Artur Perrusi
Como já foi alardeado nesse prestimoso blog, Jonatas é o coordenador de uma pesquisa sobre sofrimento psíquico. Sou o seu mais dileto colaborador. Entrei de bobeira, por puro oportunismo do dito-cujo. Sofria horrores por causa da bosta do Santinha, e Jonatas, aproveitando-se de minha extrema vulnerabilidade, convenceu-me a entrar na pesquisa. Entrei quase chorando, posso dizer, mas mantive a altivez.
Por isso, começo essas linhas já sofrendo. Talvez, até ajude
a abordar o tema. Escrever sobre o sofrimento, sofrendo? Sei, sei, é estranho e
piegas, mas defenderei sua eficácia. Não é só a escrita que me faz sofrer.
Precisei, na verdade, arrancar parte da unha para continuar o texto. Desse
jeito, incorporei um zeitgeist da dor, que passava
voando pela janela, e pude, enfim, começar a escrever. Mas parei, rapidamente.
Tirei a unha certa da mão errada. Um erro infantil que me impossibilitou de
pressionar o teclado. Doía, simplesmente – eu sofria. E, ainda, fiquei na
dúvida sobre a natureza do tal zeitgeist:
afinal, sofria porque sentia dor ou meu sofrimento estava além do meu dedo
dolorido? Meu sofrimento significava algum caminho axiológico a algum lugar?
Ou, simplesmente, como sintoma do espírito de nossa época, era apenas e nada mais do
que... dor.
Dor e sofrimento são termos intercambiáveis. Posso usar dor no
sentido de sofrimento, e vice-versa. Porém, no texto, farei uma distinção
analítica (Brant e Gomez, 2005; Ricoeur, 1994). Acho-a útil para
compreender, como veremos, determinadas questões. Ela é analítica, não sendo,
portanto, propriamente “real”. Mesmo assim, farei a hipótese de que, nalgumas
situações, a distinção torna-se uma separação bem concreta. Além da distinção,
defenderei que o sofrimento psíquico, pelo menos da forma pela qual se expressa
atualmente, seria um sintoma da reconfiguração da subjetividade moderna. Sei,
sei, é bem pomposo dizer isso. Digo até de boca cheia: “sintoma da
reconfiguração da subjetividade moderna”. Mas, se Jonatas relaciona as
percepções sociais sobre o sofrimento a matrizes históricas de longo alcance, a
judaica-cristã e a grega, por que não posso também viajar na maionese? Viva a
democratização da maionese, portanto.
E começo repetindo o mote: o sofrimento psíquico foi
reconfigurado. Atualmente, está bem além da velha “dor moral”. Virou um "fato
social". Não só é comum, mas também tem tanta importância quanto à dor somática
– na verdade, como se verá mais adiante, faço a hipótese de que o sofrimento
tornou-se “universal” até porque foi reduzido à dor. Existe, assim, uma
generalização do sofrimento psíquico. Ele faz parte, inclusive, de todo espaço
institucional. Por isso, as instituições assumem agora a responsabilidade de
combatê-lo: escola, família, igrejas, empresa, bancos. A mobilização de atores
sociais, expertises do sofrimento psíquico, torna-se plural: psiquiatras,
médicos, enfermagem, serviço social, educadores, recursos humanos, padres,
pastores, policiais, juízes, usuários, movimentos sociais. O sofrimento
psíquico está em toda parte, em toda situação social, principalmente naquelas
relacionadas à vulnerabilidade social (doença, pobreza, delinquência,
desemprego, trabalho precário, etc.).
Não
se silencia sobre o sofrimento, embora o silêncio seja o resultado. É um
paradoxo, eu sei. Mas o que quero dizer é que não se sofre mais no silêncio. O
sofrer é logorreico: nunca se falou tanto sobre o assunto -- sofre-se falando,
porque se tem algo a dizer. Mas dizer o quê, se o sofrimento expressa-se fundamentalmente
por meio da dor, essa prática sem linguagem? Curiosamente, a prática discursiva
do sofrimento faz-se acompanhar de novas formas de sofrimento e de sua...
denegação. Ou seja, do silêncio.
E
não se sofre só, pois o sofrimento faz parte da socialização -- da criança
hipercinética ao velho deprimido. A adaptação ao mundo não é mais dada por
formas de aprendizado mais ou menos simples ou rápidas, e sim construídas,
geralmente de forma individual, tomando como base uma pluralidade de valores e
papéis sociais. Por isso, estar no mundo precisa agora da ajuda de
especialistas da socialização -- de educadores a psicólogos e psiquiatras.
Como
chegamos a esse ponto? Por que a banalização do sofrimento? De forma
esquemática, sugiro duas explicações gerais:
a) Faço a hipótese de que o sofrimento, no mundo atual, seria uma expressão do individualismo contemporâneo. O sofrimento revelaria, assim, mudanças na configuração da individualidade. Por meio de seus sinais, pode-se fazer uma ponte entre o psíquico e o social, pois a socialização moderna induz a uma apreensão subjetiva e individualizada do mundo. Não causa surpresa, com efeito, que ocorra uma psicologização do sofrimento, mesmo que tenha uma distribuição social do mesmo – ao psicologizar e biologizar o sofrimento, neutraliza-se seu aporte simbólico. O sofrimento é uma construção social, embora sua expressão seja individualizada. É individualizado, porque é socializado dessa forma. Por isso, é de ninguém e de todos – empiricamente infinito e sociologicamente limitado (Otero, 2005).
Talvez, essa “solidão” do sofrimento, no mundo contemporâneo, tenha uma relação com o surgimento de novas vulnerabilidades: fragilização da solidariedade e das posições estatutárias (ocorre uma assimetria entre experiência individual e coletiva); fragilizações dos processos de identificação (a identidade como busca permanente de reconhecimento, logo, com chances reais de fracasso); individualismo e psicologização das condutas (responsabilização total de todos os fatos de nossa vida); naturalização dos “sentimentos morais” (psicologização e biologização dos valores).
Provavelmente, estamos diante de uma nova relevância do sofrimento, mas como denegação. Afinal, fala-se do sofrimento para exorcizá-lo. Assim como a sexualidade, tornou-se um espaço de práticas e de significações, logo, de conhecimento, reconhecimento e diferenciação. Há uma reivindicação do sofrimento – um direito ao sofrer. Como tal, é uma contrapartida da reivindicação de valores relacionados à autonomia, ao desempenho, ao empreendedorismo, à responsabilidade, à adaptação, à iniciativa, à flexibilidade... Por isso, o sofrimento é interpretado como sintoma de fracasso e incapacidade – como inadaptação.
Chamo isso de “handicapização” do sofrimento.
b) A saúde virou uma categoria de valor fundamental no mundo contemporâneo. Transformou-se numa ordem axiológica que norteia os comportamentos no cotidiano, pois define, inclusive, a Boa Vida – tornou-se uma Cidade no sentido de Boltanski (1991). Vivemos sob o peso da “utopia da saúde perfeita” (Sfez, 1995). Tal utopia está intrinsecamente acoplada ao surgimento e ao desenvolvimento da biotecnologia e à constituição de políticas públicas como biopolítica (Foucault, 1977). O corpo pôde assim ser capturado pela biotecnologia, num processo concomitante à biopolitização da pessoa (Biehl, 2008) – o controle político da vida passa pela captura biológica da pessoa. A saúde, nesse sentido, é uma ordem normativa que higieniza os valores mundanos. No seu sentido hegemônico, a saúde naturaliza a boa vida, o prazer e, consequentemente, o sofrimento. A "utopia da saúde perfeita" pode ser julgada como um sistema de crenças que radicaliza a modernidade, porque interpela diretamente o núcleo da individualidade e da subjetividade modernas, justamente o corpo. A busca compulsiva à saúde produz a intolerância obsessiva à doença, à dor e ao sofrimento. Ora, o sofrimento é o outro da saúde. E, se a saúde é higienizada, o sofrimento é naturalizado – daí sua relação intrínseca com o uso de psicotrópicos. Não causa surpresa que a saúde, assim como a saúde mental, seja hegemonizada pela biomedicina.
Acredito que essas duas explicações acima, ao se misturarem,
criam o seguinte paradoxo: a banalização do sofrimento vem acompanhada de
denegação, principalmente por meio da sua medicalização (uso de psicotrópicos,
por exemplo). E a medicalização do sofrimento (Guarido, 2007, 2009; Tesser,
2006) é facilitada pela sua naturalização e redução do sofrimento à dor.
Continua. É só clicar, abaixo.
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Nesse
momento, quero problematizar algumas premissas que, no fundo, são
desdobramentos das posições citadas acima – na realidade, são hipóteses que me ajudará a entender melhor o assunto. Tomo como dado que o campo da saúde,
em particular o da saúde mental, é hegemonizado por valores vinculados à
biomedicina (Biehl, 2011; Tesser, 2007) – no caso, o campo é perpassado pelos
valores da psiquiatria clínica. Sendo assim, há uma naturalização ou
biologização do processo saúde-doença, trazendo como consequência uma série de
práticas e crenças a respeito da dor e do sofrimento. Digamos que a “captura”
do sofrimento psíquico pela biomedicina tem como grande mediador o uso e o
tratamento por psicotrópicos. É a crença na eficácia do tratamento
medicamentoso que gera a legitimidade da naturalização do sofrimento. O
resultado é sua medicalização. O efeito paradoxal desse processo é a subsunção
do sofrimento à dor. Ao se obter essa redução, consegue-se a sua naturalização.
E, vale dizer, a naturalização é um processo prático: a) implica uma rede de
ações que b) redunda na captura do sofrimento c) por uma ordem normativa que o
esvazia de sentido existencial. O resultado prático dessas ações, repito, é a
redução do sofrimento à dor.
Abordo,
enfim, a distinção analítica defendida logo no início do post. O sofrimento,
por exemplo, sem essa distinção, pode ser visto como a dor em movimento. Seria
a palavra ou o sentido da dor. O que é a “dor moral” se não um sofrimento
psíquico? Enfim, “a dor, como o amor, remete a uma experiência radicalmente subjetiva”
(Sarti, 2001, p. 04). Sem duvidar da pertinência de tal elaboração sobre a dor,
minha posição será bem diferente. Ao fazer a distinção analítica, a
consequência mais evidente é limitar a fronteira da dor ao corpo biológico. A
dor teria, nesse caso, sentido? Sim, mas um biológico, pouco expressivo,
incapaz de simbolização. A dor não constrói narrativas. Seu aspecto temporal
não é relevante, pois é um martelar constante num eterno instante. Já o
sofrimento possui sentido moral ou axiológico. É uma categoria de valor.
Constrói narrativas, ao oferecer sentido à dor. Dependendo da matriz histórica,
pode estar entre a tragédia e a redenção (De Paula, 2012; Bouretz, 2011;
Ariffin, 2012). No sentido aqui dado à noção, o sofrimento não depende da dor
para se realizar como tal e a dor não gera, necessariamente, sofrimento.
Embora
possa se aproximar de um dualismo contraproducente, acho essa distinção
analítica útil, podendo ser, inclusive, aplicada à relação entre profissional
de saúde e usuário. Seria eficiente para explicar a situação de mutismo que
acontece nessa relação (uma crítica já clássica à assistência médica). Na
subsunção do sofrimento à dor, não se escuta o doente, pois não se elabora
sobre a dor – ouvem-se gritos,
exclamações, gemidos, choro ou, simplesmente, o que existe é apenas o silêncio
do sofrer de uma pessoa. Pois é a pessoa que narra o sofrimento e não o corpo
biológico. Ao perceber apenas a dor, o profissional procura sinais, sintomas de
um corpo doente, e não o sofrimento, o significado existencial elaborado por
uma pessoa.
Tal situação torna-se mais eloquente na saúde mental. Caso se siga a lógica da distinção, no fundo, só existiria dor física. A subsunção do sofrimento à dor acarreta a transformação do sofrimento psíquico em dor psíquica, vista como uma variante da dor física. No caso, toda dor tem como modelo a dor física. Desse modo, a prática psiquiátrica, regrada pela biomedicina, transformou a ansiedade e a angústia numa “dor psíquica”, comparável a qualquer outra dor. Ora, a angústia escapa do corpo e, para o bem ou para o mal, vai de e ao encontro do outro. É relacional, pois tem sua moradia nas interações entre as pessoas. A dor pode ser localizada no corpo, mas onde está a angústia? Ela está aberta ao mundo, logo, é sofrimento. A angústia simboliza...
Mas
a dor psíquica tem uma especificidade, mesmo sendo considerada uma variante da
dor física. Embora seu fundamento etiológico, caso se considere inquestionável a nosologia
neuropsiquiátrica, seja físico, a dor psíquica remete mais ao indivíduo do que
ao corpo biológico propriamente dito. Neste momento, para esclarecer melhor
esse problema, faço uma distinção analítica entre indivíduo e pessoa –
novamente, minha posição é diferente de alguns autores (Duarte, 1986, 2003;
Caroso e Rodrigues, 1998), embora não seja incompatível; na verdade, a distinção remete à de Radcliffe-Brown (Duarte, 2003, p. 174-175). Ou melhor: suponho
que a psiquiatria e a psicologia, justamente aquelas hegemonizadas pela
biomedicina, fazem uma separação entre indivíduo e pessoa ou, o que dá no
mesmo, privilegiam a noção de indivíduo em detrimento da de pessoa. A sepração é prática e não analítica. Haveria, aqui, uma captura biológica e psicológica da noção de indivíduo,
esvaziando o significado social da noção de pessoa. Como consequência, a noção
de indivíduo ficaria restrita às suas determinações psicocomportamentais.
Noutra linguagem, a subjetividade, por assim dizer, não escaparia dos limites
da individualidade (Renaut, 1998). O indivíduo seria uma mônada – a noção de
indivíduo socializado seria simplesmente ignorada. Essa total psicologização da
socialização não é incompatível com a captura biológica do corpo; ao contrário,
apareceriam pari passu, isto é, haveria
uma afinidade eletiva entre os dois processos – numa afirmação mais forte,
diria que a psicologização do indivíduo pode se manifestar acompanhada da
biologização do corpo e da “desconstrução social” da pessoa.
Como
seria, assim, a abordagem psicológica do
sofrimento desse indivíduo, principalmente aquela realizada por uma psicologia alopática (psicologia cognitivista e/ou
comportamentalista)? O sofrimento não conseguiria passar dos limites da
individualidade. O sofrer seria reduzido às sensações, às percepções, às
emoções e aos afetos. Mas isso é sofrimento? A resposta é negativa, caso se siga a
lógica de minha distinção entre sofrimento e dor. Seria apenas dor psíquica.
Pois, na minha definição, o sofrimento representa justamente o caminho da
individualidade à subjetividade ou, ainda, ele interpela a pessoa, vista como
indivíduo socializado – daí a ênfase no caráter existencial, logo, social e
simbólico do sofrimento.
Os
limites da pessoa (Duarte e Leal, 1998) seriam bem mais amplos do que as
fronteiras do indivíduo.
Resumindo
a distinção analítica: dor é o corpo; no máximo, o indivíduo. Sofrimento é
pessoa; no máximo, a existência.
Para
exemplificar essa discussão acima, proponho dois mecanismos básicos para
produzir a redução do sofrimento à dor psíquica. O primeiro é etiológico: para
a neuropsiquiatria, a depressão seria, por exemplo, um distúrbio na captura de
serotonina, um neurotransmissor. Colocada dessa forma, o sofrimento causado por
um estado depressivo é um epifenômeno de um problema biomolecular. Como efeito
acessório de um processo mais fundamental (a serotonina), o sofrimento torna-se
sem sentido em relação a uma
narrativa existencial que constitua a própria depressão (Coser, 2003; Tavares,
2010). Vira sintoma de um corpo doente, acometido de um distúrbio físico, e não
expressão discursiva e axiológica de uma pessoa doente. A angústia do deprimido
é percebida como produto do distúrbio da serotonina e não de seu sofrimento –
ele sente, desse ponto de vista, uma dor psíquica, mas com um sentido ampliado,
pois emergência de um problema
biomolecular.
O
segundo mecanismo é a medicalização (Calazans & Lustosa, 2008; Aguiar,
2004) do sofrimento. O papel do psicotrópico torna-se, aqui, fundamental. Se o
sofrimento é dor e tem, afinal de contas, uma causalidade biológica, em suma, é
sintoma, o medicamento atuaria de forma mais eficaz do que uma compreensão, uma escuta
profunda dos significados do sofrer. Não causa surpresa que, no fundo, os
psicotrópicos sejam, na maioria, apenas sintomáticos. E, inegavelmente, são
eficientes, pois diminuem as sensações do sofrimento – pode-se dizer que, ao
diminuir e eliminar os sintomas, os medicamentos eliminam ou diminuem a dor,
mas não o sofrimento.
O
sofrimento, visto como dor, legitima o uso do psicotrópico; afinal, a
medicalização é o método mais rápido de eliminá-la. Como a dor se realiza no
instante, a urgência em debelá-la torna-se crucial. Sem tempo, a velocidade é
essencial para aplacá-la. Se a depressão, voltando ao exemplo, é disfunção da
serotonina, não é a palavra ou a simbolização que atingirá o neurotransmissor,
e sim a biotecnologia, personificada no psicotrópico. E, de fato, é o
medicamento que chega à serotonina. E, no fundo, chega como significante, aquém
e além da linguagem.
Por
isso, acho fundamental o estudo dos usos dos psicotrópicos, principalmente nas
suas relações com o sofrimento. Afinal, tenho a hipótese de que, como pano de
fundo desse uso, está uma antropologia que prescinde do sofrimento. Parece que,
no mundo atual, o sofrimento não reproduz ou remete a nenhum valor fundamental;
ao contrário, parece que vai de encontro aos valores modernos, principalmente
um dos seus mais caros: a autonomia. Sofrer indicaria, necessariamente, uma condição heterônoma. Faço a hipótese de que
estaríamos diante da incapacidade ou da dificuldade societária de narrar o
sofrimento, simplesmente porque não existe mais as grandes narrativas
(cosmovisões, religiões, mitos) que faziam a conexão entre sofrimento e os
valores.
(Ainda
voltarei a esse assunto, pois quero interrogar criticamente essa hipótese).
Sigo
adiante: digamos que estou correto e, assim, posso afirmar que, na
contemporaneidade, a conexão entre sofrimento e valores, no mínimo, está fragilizada.
Mas me refiro a quais valores, afinal de contas? Se a sociedade moderna,
incluindo o Brasil, já é dominada pelo individualismo de massa, suponho que os
valores de autonomia, responsabilização individual, empreendedorismo, entre
outros, possam ser o norte das condutas das pessoas – pelo menos, tais valores
seriam um horizonte normativo, funcionando como uma hipótese de trabalho, adotada a título
provisório na investigação dos fatos, para entender o mundo contemporâneo. Pois
bem, nossa sociedade exige uma adaptação permanente a mudanças constantes. Tal
ajustamento de conduta, logo, seu fracasso ou sucesso, é uma responsabilidade
individual – não há mais uma coletividade para a qual se pode jogar a culpa ou
a projeção de nossas desventuras. O indivíduo é avaliado e responsabilizado de
forma sempiterna. Seu desempenho é, justamente, a realização prática de sua
responsabilidade. Por isso, a necessidade de ser reconhecido e o caráter
obrigatório de tornar visível e transparente a sua performance (Ehrenberg, 1991).
Ora,
convenhamos, a exigência normativa de autonomia e de adaptação necessita de
intervenções rápidas e sintomáticas. O uso do psicotrópico é uma das técnicas
mais bem adequadas à satisfação dessa necessidade. É a urgência de um
indivíduo, funcionando como um corpo-máquina – uma bricolagem de funções e
papeis sociais que precisa ser sustentada e mantida em bom funcionamento. O
psicotrópico é extremamente útil, nesse sentido, porque atua, justamente, na
“dimensão mecânica e energética” da individualidade. Assim, a medicalização
poderia ser entendida como suporte e tratamento da autonomia (Ehrenberg, 2005).
Se, entre a heteronomia e a autonomia, existe a dor, deixem passar o
psicotrópico, pois é a solução.
Entretanto,
não quero produzir uma dialética negativa do psicotrópico – longe disso.
Reconhecer seu papel não necessita de um moralismo calcado numa crítica
biopolítica aos medicamentos (Ignácio, 2007); afinal, o uso do psicotrópico não
se esgota na eliminação da “dor psíquica”, mas também, e cada vez mais, é
utilizado para a “energização” do desempenho profissional e até para adquirir
um bem-estar corporal e emocional, uma espécie de “felicidade química”, tão
necessária a nossa existência como cidadão e consumidor no capitalismo.
Nossa
socialização é um aprendizado, mas agora deixou de ser imanente a processos de
identificação já dados e incorporados imediatamente como habitus – devemos ser “flexíveis” e “plásticos”. Na verdade,
precisamos de “transcendência”, isto é, de ajuda externa e especializada
(psicologia, psiquiatria, pedagogia...) para normalizar a socialização. Boa
parte do esforço de normalização, principalmente quando o processo está
fracassando, passa por dispositivos terapêuticos. A terapia pode funcionar como
uma “governança” da socialização. E, muitas vezes, a terapia não pode
prescindir do medicamento – tal fato já é visível no aparato pedagógico,
principalmente na medicalização das crianças (Guarido, 2007). Nesse momento, o
psicotrópico apareceria como mediador entre os especialistas da socialização e
o indivíduo e, até mesmo, entre o indivíduo e o seu “self”.
Colocado
dessa forma, o psicotrópico não seria apenas um artefato técnico, pois cumpre
funções sociais mais amplas. Ele seria um actante, um objeto ou uma coisa (uma
entidade não-humana) que produz ação (Latour, 2001; Freire, 2006). Em torno
dele, gira uma rede de atores e de lógicas de ação que ultrapassam sua
apreensão somente como um produto tecnológico – está presente na saúde, na
economia, na política, na vida social em geral. Faz parte de um dispositivo que
garante a perspectiva de um corpo saudável, apto ao trabalho e adequado aos
imperativos do desempenho individual na sociedade moderna. E, igualmente, o seu
uso pode habilitar o indivíduo ao prazer, ao inscrevê-lo nas lógicas do gozo e
do consumo no mercado capitalista. O uso terapêutico, hedonista ou performático
do psicotrópico serve, afinal, para combater o sofrimento, visto como desnecessário
e sem sentido. Pede-se, assim, à
farmacologia a liberação de faculdades típicas da vida moderna, entendidas como
humanas, por excelência.
Enfim,
o psicotrópico, como actante, revela as tensões entre poder e saber no campo da
saúde mental, envolvendo uma série de regulações privadas e públicas, de
profissões e usuários, de uma cadeia de produtores, distribuidores e
consumidores. Torna-se biopolítica (Martins, 2008; Rauter e Peixoto, 2009)
a partir do momento que interpela, por meio de seu corpo, a pessoa. A saúde
mental não visa a população e sim o indivíduo, daí sua “universalidade”.
Extrapola, inclusive, o mero uso médico quando faz um nexo entre terapêutica e
problemas sociais. É a sua máxima possibilidade: a medicalização como uma das
formas possíveis de resolver problemas sociais – justamente no momento em que a
política torna-se uma terapêutica.
Paro por aqui e retomo a discussão sobre a conexão entre
sofrimento e valores. Farei só um breve comentário. Num outro post, tentarei aprofundar. O que discutirei, no fundo, coloca em xeque minha
argumentação acima. Meu sofrimento é esse, confesso: entrar em contradição
comigo mesmo.
Digamos que as matrizes axiológicas do sofrimento produzem uma conexão com os valores. Seriam o caso do sofrimento grego, baseado na tragédia, e o do judaico-cristão, baseado na salvação. Sofrimento e sistemas morais, eis a questão. O sofrimento seria sofrimento justamente por causa dessa conexão. Concordo com o
argumento, e ele é a base de minha argumentação ao pensar o sofrimento como uma
construção sócio-histórica. Mas é possível pensar o sofrimento sem remeter a um
sistema moral? Se é possível, como seria esse sofrimento? De todo modo, ao
longo do texto, minha resposta foi indiretamente negativa. Ao achar que há uma
subsunção do sofrimento à dor, praticamente afirmei a impossibilidade da
conexão com os valores. O sofrimento existiria como denegação. Sem moral, só sobraria a dor -- dá até pra fazer um sambinha.
Mas quero insistir na toada: o que seria um sofrimento sem moral? E que tipo de moral, afinal de contas? Sofrimento sem teodiceia, por exemplo; sem ser resposta à questão do Mal no mundo. Sofrimento como uma dialética negativa de valores: fracasso, heteronomia, niilismo, perda. Haveria narrativa existencial, nesse caso? Talvez, uma negativa, demandando intervenções externas para a sua resolução. Ou ainda: haveria sim narrativa, mas deslocada da individualidade para os sistemas expertos. Quem falaria sobre o sofrimento não seria o sofredor, mas justamente um outro, aquele que detém o mandato sobre o discurso do sofrer. Os sociólogos, por exemplo, estamos capacitados a ser os mais novos especialistas do sofrimento – o Clube do Sofrer: psicólogos, psiquiatras, cientistas sociais et caterva.
O sofrimento não definiria mais o Caminho, mas indicaria a necessidade de um aprendizado: socializar-se nesse mundo do individualismo de massa. Sofra e se adapte. O sofrimento, em particular o psíquico, significaria o caminho para aprender a conviver com o Outro, esse inferno relacional.
Estamos diante de um novo tipo de sofrimento?
Mas quero insistir na toada: o que seria um sofrimento sem moral? E que tipo de moral, afinal de contas? Sofrimento sem teodiceia, por exemplo; sem ser resposta à questão do Mal no mundo. Sofrimento como uma dialética negativa de valores: fracasso, heteronomia, niilismo, perda. Haveria narrativa existencial, nesse caso? Talvez, uma negativa, demandando intervenções externas para a sua resolução. Ou ainda: haveria sim narrativa, mas deslocada da individualidade para os sistemas expertos. Quem falaria sobre o sofrimento não seria o sofredor, mas justamente um outro, aquele que detém o mandato sobre o discurso do sofrer. Os sociólogos, por exemplo, estamos capacitados a ser os mais novos especialistas do sofrimento – o Clube do Sofrer: psicólogos, psiquiatras, cientistas sociais et caterva.
O sofrimento não definiria mais o Caminho, mas indicaria a necessidade de um aprendizado: socializar-se nesse mundo do individualismo de massa. Sofra e se adapte. O sofrimento, em particular o psíquico, significaria o caminho para aprender a conviver com o Outro, esse inferno relacional.
Estamos diante de um novo tipo de sofrimento?
Ou até, toda a questão seria empírica: existiriam vários
tipos de sofrimento conectados a vários tipos de crenças e sistemas
axiológicos. Diante do pluralismo de valores, haveria o mesmo em relação ao
sofrimento. Mas isso é para outro papo.
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11 comentários:
Li a primeira parte, General; depois leio o resto. Surpreende-me concordarmos tanto. Ambos estamos interessados em entender um discurso da subjetividade (e sua crise) para entender a transformação do sentido do sofrimento na contemporaneidade. Estimula-me a ler a segunda parte de seu texto e publicar a quarta parte do meu, onde retornarei à questão da linguagem, silêncio e crise do ideal moderno de subjetividade.
Tenho apenas uma pergunta, por enquanto: entendendo como você que o sofrimento é sempre uma compartilha, é sempre social num sentido amplo, a logorréia chorosa de que você fala não está hoje mais próxima da dor? Falamos demais porque já não conseguimos dizer nada que faça sentido subjetivo ou comunitário. Nesta direção pergunto também se o Foucault das estratégias confessionais não precisaria ser lido com um grão de sal. No mais, peço-lhe que leia os meus três posts sobre o tema e o último que ainda postarei para conversarmos. Abraço, Jonatas
Justamente, na segunda parte, discuto a distinção entre sofrimento e dor. No final do post, entro em contradição comigo mesmo, pois tenho ainda muitas dúvidas. Na verdade, as velhas dúvidas que vc já conhece: estamos diante de um novo sofrimento? Sofrimento sem conexão com sistemas morais contiua sofrimento? Mas, de que tipo? E lanço, no cair do texto, uma hipótese...
Vixe, o Cazzo anda um sofrimento só depois que eu parti! Para contribuir com o clima, Gabriel Peters enviou a parte 3 de seu texto sobre sofrimento distante. Posto assim que vcs abrirem um espaço.
Bjs!
Minha cara, a vida é dura e a Sapucaí é longa.
Que alívio, Cynthia!
Quer dizer que essa desgraceira toda é só saudade de você...
Seu esclarecimento chegou em boa hora porque eu já tava quase comprando uma pulsãozinha de morte, via internet, para aplacar tanto sofrimento.Era o único jeito, já que não consigo tomar comprimido (entala na goela); e injeção, eu desmaio.
Agora poderei ler a continuidade da série em paz: saudades de Cynthia, saudade assim "inté que é bom"
Beijo tropical (já foi esquiar?)
General,
Não sei se vc concordaria comigo. A própria subjetividade, como espaço mínimo onde um sentido para o sofrimento pode ser empreendido, abre-se numa contradição. O sujeito busca um sentido, portanto mira o coletivo, mas, ao mesmo tempo, reduz esse sentido a uma esfera privada. Desse ponto à transformação do sofrimento em dor é um passo. Tentei argumentar isso no meu último post. Os frankfurtianos, especialmente a partir de Habermas, trabalham o reconhecimento, retornam a Hegel, para tentar contornar esse dificuldade básica. O que você acha? Abraço, Jonatas
Concordar, eu concordo, mas não sei se concordo é comigo. Sei, sei...
Alain Renaut coloca que, na nossa época, houve um deslocamento da subjetividade para a individualidade. Nesse sentido, a esfera privada torna-se o espaço privilegiado do sofrer, digamos assim. Talvez, seja resultado empírico do processo civilizador, como concebia Elias.
Não negando a transformação ou redução do sofrimento à dor, faço outra hipótese (coloquei-a de uma maneira bem superficial no fim do texto): o sofrimento, do ponto de vista moral, conecta-se agora à individualidade, ao destino da pessoa, a uma teodiceia pessoal -- um sofrimento desencantado?
A conexão do sofrimento com os valores passava pela coletividade (a subjetividade identificada a um ente coletivo, etnia, povo, classe...). Um sofrimento sem teodiceia coletiva é um sofrimento sem conexão com um destino geral.
Desdobrando a hipotese: se a conexão do sofrimento é com a individualidade, ou melhor, com os valores da individualidade moderna, o sofrimento é o negativo da autonomia? Ou ainda: o sofrimento, visto como teodiceia individual, é a consequência necessária da socialização? Prescindimos de Deus, mas precisamos de outra transcendência, os sistemas expertos, para dar conta de nosso destino? O psicofármaco seria uma tecnologia de (para) adaptação ao mecanismo complexo da socialização moderna?
Isso tudo significa um novo tipo de sofrimento?
Gostaria de saber se tais questões permitem alguma verificação empírica.
Depois, tento colocar no papel essa discussão. Ainda estou pensando e... sofrendo.
Saudade é o pior sofrimento. E pensar que jacaré não tá nem aí para os saudosos. Vive tomando banho de lago, conversando com suas próprias vísceras e contando tudo a Archer.
_O "entre" existe -- diz a neosuíça.
_Aaah... -- responde Archer, ainda meio desconfiada.
Pois Tâmara, fique sabendo, que já comi várias pulsões de morte lá no Arruda, em dia de jogo. O nome é "comeumorreu", à base de colorau, esse princípio associativo primordial.
Artur,
"Saudade é bom para a saúde": proponho isso como palavra de ordem de uma resistência organizada à hegemonia biomédica nos campos psiquiátrico e psicológico (cognitivista e/ou comportamentalista). Mesmo porque saudade pode dar samba e aí a gente encara a Sapucaí dançando.
Falando sério, seu texto levou-me a Althusser, à narrativa de seu sofrimento e do irreparável que ele cometeu. Lembro que ele conta como já procurou a dor da medicalização psiquiátrica quando não aguentava sofrer e isso me faz pensar na difícil relação entre sofrimento e dor. Creio que a narrativa de Althusser, sua autobiografia,é profundamente moderna: nem tragédia nem redençaõ, mas a pergunta insolúvel de um sujeito sobre o mal feito ao outro (sua outra).
Volto a "déconner": deve ser o colorau que pode produzir a pulsão de morte em dia de jogo no Arruda, porque se trata de um princípio associativo demasiadamente primordial (num sentido eliasiano).
Artur, criatura!
Como até hoje você não pareceu sensível aos meus argumentos, vou apelar: seu texto pareceu-me hesitar quanto à distinção/articulação entre sofrimento e dor. Pois bem. Para mim, pensando na narrativa de Althusser e em sua (de Artur) distinção problemática entre dor e sofrimento,acho que a trajetória já finada de Althusser foi um caso típico de integração entre sofrimento e dor. Será que é por isso que você está em contradição consigo mesmo no post? Sofrendo....?
Beijo
Sou sensível, sim, nem venha. Ainda mais, agora, que estou sofrendo.
Bem, preciso aprofundar mais a distinção analítica. E esclarecer como, na prática, a biomedicina torna "real" a distinção.
Mas não nego que a dor possa ser um sofrimento e vice-versa. Fiz a distinção para deslocar a dor para o campo biolõgico e o sofrimento para o social. Queria ver se isso funcionava. Bora ver. Bjão
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