Jonatas Ferreira
Repitamos uma vez mais:
sob condições modernas, o mergulho melancólico, o caráter narcisista de sua
sintonia com o mundo, está associado de modo inextricável à elaboração da
subjetividade. Esse mergulho já significa o silenciamento da dimensão social
deste sofrimento em nome da constituição de um núcleo de “segurança ontológica”
a partir do qual o indivíduo poderá sobreviver à “tragégia da vida moderna”,
como diz Simmel, à ameaça de invasão da vida íntima pela aceleração, pelo
excesso de estímulos da vida urbana. A saída psicanalítica se contrapõe a
esse emudecimento de um modo curioso. Ora, se por um lado seu caráter
confessional testemunha um desejo de se opor a tal silenciamento, na medida em
que procura trabalhar uma significação para o sofrimento, por outro lado a
psicanálise toma acriticamente a dinâmica melancólica e subjetivista que o
torna possível entender esse sofrimento como algo privado. O sujeito, bem como o humano, diria
Foucault, são categorias históricas que não devem ser tomadas como algo dado. Há
no discurso psicanalítico, portanto, a esperança de transformar a dor em um
sofrimento significativo, mas, ao mesmo tempo, esse trabalho de significação é
subjetivado e o seu limite é a dor.
Detenhamo-nos aqui por um
instante nesta oposição antes de seguirmos adiante. Ainda que uma diferenciação
entre dor e sofrimento seja em grande medida pedagógica, eu diria que a dor é
sempre algo incomunicável ao outro. Trata-se de algo puramente biológico que
nem sequer podemos recordar propriamente. Tive há muitos anos uma dor
excruciante provocada por um cálculo renal. A adjetivação “excruciante” não me
ajuda, essa dor me é de certa forma estranha fenomenologicamente. Ela se localiza na concretude do corpo e como
tal não pode ser objeto de compartilha, daí a dificuldade de rememorá-la como
tal. A palavra sofrimento, por outro lado, possui uma ressonância claramente social;
ela nos remete a algo, uma imagem que podemos compartilhar. Dolor
etimologicamente nos leva a um beco sem saída. Sofrimento, sofrer, não: sufferrere
significa estar sob o peso de algo (su [sob] ferre [carregar]). Artur esteve
falando sobre isso no seu último post. As formas de sofrimento remetem sempre,
portanto, a uma imagem, a um símbolo que pode ser objeto de compartilha social.
Deste modo, não há como calar o sofrimento sem transformá-lo em dor. Quando falo,
seguindo Artur, que o sofrimento na modernidade tende a se converter em dor, em
algo íntimo e incomunicável, e que a psicanálise atua em relação a esse
processo de modo ambíguo, algo que julgo importante em nosso argumento está
sendo enunciado. Se o sofrimento é tratado como algo privado no contexto
psicanalítico, e, neste sentido, como prenúncio das dores que as terapias
bioquímicas buscarão silenciar, não há dúvida que sua estratégia implica, por
outro lado, num falar o próprio sofrimento e não calar[1].
Creio ser possível
associar a psicanálise, tanto de uma perspectiva histórica quanto
epistemológica, a uma longa tradição que postula a tragédia como verdade humana
fundamental. Já falei neste Cazzo sobre a influência do romantismo no
fortalecimento desta tradição. Do ponto de vista histórico, todos sabemos o
quanto a psicanálise deve a essa tradição e ao seu investimento na tragédia
clássica como possibilidade de oferecer um contraponto aos hiatos produzidos
pela vida moderna e que nos dilaceram: entre objetividade e subjetividade, razão
e sensibilidade, arte e religião, por exemplo. Do ponto de vista epistemológico,
o falar psicanalítico se aproxima do trágico de um modo simples. “A tragédia é
o lugar de um pensar que incomodo, lugar em que o mito que o organiza a polis
é posto sob uma luz na qual fica exposta sua anbiguidade fundamental. Sob essa
luz, percebemos que o mito é um nó que amarra verdades tensas e contraditórias”
(Ferreira e Miranda, 2011, p. 235 e 236). Se o mito é aquilo que funciona
apenas enquanto sua dinâmica permanece emudecida, a tragédia nos proporciona
precisamente uma experiência estética que coloca o mito em uma certa epoché, e, consequentemente, desfaz as pretensões
de naturalização que conferem ao mito um sentido político. “Que
Agamenon, Édipo, Orestes, Antígona possam ser vistos numa perspectiva ambígua
que opõe, por exemplo, a verdade humana e a verdade divina, ethos e daimon,
deveres cívicos e deveres de sangue” (Ibid.) parece ter sido algo insuportável
ao legislador Sólon. Para ele o poder da lei residiria em seu caráter inquestionável,
ou seja, mítico. A tragédia rompe com essa concepção de poder, lei e ordem. Sua
apropriação pelo pensamento romântico e posteriormente pela psicanálise passa
por essa compreensão básica.
Um segundo
elemento constituinte do trágico é o fato de que suas tensões não serem
propriamente resolvidas, apesar de tudo que já se escreveu sobre o caráter
sedativo da catarse. Ao decidir sobre o “indecidível”, se me for permitido o
uso do jargão derridiano, Agamenon, não equaciona seu drama; apenas o coloca
numa outra dimensão, nomeadamente, dos fatos consumados pelo destino através de
sua vontade. E assim é possível dizer: “Ali, na impossibilidade da decisão,
algo é decidido. E essa decisão não resolve a tensão sobre a qual saltou: a
ambiguidade, a tensão trágicas continuam pulsando mesmo quando tudo já foi
decidido. Deste ponto de vista, não existe verdadeira catarse na tragédia, pois
o rastro da violência continua operando no espectador quando findada a ação
dramática” (Ibid., p. 236 e 237). E, por último, a verdade trágica nos fala de
algo “algo há muito esquecido, sepultado e que retorna. O trágico, nesse
sentido, é sempre o retorno de Dionisos, a sua ressureição. Édipo constata a
verdade do Oráculo de Delfos; Agamenon redescobre a hybris, a desmedida
incompatível com sua condição de mortal, que o acompanha desde que sacrificou a
lebre prenha de Diana, redescobre a própria ambição e vaidade desmedidas
através da armadilha que lhe propõe Clitemnestra” (Ibid., 237). Essas duas últimas
dimensões do trágico dizem igualmente respeito à episteme psicanalítica. Como a tragédia grega, a psicanálise não
busca curar o ser humano da vida, de suas tensões e sofrimentos inevitáveis,
mas conferir a esta um sentido necessariamente agônico. Através da fala, o
analisando deve colocar em perspectiva os seus mitos de formação psíquica para
encontrar a possibilidade de viver diferente, mas não de estar salvo da própria
vida e de seus sofrimentos inevitáveis. Neste sentido, a psicanálise apresenta
sua própria antropodicéia.
Por outro
lado, como tive a oportunidade de propor no tópico anterior, uma metafísica da
subjetividade ainda preside as preocupações de Freud. Creio não me afastar do
tema deste ensaio ao afirmar o quanto parece suspeita à tradição trágica,
pensemos em autores como Nietzsche, Heidegger, Foucault ou Gadamer, a categoria
subjetividade. O motivo é simples: organicamente ligada a um projeto de
controle, disponibilização, do mundo e do próprio ser humano, essa categoria
sempre nos remete ao emudecimento do niilismo. Poderíamos ainda afirmar que essa
privatização da antropodicéia, em última instância, está mais próxima da forma
como o judaísmo e o cristianismo dão significado ao sofrimento. A verdade desta
tradição é a transparência e a proporção de uma razão que a tudo deve presidir,
mesmo quando a centralidade dessa razão parece, no caso da psicanálise, ser
deslocada pelos conteúdos do inconsciente: Jó deve ser recompensado pelos seus
infortúnios, Abraão por sua obediência inabalável, os justos devem alcançar o
Reino de Deus, o sofrimento neurótico deve ser colocado em proporção pelo
trabalho terapêutico. A busca de proporção entre intenção e resultados, entre boas
ações e recompensas, por outro lado, é algo completamente estranho ao
pensamento trágico e, nesse sentido, também a centralidade que a subjetividade
alcança no mundo moderno.
Na tradição
trágica o sujeito é visto como uma categoria que promove, potencializa a
dinâmica niilista que, por fim, e inevitavelmente, alcança a própria linguagem.
Sobre isso deverei ainda falar, pois entendo que a importância hoje alcançada pela
psicofarmacologia nas sociedades do conhecimento, da informação, a própria
possibilidade de desenvolvimento deste campo científico, deve ser remetida ao
contexto mais amplo no qual o capitalismo finda por instrumentalizar a própria
linguagem. Há entre esse processo e a constituição de uma metafísica do sujeito
uma relação inequívoca que se funda na mobilização técnica constante do real. Não
se trata aqui, portanto, de uma guerra contra o uso de substâncias psicoativas,
mas de entender como, a partir de que dinâmica cultural, estas substâncias
puderam alcançar uma posição tão central nas sociedades contemporâneas.
(Ainda tenho
mais um post dessa série a ser publicado)
[1]
Quando, buscando salvaguardar o campo psicanalítico, alguns de seus profissionais
tentam reduzir a psicanálise a uma técnica e uma ciência que deve se limitar à
investigação de mecanismos intrapsíquicos, creio que é exatamente isto que está
em jogo.
2 comentários:
Cynthia,
Não sei se você está tendo a oportunidade de ver a quantidade de propaganda de psicofármaco, de spam, que o cazzo está recebendo. Lembro que foi você que alertou, eu nem sabia que existia um filtro específico para tal no nosso blog. De uns três dias para cá, eu apaguei perto de 2.000. Pense numa coisa agressiva...
Não tenho visto, Jonatas, mas consigo imaginar. A indústria farmacêutica joga pesado! Estou planejando um post sobre êxtase. O que será que vão anunciar por aqui?
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