quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Sofrimento e Silêncio: alguns apontamentos sobre sofrimento psíquico e consumo de psicofármacos (PARTE 1)

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[Introdução de um artigo bem mais extenso. Como não passava por aqui há algum tempo, deixo essas notas breves.]


Jonatas Ferreira1

De acordo com dados do relatório Health at a Glance (2011), de 2000 e 2009, entre os países que compõem a Organization for Economic Cooperation and Development, houve um aumento de 60% no consumo de antidepressivos2. Esse crescimento parece indicativo não apenas de uma tendência global de aumento dos gastos com medicamentos (que apresentou um crescimento de 50% entre os países membros da OECD), mas, especificamente, uma evidência da importância que as substâncias psicoativas vêm ganhando nas sociedades contemporâneas. O Brasil, não está imune à sedução dos psicofármacos. Segundo dados da ANVISA, “Só em 2010, foram vendidas cerca de 10 milhões de caixas do medicamento Clonazepam”, o que representou um gasto em torno de R$ 92,4 milhões apenas com esse medicamento entre os brasileiros3. Para sermos exatos, em 2007 foram dispensadas 29.463 unidades de Clonazepan no nosso país, número que cresceu vertiginosamente em 2008 (4.784.730), 7.498.569 em 2009 e 10.590.047 em 20104. Esses números fizeram do Clonazepan (Rivotril, para os íntimos) o segundo medicamento mais comercializado no Brasil em 2010: estimativa de um consumo de 2,1 toneladas5. Se considerarmos os cinco psicotrópicos mais vendidos no Brasil nos anos de 2008 e 2010, temos um crescimento no número de unidades físicas dispensadas de mais de 320 vezes. Uma expansão certamente surpreendente. Em Portugal, ao que tudo indica, observamos também um crescimento expressivo no consumo de medicamentos psicoativos. Em estudo realizado pela Ordem dos Psicólogos que dimensionou o consumo de substâncias psicoativas entre usuários do SNS entre os anos de 2000 e 2009, verificou-se que, em 2004, “o consumo de ansiolíticos, hipnóticos, sedativos e antidepressivos no mercado do SNS em ambulatório foi de 129,5 (DDD6/1000 hab dia). Em 2009 este consumo passou para 162,23 representando um crescimento de 25,3% (Alto Comissariado da Saúde – Ministério da Saúde, 2010)”7. Se esses números estão corretos, o consumode substâncias psicoativas em Portugal está bem acima do resto da Europa, cujos índices não ultrapassam os 100 DDD/1000.

Fluoxetina, Paroxetina, Sertralina, Venlafaxina, Nefazodona, Citalopram, essas substâncias são as grandes protagonistas de uma transformação na psiquiatria. Elas constituem uma geração de psicotrópicos de maior tolerabilidade, cujo efeito mais evidente tem sido a medicalização8 de emoções antes consideradas aflições aceitáveis, associadas à própria condição humana, ou à vida num contexto de modernização. Esses medicamentos colocam-nos a oportunidade de estabilização psíquica num contexto de constante aceleração e consequente geração de ansiedades. Para muitos, o desenvolvimento de uma geração eficiente de psicofármacos parece ter livrado o comum dos mortais de um mal-estar desnecessário. É a partir desse pressuposto que Henri Laborit, anestesista e um dos descobridores do primeiro neuroléptico, escrevia em 1966:
O homem pedirá à farmacologia […] a liberação e o desenvolvimento de suas faculdades propriamente humanas. O operário que volta para casa após um dia de trabalho duro e desinteressante, que espera reencontrar um lar demasiadamente estreito, uma mulher cujo trabalho extenuante deixou de humor rabugento, crianças de pouca idade que gritam, […], passará no caminho da volta num bar e tomará alguns copos de álcool. Ele sabe de fato empiricamente que o álcool o deixa mais indiferente às preocupações que o acabrunham. Ele faz neuropsicofar-macologia sem o saber, utilizando uma droga bem mais tóxica que os tranquilizantes (Ehrenberg, 1995, p. 33).

A citação acima nos permite tocar em diversos temas importantes da investigação que temos em curso: primeiro, a promessa de uma psicofarmacologia capaz de promover o desenvolvimento de “faculdades propriamente humanas”; segundo, a constatação implícita de que o sofrimento é desumanizador – o que é uma novidade cultural: basta que nos reportemos ao cristianismo e à tradição trágica para nos darmos conta da importância de uma significação do sofrimento para o humanismo; e, por último, a expectativa de que o medicamento psicoativo em geral possa constituir uma resposta satisfatória ao trabalho rotineiro e tedioso, a uma mulher estressada, a crianças infelizes. Caricatural, esse pequeno relato chama nossa atenção para a força argumentativa de uma indústria que age num espaço cultural deixado aberto pelo colapso de grandes narrativas capazes de mobilizar e dar significado ao sofrimento dos indivíduos, ou no vazio de um niilismo radical do qual não podemos dissociar a sociedade do consumo e seu ímpeto em negar qualquer obstáculo à produção de gozos superficiais. Na citação acima, uma questão cultural parece se impor em meio à constatação do apelo que os psicofármacos passaram a paulatinamente desfrutar nos últimos trinta anos. “Qual o sentido do sofrimento nas sociedades contemporâneas?” E: “Por que sofrer se nosso sofrimento não constitui parte de uma 'ascese' razoável, não está a serviço da realização de nenhum conjunto de valores fundamentais?” Essas duas perguntas só fazem sentido se partirmos do pressuposto, como o fazemos, de que dar sentido ao sofrimento humano é um eixo fundamental da organização das culturas. Sobre isso, falaremos mais adiante.

Junto à oportunidade comercial que esses medicamentos representam, uma mudança epistemológica no tratamento do mal-estar psíquico foi promovida sob a égide da psiquiatria estado-unidense9, particularmente, com a popularização das últimas edições dos Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) que, como sabemos, passou a orientar e regular a prática de médicos sem qualquer especialização no tratamento de doenças mentais, ou mesmo do sofrimento psíquico, no diagnóstico de transtornos, síndromes etc. Mediante a catalogação de um conjunto de sintomas claramente estabelecidos, cardiologistas, ginecologistas, clínicos gerais podem agora chegar a uma terapêutica de base química para diversas formas de ansiedade e tristezas da vida cotidiana. Sob essa nova perspectiva, já não temos em nossa sociedade neuróticos, mas vítimas de transtornos, como o pânico, a depressão, a obsessão compulsiva; os sofrimentos psíquicos se individualizam radicalmente e já não são prioritariamente objeto de uma terapêutica pela fala, uma terapêutica em que esse tipo de padecimento ganhe significado, mas um tratamento que prioriza a atenuação de sintomas. E, assim, é possível afirmar com Grob e Horwitz (2010, p. 120): “A publicação do DSM-III em 1980 revolucionou a classificação psiquiátrica. A missão central das várias forças tarefas que lidaram com categorias de desordem particulares foi eliminar a interferência psicanalítica não comprovada que subjazia às classificações prévias do DSM. Os pesquisadores orientados pela psiquiatria, liderados pelo presidente da Força Tarefa do DSM, Robert Spitzer, insistiu que diagnósticos devem ser baseados na presença de sintomas manifestas sem considerar etiologia. Posto que seriam fundamentados em sintomas observáveis esses diagnósticos aumentam o grau de confiança e são mais apropriados para fins de pesquisa”. O sintoma é a própria doença ou, mais propriamente, o transtorno mental; a intervenção química nos processos cerebrais substitui ou toma a dianteira sobre o tratamento psicanalítico, sobre o tratamento pela palavra - em que o paciente era levado reconhecer o seu sofrimento, ou seja, dar-lhe proporção e sentido existencial10. Com a popularização das novas terapias de base química dissemina-se uma percepção de que não precisamos dar significado ao nosso sofrimento, mas silenciá-lo radicalmente. A consequência mais radical da privatização do sofrimento11, é o seu emudecimento, sua transformação em um conjunto de sintomas que podem ser objeto de tratamento bioquímico.

1 Pesquisador financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) E pelo Instituto nacional de Ciência e Tecnologia da Inovação Terapêutica (INCT-If).
2Dados do relatório Health at a Glance 2011 - OECD Indicators. Segundo esse mesmo relatório, as despesas totais com medicamentos entre os países membros da OECD foi de US$ 700 bilhões em 2009.
3http://portal.anvisa.gov.br; acesso em 20 de janeiro de 2012.
4CNGPC. Boletim de Farmacoepidemiologia, Vol. 2, ano 1, jul-dez de 2011.
6Defined Dayly Doses.
7 Ordem dos Psicólogos Portugueses. 2011. Evidência Científica sobre custo-efetividade de intervenções psicológicas em cuidados de saúde.
8A medicalização da existência se refere mais propriamente a uma redução das questões acerca do viver bem, às questões relativas ao estar biologicamente apto, ser capaz de responder convenientemente aos desejos da máquina capitalista – inclusive aos desejos da indústria farmacêutica.
9“As imposições regulamentares da FDA a partir de 1962, colocando os estudos controlados com placebo no centro da medicina e da produção de medicamentos, tornou inevitável a padronização dos diagnósticos, e o DSM-III acabou ganhando abrangência mundial. O fato de empresas farmacêuticas internacionais buscarem quase sempre o registro de seus medicamentos no mercado americano levou à adoção dos critérios do DSM-III em diversos países. Só com a uso dos diagnósticos padronizados oficialmente nos Estados Unidos seria possível obter a licença da FDA para comercializar um medicamento no mercado americano” (Aguiar, 2004, p. 61-62)
10Dentro das ciências médicas, a psiquiatria vive decerto alguns dilemas constituidores. Um deles, é tratar sintoma como se fosse etiologia. Tomemos o caso de um inibidor da recaptação da serotonina, como a sertralina, por exemplo. Embora um baixo nível de serotonina possa ser considerado como causa da depressão, isso não é exato. O que sabemos é que os inibidores de recaptação de serotonina ajudam no combate a alguns de seus sintomas. Do ponto de vista clínico, mesmo esse efeito tem sido contestado por autores como Irving Kirsch que, através de meta-análise de substâncias ditas antidepressivas e ansiolíticas, chega a constatação de que estas não diferenciam consideravelmente em eficácia do placebo.
11Quanto a essa privatização, podemos dizer que ela está associada ao colapso do Estado de Bem-Estar Social na Europa, à transformação do cuidado com a saúde em uma responsabilidade individual.

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