quinta-feira, 4 de março de 2010

Véus muçulmanos na França e olhar sociológico : bom caso da tensão entre análise sociológica e tomada de posição



Tâmara de Oliveira

Chegando há pouco na França, meu coração tropical foi perdendo a paciência: como ela é cansativa, essa République, com seus dilemas sobre a identidade nacional e suas inimigas muçulmanas! Desde o final dos anos 1980 que esse país se enrola com o affaire du voile islamique. Segundo mídias, os franceses estariam em plena quarta questão do véu islâmico, estrelada agora pelo niqab ou véu integral, tipo de vestimenta parecido/confundido com a burka afegã, porque em geral deixa os olhos visíveis mas pode ser complementado por um tecido transparente cobrindo também os olhos. Sem falar nos velhos dilemas de integração, agora com os imigrantes de terceira ou quarta geração. Falando em quarta, um antigo partido trotskista recomposto e renomeado como Nouveau Parti Anticapitaliste, ousou colocar uma jovem adepta do véu (não integral) como sua candidata para as próximas eleições regionais. Lendo certos jornais e artigos, vendo programas ou documentários na tv, consultando sites e blogs e, tomando conhecimento das demandas por legislação repressiva e das queixas na justiça contra outros « atentados aos valores de liberdade e laicidade republicanos », dir-se-ia que a França sofre uma invasão de uma espécie de Quarta Internacional Muçulmana… Haja !


9 comentários:

Cynthia disse...

Que horror, escrevi um comentário enorme e ele simplesmente sumiu! Depois eu volto, que estou atrasada. Mas obrigada pelo post, Tâmara. Muito instigante.

Tâmara disse...

Estou aguardando então, Cynthia, a reescritura de seu comenta'rio enorme. Modéstia de banda, eu não esperava menos: quando percebi que os niqabs das francesas davam-me coceira para escrever qualquer coisa, percebi logo depois que seus posts de estudos feministas e sua defesa do realismo cri'tico eram minha outra fonte de coceira. Como não sou "branchée" em questões e estudos feministas, meu texto fez-se como provocação (no bom sentido, claro) a um dos temas recorrentes do Cazzo. Abraço grande.

Cynthia disse...

Tâmara,

Por mais que eu tente, não consigo perceber isso que você chama de segunda única história como uma história única, no sentido atribuído pela Chimamanda Adichie. A menos que tenha entendido errado, a ideia segundo a qual o Estado não deve regulamentar determinadas questões me parece o próprio cerne do pluralismo. O princípio de laicidade do Estado não pode impedir a manifestação de credo religioso por parte do indivíduo. Para dar um exemplo bastante prosaico: acho que pouco importa se o atual reitor da UFPE, católico praticante confesso, quiser andar com um crucifixo pendurado no pescoço ou carregar uma cruz inteira pelos corredores da reitoria. Ainda que ele esteja representando um cargo, creio ser seu direito manifestar sua fé. Mas a imagem do Cristo esquálido que ele insiste em manter no auditório da reitoria são outros quinhentos, pois ali, ao contrario de seu corpo, não há espaço privado. A laicidade do Estado visa justamente garantir a pluralidade de perspectivas, e se essa pluralidade não pode ser manifestada pelos indivíduos na esfera pública, onde mais ela se manifestaria? No espaço puramente privado? Que diabo de liberdade seria essa? Que o reitor tenha o direito de carregar sua cruz e, as funcionárias públicas e parlamentares francesas, sua burqua preta de telinha, se assim o desejarem. Só isso garante histórias múltiplas.

(continua)

Cynthia disse...

Saindo da esfera do Estado e entrando na sociedade civil, aí eu acho que a coisa se complica um pouco mais. De um ponto de vista histórico, todos conhecemos a relação entre o uso do véu e o controle do corpo feminino. Desta perspectiva (ou seja, das relações de gênero), não dá para não pensar nisso como violência simbólica pura e simples – aquela à qual nos submetemos docilmente porque introjetamos os valores que a sustentam. Mas, como você aponta em seu texto, existem múltiplos significados associados ao uso do véu: ele não diz respeito apenas às relações de gênero, mas também a relações entre grupos social e culturalmente distintos, marcados por distinções hierárquicas (coloniais). É neste sentido que o uso do véu pode assumir um significado inteiramente diferente, representando uma forma de resistência às potências coloniais. Pessoalmente, acho que as mulheres muçulmanas poderiam manifestar essa resistência de outra forma, dadas as implicações do uso do véu nas relações de gênero, mas talvez isso não esteja entre aquilo que Margaret Archer define como “suas preocupações últimas”. E, honestamente, acho isso perfeitamente compreensível quando se está no lugar do estrangeiro, especialmente no caso dos grupos muçulmanos minoritários.

Quanto ao feminismo, acho que esse é o único ponto em que vejo em seu discurso a famosa história única. O feminismo não é algo homogêneo, mas tem posições extremamente diversificadas, inclusive sobre temas como prostituição, pornografia e, claro, o uso do véu – aliás, a fala da “quinquagenária” é ótima!!! Sob o risco de ser apedrejada, acho que ela é uma típica representante do feminismo de terceira onda. Da perspectiva teórica que defendo, que não sei bem qual é, mas definitivamente não tem nada a ver com terceira onda ou com pós-qualquer-coisa, isso que algumas chamam de poder (sensação de potência diante dos homens: “uso do niqab = poder de observar sem ser observada + estímulo de fantasias masculinas, numa ordem social onde a visibilidade do corpo feminino é sistematicamente negada”) seria apenas uma manifestação do poder dos oprimidos. Uma forma de resistência possível, para usar uma linguagem mais sociológica. Em termos mais mundanos, algo como: “já que eu tenho que usar essa porcaria, que pelo menos eu possa tirar algum proveito disso”! Como diria um amigo meu, “tirante” a confecção do relatório da Capes, tudo tem um ganho secundário, não é mesmo?

Mas numa coisa eu concordo com você em gênero, número e grau: aquelas burquas pretas de telinha me pareciam super sinistras. Morria de medo quando encontrava uma mulher vestida assim no meio da rua.

Beijos,

Cynthia

PS. Vou usar seu texto nas minhas aulas sobre cultura para a graduação. Vai ser ótimo contrastá-lo com algo que uso sobre mutilação genital feminina. Muito bom mesmo.

Le Cazzo disse...

Tâmara, uma perguntinha pra você: existe mesmo uma tensão entre sua análise sociológica e sua tomada de posição pessoal?

Cynthia

Anônimo disse...

Cynthia,
Bem feito pra mim, né?. Quem manda pedir comenta'rio...Mas ja' valeu a pena; fico felici'ssima que você use meu texto em aula, que o ponha em questão, etc.
Tentando uns esboços de respostas - pelo menos sobre os pontos centrais de sua cri'tica:
a)segunda outra histo'ria: foi muito mais tentativa de ser estilosa do que argumento desenvolvido; você foi o'tima em chamar a atenção. Mas eu estava pensando em uma caracteri'stica do debate na França: no fato de que uma parte dos que são contra à interdição fazem-no dentro de um mesmo horizonte reflexivo,o da separação "franceses de origem"/"franceses sai'dos da imigração". Esses não me enganam, porque eu experimento cotidianamente sua representação sagrada da République; o que eles pensam é no esclarecimento universalista e não no pluralismo (por educação,as ex-colonizadas burkalizadas vão abandonar esse tradicionalismo). Ou seja, eles não conseguem ver outras dimensões da burka para além das relações de gênero; sendo assim essas mulheres são abordadas como vi'timas de violência simbo'lica pura e simples - que a République vai suprimir com suas imbati'veis instituições do esclarecimento.
b)histo'ria u'nica do feminismo: você tem razão quanto ao meu texto, eu desconheço a multiplicidade do feminismo. Tendo a considerar também "o poder dos oprimidos", mas minha perspectiva talvez corra ainda mais risco de ser apedrejada: não penso apenas em compensações das mulheres, mas em participação a uma orientação social de vida onde mulheres e homens são chamados à submissão à vontade de Ala'. Ontem cruzei com um homem desses movimentos e dei-me conta de que a indumenta'ria deles não é muito menos assustadora do que a delas: eles mostram pelos (cabelos grandes; barba começando quase nos olhos),o que resta desses olhos rodeados de pelos e mãos; a cor da roupa (chamada "kamis")costuma ser menos sombria do que a das mulheres, em geral é branca. No mais, a expressão de um corpo sem visibilidade/controlado e a sensação de uma recusa de interação com "o outro" que a indumenta'ria provoca, estão la', sobre os homens também. Mas ninguém na França teve a idéia de proibir o tal "kamis" em nome da liberdade masculina, porque todos estão convictos de que eles escolhem seu caminho enquanto as mulheres são simplesmente obrigadas...Vou dizer talvez uma grande besteira: isso provoca sempre, em mim, a sensação de que se pensa que as mulheres são essencialmente não-pensantes.
c) minha tensão pessoal ana'lise/tomada de posição: menina! Tem sim! Sou claramente contra a interdição do niqab, mas minha posição tem mais a ver com minha relação politica com a descolonização à francesa (raiva mesmo do republicanismo bem-pensante, de sua ignorância arrogante diante da religião que, mesmo à esquerda feminista, às vezes trata a moça do véu do Nouveau Parti Anticapitaliste como se ela fosse um agente essencial da opressão feminina), do que do quase nada que sei sociologicamente dos movimentos muçulmanos fundamentalistas. A sensação de interação recusada com "o outro" que elas (e eles também)provocam-me, seria um entrave sério se eu decidisse estuda'-los empiricamente.
Minhas respostas são muito provavelmente insuficientes, mas a verdade é que escrever sobre isso, mesmo sem competência teo'rica e empi'rica, foi uma dessas motivações imperiosas que os temas polêmicos num espaço pu'blico geram e que a abertura criativa do Cazzo permite. Obrigada também, mais uma vez. Abração, Tâmara

Le Cazzo disse...

Tâmara,

Como diria Jack (o estripador), vamos por partes:

Eu continuo achando que a modernidade é um projeto inacabado, e não falido. Assim como os Iluministas, não vejo alternativa para a razão e para o esclarecimento, embora a vantagem da perspectiva histórica me obrigue a perceber que a razão é bem menos razoável do que eles supunham e que está aí para o bem e para o mal. Será que é absurdo pensar que a consciência de um tipo de opressão não pode levar ao estabelecimento de formas alternativas de luta contra outras formas de opressão? Por que a luta anticolonialista ou antirracista deveria ocorrer apenas sob a condição de se manter outras formas de opressão, como a de gênero? Será que essas coisas não se reforçam mutuamente?

Talvez a questão que lhe incomode seja o que Luciano Oliveira certa vez me definiu como a obsessão do republicanismo francês com a integração – coisa que, na opinião dele, os ingleses, por ex., não teriam. (Confesso que o argumento me deixou com a pulga atrás da orelha, afinal de contas, Tocqueville identifica nos puritanos ingleses o senso de comunidade que dá origem à democracia na América – mas isso é outra coisa). Seria mais ou menos como a política de integração assimilacionista da FUNAI até recentemente no Brasil – nenhuma possibilidade de pluralismo. Mas não foi justamente a possibilidade de (auto) critica constante da razão que possibilitou a percepção da arrogância dessa postura? Sei lá.

No que diz respeito às relações de gênero, eu concordo com você: esse discurso de vitimização das mulheres é muito complicado e os homens também sofrem bastante com a forma como essas relações são estruturadas. Ainda essa semana estava conversando com dois amigos que me contavam sobre suas experiências de abuso sexual na infância e na adolescência (um deles era Francês e contou como foi expulso de um taxi de forma violenta porque se negou a prestar favores sexuais ao motorista e, quando criança, foi abusado por uma mulher mais velha). Embora já tenha ouvido isso de outros amigos, inclusive casos de estupro por outros homens, fiquei surpresa ao vê-los listar os casos conhecidos. Por outro lado, já ouvi um amigo (brasileiro) contar como chorou de desespero, aos cinco anos de idade, ao ver sua mãe expulsar a babá que o deitava sobre seu (o dela) corpo nu e masturbava-o até que ele dormisse. Até hoje ele lamenta o fato – que, aliás, já foi descrito em Casa Grande e Senzala com a nostalgia característica de Gilberto Freyre pelo patriarcado rural (agora, definitivamente, vou ser apedrejada). Fosse uma menina, a violência seria não apenas mais visível, mas caracterizada como tal.

Perversões à parte, acho que isso ilustra bem a dificuldade de perceber como os homens também estão sujeitos a determinados tipos de violência (sem falar em outros probleminhas masculinos bastante desagradáveis) porque o que está em jogo são relações desiguais de poder, e não uma espécie de essencialismo sexual qualquer. E embora seja inegável que, historicamente, a estrutura patriarcal tem oferecido uma vantagem relativa aos homens em detrimento das mulheres, essa desgraça acaba sendo ruim para todo mundo.

Quanto à experiência com o Outro, depois eu conto minha experiência com um iraniano hiper-cafa que também me causou uma certa dificuldade de empatia com os padrões culturais do Islã (e com ele, obviamente). Realmente - você tem razão - existe uma tensão entre nossos valores pessoais e nossa análise sociológica: esse cara acabou por impedir, pelo menos por um tempo, qualquer interesse sociológico pela cultura dele, qualquer “abertura para o Outro”, no sentido de Lévi-Strauss...

Bjs,
Cynthia

Le Cazzo disse...

Tâmara, mulher, você se deu conta de que, de acordo com a definição de Bauman, nós sofremos de mixofobia?

C.

Tâmara disse...

Devemos então sofrer de mixofobia. Mas o remédio dele parece fraquinho...Pra dizer a verdade, eu também vejo (ou quero?) a modernidade como projeto inacabado. E ja' que sou mixo'foba, por que não confessar: no fundo no fundo sou uma iluminista selvagem.
Gostei que sua pulga atra's da orelha sobre o argumento de Luciano seja fundamentado no que Tocqueville disse sobre o senso britânico de comunidade: meu comenta'rio a Bauman tenta colocar isso: concordo com Luciano que eles não parecem obsecados com a integração como os franceses, mas é talvez porque a sai'da assimilacionista britânica foi a de organizar os diferentes em gavetas comunita'rias bem separadinhas.
Ah! Também achei muito lindinha a imagem que Jonatas escolheu para meu texto. Mas você esteve à altura com o vi'deo. E se encontrar com meu amigo Eduardo Rabenhorst no semina'rio, diga que mando um beijo pra ele. Abração.