[Introdução de um artigo bem mais extenso. Como não passava por aqui há algum tempo, deixo essas notas breves.]
Jonatas Ferreira1
De acordo com dados do relatório
Health at a
Glance (2011), de
2000 e 2009, entre os países que compõem a Organization for
Economic Cooperation and Development, houve um aumento de 60% no
consumo de antidepressivos2.
Esse crescimento parece indicativo não apenas de uma tendência
global de aumento dos gastos com medicamentos (que apresentou um
crescimento de 50% entre os países membros da OECD), mas,
especificamente, uma evidência da importância que as substâncias
psicoativas vêm ganhando nas sociedades contemporâneas. O Brasil,
não está imune à sedução dos psicofármacos. Segundo dados da
ANVISA, “Só em 2010, foram vendidas cerca de 10 milhões de caixas
do medicamento Clonazepam”, o que representou um gasto em torno de
R$ 92,4 milhões apenas com esse medicamento entre os brasileiros3.
Para sermos exatos, em 2007 foram dispensadas 29.463 unidades de
Clonazepan no nosso país, número que cresceu vertiginosamente em
2008 (4.784.730), 7.498.569 em 2009 e 10.590.047 em 20104.
Esses números fizeram do Clonazepan (Rivotril, para os íntimos) o
segundo medicamento mais comercializado no Brasil em 2010: estimativa
de um consumo de 2,1 toneladas5.
Se considerarmos os cinco psicotrópicos mais vendidos no Brasil nos
anos de 2008 e 2010, temos um crescimento no número de unidades
físicas dispensadas de mais de 320 vezes. Uma expansão certamente
surpreendente. Em Portugal, ao que tudo indica, observamos também um
crescimento expressivo no consumo de medicamentos psicoativos. Em
estudo realizado pela Ordem dos Psicólogos que dimensionou o consumo
de substâncias psicoativas entre usuários do SNS entre os anos de
2000 e 2009, verificou-se que, em 2004, “o consumo de ansiolíticos,
hipnóticos, sedativos e antidepressivos no mercado do SNS em
ambulatório foi de 129,5 (DDD6/1000
hab dia). Em 2009 este consumo passou para 162,23 representando um
crescimento de 25,3% (Alto Comissariado da Saúde – Ministério da
Saúde, 2010)”7.
Se esses números estão corretos, o consumode substâncias
psicoativas em Portugal está bem acima do resto da Europa, cujos
índices não ultrapassam os 100 DDD/1000.
Fluoxetina, Paroxetina,
Sertralina, Venlafaxina, Nefazodona, Citalopram, essas substâncias
são as grandes protagonistas de uma transformação na psiquiatria.
Elas constituem uma geração de psicotrópicos de maior
tolerabilidade, cujo efeito mais evidente tem sido a medicalização8
de emoções antes consideradas aflições aceitáveis, associadas à
própria condição humana, ou à vida num contexto de modernização.
Esses medicamentos colocam-nos a oportunidade de estabilização
psíquica num contexto de constante aceleração e consequente
geração de ansiedades. Para muitos, o desenvolvimento de uma
geração eficiente de psicofármacos parece ter livrado o comum dos
mortais de um mal-estar desnecessário. É a partir desse pressuposto
que Henri Laborit, anestesista e um dos descobridores do primeiro
neuroléptico, escrevia em 1966:
O homem pedirá à farmacologia […] a liberação e o
desenvolvimento de suas faculdades propriamente humanas. O operário
que volta para casa após um dia de trabalho duro e desinteressante,
que espera reencontrar um lar demasiadamente estreito, uma mulher
cujo trabalho extenuante deixou de humor rabugento, crianças de
pouca idade que gritam, […], passará no caminho da volta num bar e
tomará alguns copos de álcool. Ele sabe de fato empiricamente que o
álcool o deixa mais indiferente às preocupações que o acabrunham.
Ele faz neuropsicofar-macologia sem o saber, utilizando uma droga bem
mais tóxica que os tranquilizantes (Ehrenberg, 1995, p. 33).
A citação acima nos permite tocar em diversos temas
importantes da investigação que temos em curso: primeiro, a
promessa de uma psicofarmacologia capaz de promover o desenvolvimento
de “faculdades propriamente humanas”; segundo, a constatação
implícita de que o sofrimento é desumanizador – o que é uma
novidade cultural: basta que nos reportemos ao cristianismo e à
tradição trágica para nos darmos conta da importância de uma
significação do sofrimento para o humanismo; e, por último, a
expectativa de que o medicamento psicoativo em geral possa constituir
uma resposta satisfatória ao trabalho rotineiro e tedioso, a uma
mulher estressada, a crianças infelizes. Caricatural, esse pequeno
relato chama nossa atenção para a força argumentativa de uma
indústria que age num espaço cultural deixado aberto pelo colapso
de grandes narrativas capazes de mobilizar e dar significado ao
sofrimento dos indivíduos, ou no vazio de um niilismo radical do
qual não podemos dissociar a sociedade do consumo e seu ímpeto em
negar qualquer obstáculo à produção de gozos superficiais. Na
citação acima, uma questão cultural parece se impor em meio à
constatação do apelo que os psicofármacos passaram a
paulatinamente desfrutar nos últimos trinta anos. “Qual o sentido
do sofrimento nas sociedades contemporâneas?” E: “Por que sofrer
se nosso sofrimento não constitui parte de uma 'ascese' razoável,
não está a serviço da realização de nenhum conjunto de valores
fundamentais?” Essas duas perguntas só fazem sentido se partirmos
do pressuposto, como o fazemos, de que dar sentido ao sofrimento
humano é um eixo fundamental da organização das culturas. Sobre
isso, falaremos mais adiante.
Junto à oportunidade comercial
que esses medicamentos representam, uma mudança epistemológica no
tratamento do mal-estar psíquico foi promovida sob a égide da
psiquiatria estado-unidense9,
particularmente, com a popularização das últimas edições dos
Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders (DSM)
que, como sabemos, passou a orientar e regular a prática de médicos
sem qualquer especialização no tratamento de doenças mentais, ou
mesmo do sofrimento psíquico, no diagnóstico de transtornos,
síndromes etc. Mediante a catalogação de um conjunto de sintomas
claramente estabelecidos, cardiologistas, ginecologistas, clínicos
gerais podem agora chegar a uma terapêutica de base química para
diversas formas de ansiedade e tristezas da vida cotidiana. Sob essa
nova perspectiva, já não temos em nossa sociedade neuróticos, mas
vítimas de transtornos, como o pânico, a depressão, a obsessão
compulsiva; os sofrimentos psíquicos se individualizam radicalmente
e já não são prioritariamente objeto de uma terapêutica pela
fala, uma terapêutica em que esse tipo de padecimento ganhe
significado, mas um tratamento que prioriza a atenuação de
sintomas. E, assim, é possível afirmar com Grob e Horwitz (2010, p.
120): “A publicação do DSM-III em 1980 revolucionou a
classificação psiquiátrica. A missão central das várias forças
tarefas que lidaram com categorias de desordem particulares foi
eliminar a interferência psicanalítica não comprovada que subjazia
às classificações prévias do DSM. Os pesquisadores orientados
pela psiquiatria, liderados pelo presidente da Força Tarefa do DSM,
Robert Spitzer, insistiu que diagnósticos devem ser baseados na
presença de sintomas manifestas sem considerar etiologia. Posto que
seriam fundamentados em sintomas observáveis esses diagnósticos
aumentam o grau de confiança e são mais apropriados para fins de
pesquisa”. O sintoma é a própria doença ou, mais propriamente, o
transtorno mental; a intervenção química nos processos cerebrais
substitui ou toma a dianteira sobre o tratamento psicanalítico,
sobre o tratamento pela palavra - em que o paciente era levado
reconhecer o
seu sofrimento, ou seja,
dar-lhe proporção
e sentido existencial10.
Com a popularização das novas terapias de base química
dissemina-se uma percepção de que não precisamos dar significado
ao nosso sofrimento, mas silenciá-lo radicalmente. A
consequência mais radical da privatização do sofrimento11,
é o seu emudecimento, sua transformação em um conjunto de sintomas
que podem ser objeto de tratamento bioquímico.
1
Pesquisador financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) E pelo Instituto nacional de
Ciência e Tecnologia da Inovação Terapêutica (INCT-If).
2Dados
do relatório Health at a Glance 2011 - OECD
Indicators. Segundo esse mesmo relatório, as despesas totais
com medicamentos entre os países membros da OECD foi de US$ 700
bilhões em 2009.
3http://portal.anvisa.gov.br;
acesso em 20 de janeiro de 2012.
4CNGPC.
Boletim de Farmacoepidemiologia, Vol. 2, ano 1, jul-dez de 2011.
5http://super.abril.com.br/saude/nacao-rivotril-587755.shtml;
acessado em 21 de outubro de 2012.
6Defined
Dayly Doses.
7
Ordem dos Psicólogos Portugueses. 2011. Evidência Científica
sobre custo-efetividade de intervenções psicológicas em cuidados
de saúde.
8A
medicalização da existência se refere mais propriamente a uma
redução das questões acerca do viver bem, às questões relativas
ao estar biologicamente apto, ser capaz de responder
convenientemente aos desejos da máquina capitalista – inclusive
aos desejos da indústria farmacêutica.
9“As
imposições regulamentares da FDA a partir de 1962, colocando os
estudos controlados com placebo no centro da medicina e da produção
de medicamentos, tornou inevitável a padronização dos
diagnósticos, e o DSM-III acabou ganhando abrangência mundial. O
fato de empresas farmacêuticas internacionais buscarem quase sempre
o registro de seus medicamentos no mercado americano levou à adoção
dos critérios do DSM-III em diversos países. Só com a uso dos
diagnósticos padronizados oficialmente nos Estados Unidos seria
possível obter a licença da FDA para comercializar um medicamento
no mercado americano” (Aguiar, 2004, p. 61-62)
10Dentro
das ciências médicas, a psiquiatria vive decerto alguns dilemas
constituidores. Um deles, é tratar sintoma como se fosse etiologia.
Tomemos o caso de um inibidor da recaptação da serotonina, como a
sertralina, por exemplo. Embora um baixo nível de serotonina possa
ser considerado como causa da depressão, isso não é exato. O que
sabemos é que os inibidores de recaptação de serotonina ajudam no
combate a alguns de seus sintomas. Do ponto de vista clínico, mesmo
esse efeito tem sido contestado por autores como Irving Kirsch que,
através de meta-análise de substâncias ditas antidepressivas e
ansiolíticas, chega a constatação de que estas não diferenciam
consideravelmente em eficácia do placebo.
11Quanto
a essa privatização, podemos dizer que ela está associada ao
colapso do Estado de Bem-Estar Social na Europa, à transformação
do cuidado com a saúde em uma responsabilidade individual.
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