Jonatas Ferreira
Em Do Silêncio,
David le Breton discorre acerca do imperativo da comunicação nas
sociedades contemporâneas, da impossibilidade de vivenciar o silêncio que este imperativo acarreta. Na sociedade da informação a única forma de obtermos silêncio parece ser, ele
argumenta, a avaria técnica: o computador não funciona, a conexão com a Internet caiu etc. A tagarelice que caracteriza nossos envolvimentos cotidianos, todavia, seria apenas uma evidência de que já não
conseguimos verdadeiramente dizer mais nada de significativo. Sobre isso, como
sabemos, também falou o Heidegger de Linguagem Técnica e
Linguagem de Tradição. Se pudéssemos calar por um momento talvez viéssemos a
constatar precisamente isso: numa cultura em que a linguagem
foi finalmente achatada pelos imperativos técnicos da ciência da
informação e por um capitalismo que só pode ter uma relação predadora com o mundo, parece que nada temos a dizer.
Poderíamos propor, de um modo algo paradoxal, que a impossibilidade de silêncio neste contexto só é possível mediante a garantia de certos silenciamentos, pelo emudecimento de tudo aquilo que venha a comprometer a plena circulação de signos, a aceleração e o consumo. O silenciamento sobre o sofrimento é uma desses fenômenos técnicos sem o qual a plenitude do consumo, a aceleração constante não pode ser alcançada. É a partir dessa constatação que podemos compreender a inconveniência da depressão, da melancolia no mundo contemporâneo e, de resto, as estatísticas de consumo de medicamentos psicoativos expostas no tópico anterior. Como pondera Maria Rita Kehl em O tempo e o cão, o indivíduo acometido de depressão desacelera, engarrafa o trânsito que deveria fluir de modo célere. Em sua letargia, sua suspeita acerca dos sentidos culturais consolidados em uma linguagem demasiadamente livre de ambiguidades, esse indivíduo demanda um silêncio que, mediante terapias de base química, deve ser silenciado. É preciso calar a letargia desse sofrimento, pois o deprimido é aquele que diz como Kierkegaard nos Diapsalmata: “Summa summarum: não me apetece nada de nada”.
Poderíamos propor, de um modo algo paradoxal, que a impossibilidade de silêncio neste contexto só é possível mediante a garantia de certos silenciamentos, pelo emudecimento de tudo aquilo que venha a comprometer a plena circulação de signos, a aceleração e o consumo. O silenciamento sobre o sofrimento é uma desses fenômenos técnicos sem o qual a plenitude do consumo, a aceleração constante não pode ser alcançada. É a partir dessa constatação que podemos compreender a inconveniência da depressão, da melancolia no mundo contemporâneo e, de resto, as estatísticas de consumo de medicamentos psicoativos expostas no tópico anterior. Como pondera Maria Rita Kehl em O tempo e o cão, o indivíduo acometido de depressão desacelera, engarrafa o trânsito que deveria fluir de modo célere. Em sua letargia, sua suspeita acerca dos sentidos culturais consolidados em uma linguagem demasiadamente livre de ambiguidades, esse indivíduo demanda um silêncio que, mediante terapias de base química, deve ser silenciado. É preciso calar a letargia desse sofrimento, pois o deprimido é aquele que diz como Kierkegaard nos Diapsalmata: “Summa summarum: não me apetece nada de nada”.
Neste ensaio, portanto, pretendo, no seio do discurso psiquiátrico, explorar a produção
de silêncios sobre o sofrimento
psíquico, ou, mais propriamente, poderia dizer que me debruçarei
sobre os silenciamentos produzidos em nome da dizibilidade de tal
discurso. Mais especificamente, me aterei em considerar aqueles
discursos que legitimam a proliferação do consumo de substâncias
psicoativas na contemporaneidade. Como ficará claro na continuidade de nossa exposição, não se trata aqui de uma cruzada contra a psiquiatria, mas da investigação desse silenciamento que, de resto, não é estranho à psicanálise. Sobre isso falaremos.
Estou perfeitamente ciente que, do ponto de vista
teórico, não apresentarei aqui uma abordagem nova. Há uma vasta
literatura estruturalista e pós-estruturalista que enfatiza
precisamente um jogo de diferenças em que o dizível se torna
possível mediante a supressão, a repressão daquilo que deve ser
emudecido. Ora, Foucault, por exemplo, e a propósito, já nos falava
na História da Loucura na era Clássica, e em pequenos
ensaios do começo da década de 1960, da exclusão da loucura como
experiência, processo que é realizado em nome da racionalidade do
discurso psiquiátrico, ou seja, em nome da possibilidade de falar a
verdade da loucura como contraluz de uma sociedade do trabalho e da
produtividade. No Prefácio àquele livro, Michel Foucault esclarece
da seguinte forma sua intenção mais ampla: “A linguagem da
psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a loucura, só pode
estabelecer-se sobre um tal silêncio. Não quis fazer a história
dessa linguagem; antes a arqueologia desse silêncio” (Foucault,
2002, p. 153). Procurando expor a economia que preside à
racionalidade da psiquiatria, que historicamente interrompe uma
comunicação entre razão e desrazão, ele abre espaço para
criticar, alguns anos depois do lançamento da História da
Loucura, a própria psicanálise por seu comprometimento na produção de
um discurso normalizador da psiquê. A psiquiatria, como a
psicanálise, subjetivam mediante a eliminação da experiência
excessiva da loucura, ou da neurose. Em “A loucura, a ausência de
obra” lemos o seguinte comentário: “Somos nós hoje que nos
surpreendemos de ver comunicarem-se duas linguagens (a da loucura e a
da literatura), cuja incompatibilidade foi construída por nossa
história. A partir do século XVII, a loucura e a doença mental
ocuparam o mesmo espaço no campo das linguagens excluídas (Grosso
modo, o do insensato)” (2002, p. 219). É possível comparar o
jogo diferencial que prendem o dizível e o silenciado, neste caso, o
emudecimento da loucura é condição para o surgimento de uma
sociedade da razão e do trabalho disciplinado, com várias outras
referências estruturalistas e pós-estruturalistas. Desde Saussure,
passando por Lévi-Strauss, a linguagem significa mediante aquilo que
ela exclui, converte em tabu, em não-dito, em alteridade.
O jogo diferencial sobre os quais os significados são
constituídos é uma marca da contribuição estruturalista e
pós-estruturalista e se aqui elencamos mais um exemplo desta lógica
é por acreditarmos que ele traz à tona, à discussão, o caráter
intransponível da liminalidade como espaço ético, político em que
os silenciamentos podem por alguns instantes fulgurar. De fato,
quando nos reportamos à obra de Derrida a tematização do silêncio
como âmbito filosófico, ético e político se oferece como recusa a
qualquer transcendência, a uma perspectiva privilegiada em que a
estrutura da linguagem e do dizível, com seus emudecimentos, possam
aparecer em plena transparência. Desde sua célebre polêmica com
Foucault sobre a loucura, encontramos em Jacques Derrida a recusa em
tentar trazer à luz a alteridade em seu caráter absoluto, gesto
que, de resto, está relacionado à sua recusa a uma metafísica da
presença, a uma nostalgia por um momento mágico de plenitude. O
desejo foucaultiano de realizar uma “arqueologia do silêncio”,
de deixar que a loucura fale por si própria, é uma tarefa que se
autocontradiz. Roy Boyne (1990, p. 56) descreve da seguinte forma
parte da crítica derridiana à História da Loucura: “Derrida
afirma que o desejo de Foucault de que a loucura seja o ‘objeto
[subject] de seu livro em cada sentido da palavra’ é o
aspecto mais louco do trabalho. Para Derrida, há uma armadilha
simples, que é pensar que se possa penetrar a loucura pelo uso do
mesmo instrumento que a baniu previamente, esse instrumento sendo a
linguagem da razão”. O filósofo do traço se recusa, assim, a
abraçar qualquer projeto que signifique ‘deixar a loucura falar
por si’. Seu espaço filosófico é antes o da liminalidade, espaço
no qual a lógica, a razão parece trepidar, oscilar, em que a figura
do outro aparece de modo radical, mas onde a tradição ocidental e
suas narrativas não podem simplesmente ser abandonadas. Se, por
exemplo, a absoluta alteridade do animal o comove e convoca, como em
O Animal que logo sou, interessa-lhe se debruçar sobre o
indizível que vem forjando historicamente as relações entre
humanismo e o espectro do animal, a impossibilidade dessa abertura
humana para o totalmente outro, e não um projeto de falar em nome
daquela alteridade.
As dificuldades desse gesto filosófico evidenciam-se
quando considerarmos, com Judith Butler, a possibilidade de
enunciação de uma subjetividade feminina. Como é possível às
mulheres falarem sua própria voz e identidade, sem recorrer às
categorias de representação, subjetivação, universalização
mediante as quais o seu silêncio e condição de ‘faltantes’
foram estruturados? Se as mulheres não se contentarem com uma
unidade negativa, uma unidade sob a condição de silenciadas, o que
podem enunciar enquanto mulheres? “A crítica feminista tem de
explorar as afirmações totalizantes da economia significante
masculinista, mas também deve permanecer autocrítica em relação
aos gestos totalizantes do feminismo. O esforço de identificar o
inimigo como singular em sua forma é um discurso invertido que
mimetiza acriticamente a estratégia do opressor, em vez de oferecer
um conjunto diferente de termos” (2003, p. 33-34). Uma vez que
determinadas narrativas, dizibilidades, são produzidas, parece
difícil quebrar o silêncio sobre as quais elas se estruturam sem
recorrer a mais opressão. E, no entanto, nossa tarefa se coloca
precisamente na encruzilhada dessa dificuldade, ou seja, dispõe-se
como busca a recuparar o sentido do silenciamento do sofrimento
precisamente quando uma cultura que impõe a sua medicalização
afirma a superfluidade de tal gesto.
Voltemos a Derrida. Como todos sabemos, ele é o
filósofo das aporias, ou seja, daquilo que em sua impossibilidade
nos convoca e que, como tal, nos oferece a chance de reflexão sobre
o que julgamos possível. Em Derrida, o silêncio é sempre o
silêncio do já dito e que, enquanto tal, abre-nos o campo de
dizibilidades ‘reprimidas’. Lembremo-nos do seu Mal de
Arquivo, da própria memória como estrutura arcôntica, isto é,
como estrutura de poder que compreende aquilo que devemos recordar,
por certo, mas também aquilo que devemos esquecer e a dinâmica
hipomnética em que mantemos o esquecido como tal. Assim é que, por
exemplo, na repetição compulsiva o neurótico lembra-se (de modo
hipomnético e recorrente) daquilo que não deve ser plenamente
trazido à lembrança. Como estrutura de arquivamento, pois, nossa
memória precisa não apenas lembrar, mas lembrar aquilo que devemos
esquecer, reprimir, deixar de fora. E assim, com respeito a
psicanálise freudiana, Derrida afirma que ali está sempre
potencialmente em jogo os princípios de consignação, de
arquivamento que formam a lei, que estruturam a própria linguagem de
modo a torná-la sempre objeto de interrogação. E aqui temos mais
uma ambiguidade fundamental. A autoridade paterna, por exemplo,
surgiria no desenvolvimento psíquico como algo que em si deve ser
pensado como inquestionável, quase absoluto, mas, ao mesmo tempo,
como centro de toda questão. Sempre que o gesto crítico é
possível, os segredos e heterogeneidades que o arquivamento não
pode deixar de trazer constantemente à tona estarão também em
questão. Quando esta dinâmica entre o que deve ser esquecido e o
que deve ser lembrado dá lugar a uma naturalização das forças de
arquivamento, uma força de destruição poderosa, uma força de
auto-destruição, instala-se no coração do arquivo. Toda estrutura
arcôntica é, sobre este ponto de vista, constituído também por
uma arquiviolítica, uma pulsão de morte, de esquecimento, de
destruição que ameaça o próprio poder arquívico. E esta é
apenas outra forma de considerar aqui a ambiguidade fundamental entre
dizibilidade e o que deve ser silenciado, mas nunca pode ser
totalmente esquecido, como os dois lados da própria força de
estruturação da memória, do discurso. A dizibilidade depende de um
constante ato de silenciamento daquilo que deve ficar fora de nossos
arquivos culturais. Quando esse ato de repetição compulsiva, de
silenciamento, não pode mais ser produzido, a própria força do
arquivo fica comprometida.
É como se Freud não conseguisse mais resistir à
perversidade irredutível desta pulsão que ele nomeia aqui pulsão
de morte ou pulsão de agressão ou pulsão de destruição, como se
estas três palavras fossem, nesse caso, sinônimas. Mais tarde,
Freud dirá que esta pulsão com três nomes é muda (stumm).
Ela trabalha, mas, uma vez que trabalha em silêncio, não deixa
nunca nenhum arquivo que lhe seja próprio (Derrida, 2001, p. 21)
Pergunto-me, nesse ponto, se não existiria nas
sociedades contemporâneas essa mesma força arquiviolítica, essa
mesma pulsão de morte, no tratamento do sofrimento? Quando o
sofrimento deixa de ser objeto de tratamento simbólico e passa a ser
tratado por uma terapêutica química que, em princípio, postula a
não ambiguidade das narrativas discursivas, não estaríamos, do
ponto de vista desta narrativa moderna que é a psicanálise, diante
de uma pulsão de destruição? Em que medida estaríamos dispostos a
fazer ecoar precisamente aquilo que contorna o terreno do dizível em
relação ao tema que aqui propomos discutir, qual seja, o sofrimento
psíquico na contemporaneidade é o que nos aproxima do referencial
pós-estruturalista e em particular de Jacques Derrida. Um
pressuposto básico de nossa exploração aqui será o de que as
sociedades contemporâneas operam de modo a produzir um silenciamento
ou a privatização do sofrimento, sua transformação em dor
intransitiva e intransitável. As dinâmicas sociais que favorecem o
consumo, dos gozos rápidos, do pudor diante da própria finitude
(ver Ferreira e Silva, 2011) não podem ser capazes de oferecer um
sentido, uma teodicéia ou antropodicéia, ao sofrimento, à
melancolia ou depressão humanos.
3 comentários:
Car@s,
Corrigi alguns barbarismos desse trecho do texto. Com sorte não ficaram muitos. Com sorte esse comentário não tem novos.
Professor, seu argumento é bastante interessante e mesmo envolvente. Mas parto de outras premissas, e nas minhas pesquisas e observações chego a conclusões bem distintas.
Apenas para lançar um comentário e uma provocação: não achas que o discurso e o campo psiquiátrico é menos monolítico do que a forma como o delimitaste nos dois posts (ou eu entendi errado)?
Abraço!
Josias.
Caro Josilhas,
Você se surpreenderá com a continuação desse post. Não apenas unifico o campo psiquiátrico, como, de resto vejo proximidade perturbadora entre este e a psicanálise. Mas estou disposto a rever minha hipótese quando começar a parte empírica de minha pesquisa. No momento, essa hipótese tem me dado chão firme de onde partir. E como isso tudo não é gratuito, você terá em breve outra ocasião para ver o que estou mirando.
Abraço.
Jonatas
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