texto, existem múltiplos significados associados ao uso do véu: ele não diz respeito apenas às relações de gênero, mas também a relações entre grupos social e culturalmente distintos, marcados por distinções hierárquicas (coloniais). É neste sentido que o uso do véu pode assumir um significado inteiramente diferente, representando uma forma de resistência às potências coloniais. Pessoalmente, acho que as mulheres muçulmanas poderiam manifestar essa resistência de outra forma, dadas as implicações do uso do véu nas relações de gênero, mas talvez isso não esteja entre aquilo que Margaret Archer define como “suas preocupações últimas”. E, honestamente, acho isso perfeitamente compreensível quando se está no lugar do estrangeiro, especialmente no caso dos grupos muçulmanos minoritários.
Quanto ao feminismo, acho que esse é o único ponto em que vejo em seu discurso a famosa história única. O feminismo não é algo homogêneo, mas tem posições extremamente diversificadas, inclusive sobre temas como prostituição, pornografia e, claro, o uso do véu – aliás, a fala da “quinquagenária” é ótima!!! Sob o risco de ser apedrejada, acho que ela é uma típica representante do feminismo de terceira onda. Da perspectiva teórica que defendo, que não sei bem qual é, mas definitivamente não tem nada a ver com terceira onda ou com pós-qualquer-coisa, isso que algumas chamam de poder (sensação de potência diante dos homens: “uso do niqab = poder de observar sem ser observada + estímulo de fantasias masculinas, numa ordem social onde a visibilidade do corpo feminino é sistematicamente negada”) seria apenas uma manifestação do poder dos oprimidos. Uma forma de resistência possível, para usar uma linguagem mais sociológica. Em termos mais mundanos, algo como: “já que eu tenho que usar essa porcaria, que pelo menos eu possa tirar algum proveito disso”! Como diria um amigo meu, “tirante” a confecção do relatório da Capes, tudo tem um ganho secundário, não é mesmo?
Mas numa coisa eu concordo com você em gênero, número e grau: aquelas burquas pretas de telinha me pareciam super sinistras. Morria de medo quando encontrava uma mulher vestida assim no meio da rua.
Beijos,
Cynthia
PS. Vou usar seu texto nas minhas aulas sobre cultura para a graduação. Vai ser ótimo contrastá-lo com algo que uso sobre mutilação genital feminina. Muito bom mesmo.
Tâmara, uma perguntinha pra você: existe mesmo uma tensão entre sua análise sociológica e sua tomada de posição pessoal?
Cynthia
Cynthia,
Bem feito pra mim, né?. Quem manda pedir comenta'rio...Mas ja' valeu a pena; fico felici'ssima que você use meu texto em aula, que o ponha em questão, etc.
Tentando uns esboços de respostas - pelo menos sobre os pontos centrais de sua cri'tica:
a)segunda outra histo'ria: foi muito mais tentativa de ser estilosa do que argumento desenvolvido; você foi o'tima em chamar a atenção. Mas eu estava pensando em uma caracteri'stica do debate na França: no fato de que uma parte dos que são contra à interdição fazem-no dentro de um mesmo horizonte reflexivo,o da separação "franceses de origem"/"franceses sai'dos da imigração". Esses não me enganam, porque eu experimento cotidianamente sua representação sagrada da République; o que eles pensam é no esclarecimento universalista e não no pluralismo (por educação,as ex-colonizadas burkalizadas vão abandonar esse tradicionalismo). Ou seja, eles não conseguem ver outras dimensões da burka para além das relações de gênero; sendo assim essas mulheres são abordadas como vi'timas de violência simbo'lica pura e simples - que a République vai suprimir com suas imbati'veis instituições do esclarecimento.
b)histo'ria u'nica do feminismo: você tem razão quanto ao meu texto, eu desconheço a multiplicidade do feminismo. Tendo a considerar também "o poder dos oprimidos", mas minha perspectiva talvez corra ainda mais risco de ser apedrejada: não penso apenas em compensações das mulheres, mas em participação a uma orientação social de vida onde mulheres e homens são chamados à submissão à vontade de Ala'. Ontem cruzei com um homem desses movimentos e dei-me conta de que a indumenta'ria deles não é muito menos assustadora do que a delas: eles mostram pelos (cabelos grandes; barba começando quase nos olhos),o que resta desses olhos rodeados de pelos e mãos; a cor da roupa (chamada "kamis")costuma ser menos sombria do que a das mulheres, em geral é branca. No mais, a expressão de um corpo sem visibilidade/controlado e a sensação de uma recusa de interação com "o outro" que a indumenta'ria provoca, estão la', sobre os homens também. Mas ninguém na França teve a idéia de proibir o tal "kamis" em nome da liberdade masculina, porque todos estão convictos de que eles escolhem seu caminho enquanto as mulheres são simplesmente obrigadas...Vou dizer talvez uma grande besteira: isso provoca sempre, em mim, a sensação de que se pensa que as mulheres são essencialmente não-pensantes.
c) minha tensão pessoal ana'lise/tomada de posição: menina! Tem sim! Sou claramente contra a interdição do niqab, mas minha posição tem mais a ver com minha relação politica com a descolonização à francesa (raiva mesmo do republicanismo bem-pensante, de sua ignorância arrogante diante da religião que, mesmo à esquerda feminista, às vezes trata a moça do véu do Nouveau Parti Anticapitaliste como se ela fosse um agente essencial da opressão feminina), do que do quase nada que sei sociologicamente dos movimentos muçulmanos fundamentalistas. A sensação de interação recusada com "o outro" que elas (e eles também)provocam-me, seria um entrave sério se eu decidisse estuda'-los empiricamente.
Minhas respostas são muito provavelmente insuficientes, mas a verdade é que escrever sobre isso, mesmo sem competência teo'rica e empi'rica, foi uma dessas motivações imperiosas que os temas polêmicos num espaço pu'blico geram e que a abertura criativa do Cazzo permite. Obrigada também, mais uma vez. Abração, Tâmara
Tâmara,
Como diria Jack (o estripador), vamos por partes:
Eu continuo achando que a modernidade é um projeto inacabado, e não falido. Assim como os Iluministas, não vejo alternativa para a razão e para o esclarecimento, embora a vantagem da perspectiva histórica me obrigue a perceber que a razão é bem menos razoável do que eles supunham e que está aí para o bem e para o mal. Será que é absurdo pensar que a consciência de um tipo de opressão não pode levar ao estabelecimento de formas alternativas de luta contra outras formas de opressão? Por que a luta anticolonialista ou antirracista deveria ocorrer apenas sob a condição de se manter outras formas de opressão, como a de gênero? Será que essas coisas não se reforçam mutuamente?
Talvez a questão que lhe incomode seja o que Luciano Oliveira certa vez me definiu como a obsessão do republicanismo francês com a integração – coisa que, na opinião dele, os ingleses, por ex., não teriam. (Confesso que o argumento me deixou com a pulga atrás da orelha, afinal de contas, Tocqueville identifica nos puritanos ingleses o senso de comunidade que dá origem à democracia na América – mas isso é outra coisa). Seria mais ou menos como a política de integração assimilacionista da FUNAI até recentemente no Brasil – nenhuma possibilidade de pluralismo. Mas não foi justamente a possibilidade de (auto) critica constante da razão que possibilitou a percepção da arrogância dessa postura? Sei lá.
No que diz respeito às relações de gênero, eu concordo com você: esse discurso de vitimização das mulheres é muito complicado e os homens também sofrem bastante com a forma como essas relações são estruturadas. Ainda essa semana estava conversando com dois amigos que me contavam sobre suas experiências de abuso sexual na infância e na adolescência (um deles era Francês e contou como foi expulso de um taxi de forma violenta porque se negou a prestar favores sexuais ao motorista e, quando criança, foi abusado por uma mulher mais velha). Embora já tenha ouvido isso de outros amigos, inclusive casos de estupro por outros homens, fiquei surpresa ao vê-los listar os casos conhecidos. Por outro lado, já ouvi um amigo (brasileiro) contar como chorou de desespero, aos cinco anos de idade, ao ver sua mãe expulsar a babá que o deitava sobre seu (o dela) corpo nu e masturbava-o até que ele dormisse. Até hoje ele lamenta o fato – que, aliás, já foi descrito em Casa Grande e Senzala com a nostalgia característica de Gilberto Freyre pelo patriarcado rural (agora, definitivamente, vou ser apedrejada). Fosse uma menina, a violência seria não apenas mais visível, mas caracterizada como tal.
Perversões à parte, acho que isso ilustra bem a dificuldade de perceber como os homens também estão sujeitos a determinados tipos de violência (sem falar em outros probleminhas masculinos bastante desagradáveis) porque o que está em jogo são relações desiguais de poder, e não uma espécie de essencialismo sexual qualquer. E embora seja inegável que, historicamente, a estrutura patriarcal tem oferecido uma vantagem relativa aos homens em detrimento das mulheres, essa desgraça acaba sendo ruim para todo mundo.
Quanto à experiência com o Outro, depois eu conto minha experiência com um iraniano hiper-cafa que também me causou uma certa dificuldade de empatia com os padrões culturais do Islã (e com ele, obviamente). Realmente - você tem razão - existe uma tensão entre nossos valores pessoais e nossa análise sociológica: esse cara acabou por impedir, pelo menos por um tempo, qualquer interesse sociológico pela cultura dele, qualquer “abertura para o Outro”, no sentido de Lévi-Strauss...
Bjs,
Cynthia
Tâmara, mulher, você se deu conta de que, de acordo com a definição de Bauman, nós sofremos de mixofobia?
C.
Devemos então sofrer de mixofobia. Mas o remédio dele parece fraquinho...Pra dizer a verdade, eu também vejo (ou quero?) a modernidade como projeto inacabado. E ja' que sou mixo'foba, por que não confessar: no fundo no fundo sou uma iluminista selvagem.
Gostei que sua pulga atra's da orelha sobre o argumento de Luciano seja fundamentado no que Tocqueville disse sobre o senso britânico de comunidade: meu comenta'rio a Bauman tenta colocar isso: concordo com Luciano que eles não parecem obsecados com a integração como os franceses, mas é talvez porque a sai'da assimilacionista britânica foi a de organizar os diferentes em gavetas comunita'rias bem separadinhas.
Ah! Também achei muito lindinha a imagem que Jonatas escolheu para meu texto. Mas você esteve à altura com o vi'deo. E se encontrar com meu amigo Eduardo Rabenhorst no semina'rio, diga que mando um beijo pra ele. Abração.
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