sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Sofrimento e Silêncio: alguns apontamentos sobre sofrimento psíquico e consumo de psicofármacos (PARTE 3)

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 Jonatas Ferreira

Poderíamos afirmar que a analgesia e apatia que marcam a contemporaneidade são plenamente compatíveis com uma cultura do consumo, dos gozos superficiais, da agitação constante da vida e da extenuação dos recursos do planeta (Ferreira e Silva, 2011). No Segundo Excurso da Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer discorrem acerca do modo como a cultura moderna impõe uma distância emocional que inviabiliza aquilo que poderíamos chamar, com Benjamin, de experiência. Ali, analisando o significado moral da obra de Sade no mundo moderno, eles afirmam: “‘A apatia (considerada como fortaleza) é um pressuposto indispensável da virtude’, diz Kant, distinguindo essa ‘apatia moral’ (um pouco à maneira de Sade) da insensibilidade no sentido da indiferença a estímulos sensíveis. O entusiasmo é mau. A calma e a determinação constituem a força da virtude” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 93). E, no entanto, vivemos uma realidade de excitação constante, em que uma infinidade de apelos sensíveis nos solicitam diuturnamente e aos quais só podemos atender se não nos comprometermos verdadeiramente com coisa alguma. Num certo sentido, esse contexto cultural está diretamente ligada àquilo que Sennett chama de “corrosão do caráter” e outros chamarão muito simplesmente de niilismo. Acredito que hoje experimentamos o recrudescimento de um traço fundamental dos processos de modernização, marcados que estão pela apatia e analgesia.

Todas essas evidências devem ser colocadas no contexto de uma discussão mais ampla que diz respeito ao sentido do sofrimento nas sociedades modernas e de uma reflexão acerca de como, ou em que medida, o tratamento com substâncias psicoativas interferem neste processo de significação. O uso de antidepressivos e ansiolíticos nos coloca sempre diante da perspectiva de um adiamento indefinido de tal processo na exata medida que podemos contornar os sintomas físicos da ansiedade, da depressão, do pânico e de muitas outras afecções. Ora, se a ideia de uma terapêutica para essas e outras formas de sofrimento é tão antiga no ocidente quanto a própria formalização da prática, de uma techné médica, como pode atestar a leitura de várias das obras que constituem o corpus hipocraticum (Conti, 2007), a forma como damos sentido ao sofrimento sempre teve um papel fundamental na cultura ocidental. Weber, por exemplo, entende que o problema do sentido do mal no mundo, ou seja, da existência do sofrimento e da morte, é o núcleo sobre o qual as grandes religiões mundiais gravitam. Em outras palavras, as grandes formações culturais que a história da humanidade conhece estariam inextricavelmente relacionadas a processos de significação do mal, do sofrimento humano. Do ponto de vista de sua sociologia, portanto, uma constatação como essa evidentemente tem uma importância considerável. Cassirer, outro exemplo relevante, dedica um belo capítulo de seu A Filosofia do Iluminismo (1951) a traçar uma linha de continuidade entre a forma como a tradição judaico-cristã lida com o sofrimento e a sua tradução em discurso e prática científicos, iluministas. Ali ele constata que a maneira como a psicologia do século XVIII lida com a questão do sofrimento é informada pela questão da teodiceia e por discussões religiosas mais específicas que remontam à Idade Média. Mais contemporaneamente, se tomarmos a fenomenologia de Jan Patocka (1996) como ilustração derradeira deste ponto, poderíamos mesmo argumentar que aquilo que fundamentalmente caracteriza a cultura ocidental é o fato de atribuirmos ou buscarmos significado para as experiências que implicam em padecimento moral, existencial – no mais vivemos confortavelmente na atitude natural dos fatos que, por não constituírem um problema, não demandam a busca de significação ampla.

A forma como damos sentido ao sofrimento, ou, dito de um modo mais religioso, à presença do mal no mundo, é evidentemente histórica. Partimos aqui do pressuposto de que a mudança desse significado ocorra sobre linhas mestras cujo entendimento deve ser buscado. Porém, exemplifiquemos um pouco a variabilidade desse conceito. Para isso, é necessário especificar a ideia ampla de sofrimento numa noção muito mais precisa e relevante para o argumento deste ensaio: a melancolia. A centralidade de tal noção na estruturação de uma narrativa da subjetividade, ou seja, em uma narrativa que confere significado ao sofrimento moderno como contraponto à possibilidade de liberdade individual, é uma das hipóteses básicas deste ensaio. Digamos com todas as letras: se é inquestionável que a modernidade é marcada por uma metafísica da subjetividade que se legitima por um discurso racionalizador, não é menos verdade que essa razão sobre a qual o sujeito se constitui como entidade moral, epistemológica e técnica, precisa ser experienciada existencialmente. É esta a conclusão a qual Weber chega, para citarmos apenas um exemplo, quando fala da ansiedade que caracteriza a ética calvinista, sua insegurança com relação à salvação, como um dos fatores que o levam a abraçar a tarefa e o chamado de racionalização mundana. A tese weberiana, como veremos, está longe de ser original. Ora, parece-nos que é exatamente uma discursividade melancólica como núcleo simbólico, existencial da subjetividade que parece entrar em crise na contemporaneidade com a possibilidade técnica de adiamento indefinido dos sintomas do sofrimento. Não parece fortuito que essa crise coincida com uma percepção cada vez mais hegemônica da realidade contemporânea como algo estruturalmente irracional.  

Ilustremos, por enquanto, as diversas acepções que a melancolia ganhou ao longo de alguns séculos na Europa para nos concentrarmos, em seguida, no seu sentido moderno.

A palavra 'melancolia' deriva do grego, mais especificamente das palavras melaina e chole, cuja tradução seria "bile negra". Derivada do corpus hipocraticum, a teoria dos humores, em cujo contexto a melancolia é explicada, é uma teoria do equilíbrio entre o ser humano e o cosmos. Há um sentido ontológico nas noções de proporção e equilíbrio na antiguidade clássica que é traduzido quer sob a forma de ideal estético, moral, político ou como dietética e terapêutica. Por isso mesmo, os elementos básicos que ditam nossa saúde ou nossas enfermidades, os traços de nossa personalidade ou estrutura física, regulam também as estações do ano, as fases da vida. E isso por um motivo simples, o ser humano é parte da natureza - ou, mais propriamente, da physis. Deste modo, o sangue é associado tanto à primavera, quanto ao calor e a umidade, ou à infância dos seres humanos; a bile amarela é associada ao verão, ao calor seco e à vida adulta; a bile negra ao outono, ao frio seco, ao outono e ao ocaso de nossa vida; a fleuma à velhice, ao inverno, à velhice e à umidade fria (Conti, 2007, p. 16). Para a medicina grega, a melancolia é entendida como desequilíbrio nos humores em que prevaleceria a força da bile negra - quer esse desequilíbrio ou predomínio seja um traço de personalidade, uma afecção passageira ou uma doença - em cujo caso, o retorno a um estado de equilíbrio demanda a intervenção médica, uma dieta, medidas profiláticas. A influência da teoria dos humores prolonga-se dos gregos até a Idade Moderna.

Tomado geralmente como acedia, como incapacidade do espírito em decidir, a visão prevalecente que a Idade Média oferece da melancolia é que ela é um pecado: tratava-se de um monstro que lança confusão, preguiça, imobilidade, observa Evagrius Ponticus, “o solitário” (Ferguson, 2005, p. 7). O humanismo de Marsilio Ficino, por seu turno, no século XV, retorna à visão positiva que Platão tinha deste sentimento. “Aqueles sob a influência de Saturno tendem para a melancolia, e, de acordo com Ficino, isto não é sempre um infortúnio. Revivendo as visões de Platão, Ficino percebe a melancolia como um dom intelectual, que por seu turno estimula dois outros frenesis divinos, a poesia e a filosofia” (Ibid., p. 9)1. No século XVI, Teresa de Ávila parece entender a melancolia como espaço tanto de manifestação do divino quanto do diabólico no ser humano. Para ela, seria necessário certa sutileza de espírito para diferenciar o sofrimento melancólico da angústia provocada por Deus quando este “incendeia o espírito” (Radden, 2000, p. 108). Esta fineza de espírito é precisamente a capacidade de entender se somos tomados por um sofrimento da alma ou da imaginação, ou seja, uma dor presidida por Deus ou pelo demônio.

Aquilo que chamaríamos de sensibilidade barroca em Teresa de Ávila é um passo decisivo para a estruturação de uma ideia moderna de melancolia. Alguns elementos poderiam sustentar essa afirmação: i. ela diferencia de modo pragmático aquilo que hoje denominaríamos comportamentos neuróticos mais brandos daqueles que poderíamos chamar de casos psicóticos mais graves. No tratamento destes últimos, recomenda a tolerância; no tratamento daqueles primeiros, o uso da autoridade. ii. A aceitação dessa autoridade é um elemento na cura na própria trajetória religiosa desta extraordinária freira espanhola. O foco das considerações de Teresa de Ávila tem um caráter já fortemente psicológico, se o comparamos com a teoria dos humores. O que chama atenção no seu Livro da Vida, por exemplo, é o fato de suas dúvidas, indecisões e sofrimentos não poderem ser alividados pela voz da tradição, mas apenas por uma experiência única e mística com a autoridade Divina. Isso que chamamos de sensibilidade barroca virá a preparar uma virada moderna que nos diz respeito mais de perto: diante do sofrimento, da incerteza, a única promessa de resolução se encontra na graça de Deus. Como melancólica Teresa raciocina: sou fundamentalmente má. E disso conclui: todo bem (me) é fundamentalmente Alheio, ou seja, proveniente de Deus. Esta é a possibilidade de significação do mal, do sofrimento no mundo. Se a resolução é aqui transcendente, o problema coloca já a subjetividade como questão cultural central. A acedia, a tristitia, portanto, não lhe são estranhas, mas um lugar de onde ela só pode sair a partir da intervenção, da autoridade maior da Divindade:

E direi o que se passa comigo para que, no caso de ser conforme à fé, possa ser de algum proveito ao senhor. E, se não, tirará o senhor minha alma do engano, para que não ganhe o demônio onde me parece que eu estou ganhando. […] Pois bem sabe meu Senhor que não pretendo outra coisa com isso a nnão ser que ele seja louvado e engrandecido um pouquinho por ver que, em uma fossa tão suja e malcheirosa, fez um jardim de tão suaves flores (Teresa de Ávila, 2010, p. 1o3).

Quando lemos Teresa de Ávila e comparamos com tudo o que Benjamin falou acerca do conceito de acedia e da importância do drama barroco alemão como indicadores de um processo de modernização cultural na Europa, impossível não perceber a estatura intelectual desse pensador alemão. A indecisão paralisante de Segismundo, de A vida é Sonho, ou de Hamlet, aguardam, como em Teresa de Ávila uma decisão, um corte transcendente. E essa caracteriza a solução barroca, absolutista, para a questão política, cultural e existencial que a modernidade implica. A partir do começo do século XIX, o Romantismo levou adiante o namoro platônico entre melancolia e sensibilidade artística, além de associá-las ambas ao próprio frenesi da vida moderna. Apenas mais recentemente, isto é, com a elaboração de um sistema de classificação de doenças mentais por Emil Kraepelin, ela passou a ser considerada doença, com um conjunto de sintomas delimitados, identificáveis: despersonalização, impressão de que o mundo se tornou estranho, que o próprio corpo é sentido como algo apartado do indivíduo etc (Radden, 2000, p. 261). Em Kraepelin encontramos a base da psiquiatria estadunidense que hoje prevalece como terapêutica no mundo e a tentativa de proceder a uma classificação mais precisa das doenças mentais, o que conduziu a uma definição mais precisa de um conceito demasiado amplo, como era o de melancolia.

Acredito que o sofrimento, em particular a melancolia, na cultura moderna é um lugar privilegiado para observar as implicações existenciais, mas também políticas e sociais, que decorrem do que podemos alternativamente chamar de empobrecimento da experiência ou de radicalização do niilismo. Tal relação não é fortuita. Ora, na psicanálise a melancolia e a morte apresentam uma ligação estreita, oferecendo a meu ver perspectivas teóricas auspiciosas de aprofundamento de uma tradição que podemos reportar a Kant – sem aqui alimentar obviamente intenção de empreender qualquer forma de genealogia. Refiro-me aqui muito especificamente ao Luto e Melancolia, porém, é claro que o tema pode ser também trabalhado através de textos como O Mal-Estar na Civilização. Em oposição ao sentimento de luto, em que a perda de um 'objeto' amado não compromete a integridade da individualidade, a melancolia é aqui considerada uma patologia que consiste na dificuldade de realização do trabalho de aceitação desta perda, dificuldade que se manifesta como sentimento de auto-depreciação, rebaixamento de si. Que o mundo perca suas cores e sabores é, para Freud, uma decorrência natural de nossa experiência do desaparecimento de algo especialmente valorizado, amado, quer esse algo seja um ideal, um emprego, ou um ente querido. Preocupante para ele é que o trabalho do luto seja postergado indefinidamente, que outros 'objetos' não venham a substituir em um devido tempo de sofrimento aquele que é centro de nosso investimento emocional.

El em duelo hallamos que inhibición y falta de interés se esclarecían totalmente por ele trabajo del duelo qua absorbía al yo. En la melancolía la pérdida desconocida tendrá por consecuencia un trabajo interior semejante y será responsable de la inhibición que le es característica. Sólo que la inhibición melancólica nos impressiona como algo enigmático porque no acertamos a ver lo que absorbe tan enterramente al enfermo. El melancólico nos muestra todavía algo que falta em el duelo: una extraordinaria rebaja e su sentimento yoico [Ichgefül], un enorme empobrecimiento del yo. En el duelo, el mundo se há hecho pobre y vacío; em la melancolía, eso le ocurre al yo mismo. El enfermo nos describe a su yo como indigno, estéril y moralmente despreciable” (FREUD, 1917, p. 2)

Sob a auto-depreciação melancólica, existe em relação ao objeto de investimento emocional um impulso agressivo que não encontrou, por alguma razão, possibilidade de ser suficientemente elaborado. Toda emoção intensa guarda em si contra-correntes que o tornam fundamentalmente ambíguo e, para Freud, é importante que essa ambiguidade seja reconhecida. O melancólico, todavia, é aquele que não teve a oportunidade de elaborar a agressividade que implicitamente sustenta com relação a um objeto decisivo de sua afeição. Essa agressividade retornaria ao eu num impulso de auto-destruição, de perda de significado que poderia, em última instância resultar em uma ação suicida. A agressividade não elaborada com respeito ao objeto de afeto retornaria na forma de tal impulso.

Sólo este sadismo nos revela el enigma de la inclinación al suicídio por la cual la melancolía se vuelve tan interesante y... peligrosa. Hemos individualizado como el estado primordial del que parte la vida pulsional un amor tan enorme del yo por sí mismo, y en la angustia que sobreviene a consecuencia de una amenaza a la vida vemos liverarse un monto tan gingantesco de libido narcisista, que no entendemos que ese yo pueda avenirse a su autodestrucción. […] Ahora el análisis de la melancolía nos enseña que el yo sólo puede darse muerte si em virtud del retroceso de la investidura de objeto puede tratarse a sí mismo como objeto, si le es permitido dirigir contra sí mismo esa hostilidad que recae sobre un objeto y subroga la reacción originaria del yo hacia objetos del mundo exterior” (Ibid, p. 4)

Neste ponto, não necessitamos responder da perspectiva psicanalítica à pergunta que propõe Freud, nomeadamente: como um investimento libidinal de enormes proporções pode se transformar em melancolia e, no limite, em impulso de auto-destruição? Basta que afirmemos claramente que a hipótese que oferecemos é precisamente o de que a própria constituição da narrativa tipicamente moderna da subjetividade, em torno da qual a psicanálise gira, é recorrentemente associada ao sentimento melancólico. Se entendemos o sujeito moderno como uma questão existencial, e não meramente ética ou epistemológica, diríamos que mais que primordialmente uma experiência da ordem da razão, o espelho sobre o qual a cultura moderna retorna sempre a subjetividade é a melancolia. É desta perspectiva que ela se torna significativa, ou seja, quando esse sentimento nos retorna o sujeito como questão, mas também como possibilidade de resposta.

Uma conclusão semelhante Kant encontra ao discorrer sobre o sentimento do sublime, na Crítica do Juízo. O sublime é originalmente um sentimento doloroso em que nos confrontamos com nossa insignificância diante da evidência de um mundo quase absoluto em sua infinitude. Sentir-se aniquilado é o primeiro e doloroso momento do sentimento do sublime, e, no entanto, é através dele que descobrimos nossa capacidade para transcender nossa condição finita, é através desse desconforto que encontramos a evidência estética de nossa disposição para a razão2. Já em Kant, portanto, podemos compreender um elemento fundamental daquilo que Freud considera ambíguo na melancolia, ou seja, entendemos como o prazer pode estar associado ao sofrimento que o sentimento do sublime desperta: esta dor nos retorna a evidência estética do sujeito racional. Esta dor, este momento em que a língua trava, que o dizível é colocado em questão, é a própria experiência estética da centralidade do sujeito na vida moderna.

Não é fortuito que o Romantismo alemão, ao qual não podemos deixar de associar o pensamento freudiano, e cujo débito para com a Crítica do Juízo é mais que conhecido, estrutura subjetiva e melancolia encontram-se de modo tão evidente conectados. A contrapartida da constituição de uma cultura de sujeitos, diante dos quais os objetos são concebidos como infinitamente controláveis pela razão, é precisamente, de acordo com a sensibilidade romântica, o estabelecimento de um hiato intransponível entre esses dois  mundos. O prazer do melancólico é o de, ao lamber suas próprias feridas, encontrar a possibilidade de estruturação de sua subjetividade como núcleo de estabilidade existencial mínima. E essa privatização da vida social, esse silêncio e inapetência que caracterizam o melancólico, são aspectos fundamentais da vida moderna. Por tudo isso, parece-nos sensata a argumentação que nos oferece Havey Ferguson (2005, p. 26):

A filosofia moderna, particularmente em Descartes, Kant e Hegel, pressupôs a melancolia da vida moderna como condição permanente, e incorporou isso em suas reflexẽos, e assim fazendo domesticou o gênio subversivo que aderia a todo caso de 'pesar sem causa' […]. A melanconlia moderna, enlutada, pesada e tonta como a infinitude, também está carregada com a lucidez metafísica da depressão.

Discorrendo sobre a importância da filosofia de Kierkegaard na elaboração dessa relação estreita que existe entre modernidade e melancolia, Ferguson (Ibid, p. 4) observa ainda:

Melancolia, para ele, era mais do que um humor, ou mesmo uma peculiaridade de um temperamento específico; era, antes, uma forma particular de existir como ser humanano. E, mais que isso, era um modo de existir que ele passou a ver como mais apropriado às condições da vida moderna. Havia, na visão de Kierkegaard, algo de uma verdade única no auto-retiramento melancólico.

Em, O Conceito de Angústia, o próprio Kierkegaard (2010, p. 45) nos propõe o seguinte:
O conceito de angústia3 não é tratado quase nunca pela Psicologia, e, portanto, tenho de chamar a atenção sua total diferença ao medo e outros conceitos semelhantes que se referem a algo determinado, enquanto que a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade. Por isso não se encontrará angústia no animal, justamente porque este em sua naturalidade não está determinado pelo espírito.

Se Simmel nos diz que, diante da dinâmica caótica da vida moderna, o indivíduo precisa constituir um núcleo duro de subjetividade que lhe permita não ser digerido pela aceleração das grandes cidades, afirmamos aqui, numa linha de raciocínio afim, que a melancolia é o próprio investimento propiciador dessa narrativa moderna que é a da subjetividade. Neste contexto cultural, significar o sofrimento melancólico é um ato de enorme sentido existencial, pois esse ato garante a própria reflectividade narcísica sem a qual uma sociedade dos sujeitos parece incompreensível.

Entre o moderno sujeito melancólico e o indivíduo depressivo que encontramos na contemporaneidade, devidamente estabilizado por antidepressivos e ansiolíticos, porém, há uma diferença que deve ser observada. Ora, é precisamente o investimento no sofrimento melancólico e na sua significação que parece ser negado nesse segundo caso. Há aqui, no entanto, uma contradição básica no fato de que esse processo de significação seja entendido como algo, em Simmel ou na psicanálise, como algo privado. E é precisamente este traço cultural que traz em si, para além das possibilidades bioquímicas que se abrem diante de nós, a perspectiva de emudecimento sobre a qual temos falado. Mas se temos na melancolia moderna, núcleo de constituição de uma narrativa da subjetividade, uma condição necessária ao silenciamento do sofrimento, ela não é certamente condição suficiente. A própria possibilidade de constituição de uma narrativa é aqui um obstáculo – o que nos levará certamente mais para perto de uma discussão sobre a questão da linguagem, da fala neste contexto.

Antes de seguir adiante neste raciocínio, gostaria de propor algo como um excurso acerca de duas matrizes culturais decisivas na significação do sofrimento no ocidente. Isso nos permitirá uma visão mais clara, não apenas daquilo que parece ser colocado em questão no contexto daquilo que aqui chamamos de medicalização do sofrimento, mas entender que tipo de elaboração o mundo moderno, e em especial a constituição de um discurso da subjetividade, produz acerca de seu significado. Esse passo parece importante quando temos em mente precisamente o que parece ser o esvaziamento da tarefa de significação e esgarçamento de um contexto cultural marcado por aquilo que Foucault chama de 'analítica da finitude' no célebre capítulo de As Palavras e as Coisas.
1Para Ficino, a bile negra compele o sábio sempre para o centro de si, tal como a Terra que constitui o centro do universo. “And being analogous to the world's center, it forces the investigation to the center of individual subjetcts, and it carries one to the contemplation of whatever is highest, since, indeed, it is most congrunent with Saturn, the highest of planets. Contempation itself, in its turn, by a continual recollection and compression, as it were, brings on a nature similar to black bile” (in Radden, 2000, p. 90). A bile negra, como sabemos, é desde Platão o humor que determina a melancolia.
2 Na 'Analítica do Sublime', por exemplo, lemos: “Bold, overhanging, and, as it were, threatening rocks, thunderclouds piled up the vault of heaven, borne along with flashes and peals, volcanoes in all their violence of destruction, hurricanes leaving desolation in their track, the boundless ocean rising with rebellious force, the high waterfall of some mighty river, and the like, make our power of resistance of trifling moment in comparison with their might. But, provided our own position is secure, their aspect is all the more attractive for its fearfulness; and we readily call these objects sublime, because they raise the forces of the soul above the height of vulgar commonplace, and discover within us a power of resistance of quite another kind, which gives us courage to be able to measure ourselves against the seeming mnipotence of nature” (Kant, 2007, p. 91)
3O conceito de angústia é, neste texto, diretamente associado ao de melancolia.

7 comentários:

Cynthia disse...

Jonatas, desculpe o offtopic, mas vc viu a quantidade de propaganda de antidepressivo que foi parar na caixa de spam nos ultimos dias? Ha!

Le Cazzo disse...

Bem, é totalmente dentro do tópico. Mas a que caixa de Spam você está se referindo? Ou será isso uma piada sua acerca do tema dessas notas? HaHa.Jonatas

Le Cazzo disse...

Alguém escreveu extraordinário e inextricável com s. Juro que foi outro melancólico. Não eu. Que coisa! Jonatas

Cynthia disse...

Estava me referindo à caixa de spam do blogger. Agooooora eu entendi por que vc nunca limpa essa coisa! Deixei lá para você ver. Dados interessantes para a sua pesquisa :)

Le Cazzo disse...

Cynthia,

Realmente impressionante o número de Spans. Quando vi que tinha um contador, já tinha deletado um monte. A partir dali deletei quase 300. Dá pra ter uma ideia da agressividade do setor farmacêutico só por um detalhe como este. Obrigado por me chamar a atenção, eu nem sabia mesmo que tínhamos uma caixa com esse tipo de mensagem. Jonatas

Anônimo disse...

Olá Cynthia e Jonatas.

Esses spans são feito por robôs que indexam o conteúdo de um site e geram spam com palavras-chaves contendo assuntos relevantes ao post. Como esses robôs são gringos, eles pecam em suas traduções (risos).

Aproveito para elogiar a série de textos sobre os psicofármacos. É um tema muito relevante visto que, 8 entre 12 pessoas que conheço - acima de 40 anos - usam algum tipo de remédio deste tipo.

Abs, Isaac Filho
http://rede.pelivre.org

Le Cazzo disse...

Oi Isaac,

Obrigado pelo esclarecimento e pelo elogio. Nossa realidade com respeito ao consumo de psicofármacos não é diferente. Jovens tb estão usando muito antidepressivo e ansiolítico. Abraço. Jonatas