Jonatas Ferreira
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Aprendi a ler sob a atenção bondosa de Dona Zuleide, de olhos azuis
celeste, e é uma pena não me recordar de seus vários sobrenomes -
embora não o saiba de fato, estou certo que uma pessoa tão
importante quanto ela, deve tê-los em maior quantidade que a
Princesa Isabel. Minha alfabetização ocorreu há muitas décadas,
no modestíssimo Grupo Escolar João XXIII – que ainda existe, vi-o
recentemente! Numa manhã ensolarada, ao descobrir que eu já tateava
de alguma forma o mundo das palavras escritas, Dona Zuleide levou-me
até a secretaria do “Grupo”, como chamávamos nossa escola, e
apresentou-me à sua Diretora. “Ele já sabe ler”, disse com
enorme sorriso. Tendo isso ocorrido por volta dos meus seis anos, não
era qualquer forma de precocidade que a impressionara, mas a simples
entrada de um aluno no mundo das letras que merecia celebração. Sua
alegria, e o discreto ceticismo da Diretora, deram-me a certeza de
que fizera alguma coisa importante. Provei minha competência recém
adquirida lendo trechos de algum volume prosaico, algo como uma lista
telefônica, não lembro ao certo, e talvez tenha recebido
felicitações. Certo mesmo é ter contado o tempo todo com a alegria
boa e comovida de minha professora.
Esse evento proporcionou-me, todavia, também a oportunidade de
experimentar uma frustração considerável. Supervalorizei o alcance
do que havia realizado. Julguei que o mero fato de saber ler
palavras, iria me abrir de imediato os significados das palavras que
formam o idioma português. Caso eu pudesse ler no papel a palavra
“prosódia”, que ouvira na rua em certa ocasião, de pronto o seu
sentido se abriria como mágica para mim. Dona Zuleide ponderou que a
leitura leitura me abriria portas para conhecer tais significados,
mas que o simples fato de poder ler a palavra “vastidão”, ou o
nome “Alcebíades”, em si, nada esclarecia sobre os horizontes
amplos do mundo, ou sobre a vida do famoso general ateniense, aliás,
espartano, digo, persa. Ora, de que serve essa tal leitura, se as
palavras que eu já sabia, continuo sabendo, e o que eu ainda não
sabia, continuo ignorando – perguntei-me ? Creio que essa foi minha
primeira experiência filosófica de estranhamento, ou seja, de
autoprodução que retorna como algo que não nos pertence, que não
nos diz respeito. Sabia ler, mas essa habilidade não me poupava das
duras tarefas do aprendizado, antes pressupunha uma carga de novas
tarefas com as quais me envolvo até hoje. Pra que aquilo, então?
Pra que isso, hoje, portanto?
É precisamente a autoprodução como característica essencial ao
processo de humanização, mas que pode sempre retornar como
estranheza, como algo impróprio, que constitui um tema recorrente
das investigações do jovem Marx. Creio que a tradução dos
Manuscritos Econômicos e Filosóficos que a Boitempo lançou
em 2004 oferecem ao leitor uma distinção conceitual importante para
nós que nos envolvemos durante tanto tempo com a ideia marxiana de
alienação - hoje traduzida como “estranhamento”. Há ali
claramente definida uma diferença importante entre exteriorização
e estranhamento, entre Entäusserung e Entfremdung, que
nunca percebi nas traduções anteriores – e, como não sou
cuidadoso, há aqui simplesmente a possibilidade de ter eu
negligenciado isso que já era sabido por todos. É importante
perceber como Marx se debruça sobre um conceito claramente
romântico, como o é Entfremdung (estranhamento
ou alienação, dependendo da tradução), para dali retirar
conclusões muito particulares. Desde Fichte, uma discussão sobre a
essência do ser humano esteve relacionada ao ato de exteriorização
de si, à produção de objetos, instrumentos, mediante os quais o
ser humano se torna outro, ou seja, exterioriza-se (entäussert
sich) e, assim, tanto materializa quanto amplia suas
possibilidades no mundo. Em outras palavras, se é bem verdade
que a escrita deste texto é uma possibilidade minha, ela me é
externa e, num certo sentido, não se confunde comigo. A essência do ser humano, para Fichte, é
esse agir. O sujeito nega-se nos objetos, na objetividade, que produz
e, no entanto, esse ato é sua quintessência. Hegel fala
sobre essa exteriorização, esse autoproduzir-se do ser humano, nos
escritos de Jena – no Sistema da Vida Ética, por exemplo.
Ali já fica claro que esse processo é fundamentalmente técnico,
ele requer trabalho, instrumentos, e que, enquanto tal, confere ao
ser humano uma condição intermediada. O ser humano humaniza-se
quando coloca entre desejo e fruição, entre a vontade de comer uma
fruta e o ato de comê-la, um intermediário: o trabalho e os meios
técnicos que o tornam possível. E isso implica que esse
'autoproduzir-se' é, ao mesmo tempo, exteriorização e estranhamento
(alienação). A alienação humana é, aliás, um motivo religioso e
Hegel tinha plena consciência disso. O homem que, com o “suor de
seu rosto ganha o seu pão”, é aquele mesmo que conheceu a Queda,
o estranhamento de sua própria essência como consequência do
pecado original.
Marx compara constantemente o homem e o animal em vários de seus
textos de juventude, inclusive, e muito particularmente, nos
Manuscritos – essa oposição
é, aliás, muito importante para entendermos uma dimensão
importante da dialética hegeliana, como argumenta Agamben em O
Aberto, e seu sentido religioso.
Em sua 'inocência', o animal nada interpõe entre si próprio e sua
necessidade, ele é um com ela e, por esse motivo, vive de certo modo
na plenitude de sua essência. Mas precisamente por esse motivo
jamais poderá se tornar um ser universal – cujo destino seria o
controle do mundo físico. Com o ser humano, por outro lado, algo
distinto ocorre: ele é essencialmente um autoproduzir-se. E, a
partir daqui, Marx se diferencia de Hegel. Se a exteriorização de
si é fundamental à própria condição humana, a alienação
(estranhamento) que dali decorre não é necessária, mas uma
'contingência' histórica. O sentimento de não se reconhecer
naquilo que se faz diz respeito, deste modo, a condições sociais
específicas do processo de exteriorização humana, nomeadamente, à
existência de um regime de propriadade privada e, de modo muito mais
radical, à existência do modo burguês de exploração do trabalho.
Na página 81 de minha tradução dos Manuscritos,
leio a esse respeito:
“quanto mais o trabalhador se
desgasta trabalhando (ausarbeitet),
tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd)
que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu
mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si
próprio”.
Nos Grundrisse, ao tentar explicar o processo implícito na
compra e venda da mercadoria trabalho - curioso processo no qual o
comprador não compra um valor de uso, mas um valor que será
transformado em capital -, Marx recorre mais uma vez ao conceito de
estranhamento para perceber este processo da perspectiva do
trabalhador. Na edição inglesa desta obra, coleção Peguin
Classics, lemos a seguinte passagem, que roubo do excelente Prefácio
de Martin Nicolau, e traduzo livremente:
É claro portanto que o trabalhador não pode ficar rico nessa troca,
posto que, em troca por sua capacidade de trabalho, concebida como
uma magnitude fixa, disponível, ele submete seu poder criativo, como
Esaú vendeu sua liberdade por uma sopa de batatas. Pelo contrário,
ele necessariamente empobrece a si mesmo, como veremos adiante,
porque o poder criativo de seu trabalho se estabelece como poder do
capital, como um poder alheio que o confronta... Assim, todo o
progresso da civilização, ou, em outras palavras, cada aumento nos
poderes da produção social, … nos poderes produtivos do próprio
trabalho – tais como resultam da ciência, invenções, divisão e
combinação do trabalho, meios de comunicação aperfeiçoados,
criação do mundo do mercado, maquinas etc. - enriquece não o
trabalhador, mas, antes, o capital; aumenta apenas o poder criativo
do capital. Posto que o capital é a antítese do trabalhador, isso
apenas aumenta o poder objetivo que paira sobre o trabalho” (Marx, op.cit., pp.
307-8)
O retorno da exteriorização, da produção humana como algo estranho, alheio, como
algo inquietante é um tema recorrente do romantismo alemão, assim
como o é a busca de alguma estratégia de superação
desta fragmentação no seio da subjetividade moderna. A imaginação
artística em Friedrich Schlegel e Novalis foi concebida, por
exemplo, como um remédio para esse mal – Hegel pensará
no progresso da Razão e Marx na vitória do proletariado. No âmbito
do romantismo como um todo, diga-se, há de se destacar uma vertente
literária fantástica que depõe de forma interessantíssima sobre a
alienação, sobre o estranhamento - Marx também fala de cadeiras que, a partir de um modo fetichista de ver o mundo, saem trotando com suas quatro pernas. Para a imaginação romântica, frequentemente, é o próprio
corpo humano que, desmembrado pela lógica científica, pela dinâmica
da vida urbana, retorna como algo alheio. Ocorre-me, por exemplo, um
delicioso conto de Gogól: O Nariz.
Nesta pequena obra-prima, o assessor de colegiatura Kovalióv, vê
com desespero suas pretensões de ascensão social objetivarem-se
fisicamente quando perde seu nariz, e, que achado, teima em
ganhar vida autônoma, em seguir carreira solo. Aqui não se
trata apenas de reconhecer como seu algo ao mesmo tempo íntimo e
público, um nariz, mas de convencer essa parte rebelada de seus
compromissos com a coerência do todo, do cidadão Kovalióv. O
embaraço com o qual Kovalióv se dirige ao seu próprio nariz, que
ele encontra em uma igreja de Moscou é antológico.
“Como explicar?!”, pensou
Kovalióv, e, recobrando o ânimo, recomeçou. “Bem, é claro que
eu...aliás, eu sou major. O senhor há de convir que é incoveniente
que ande sem nariz. Qualquer vendedora de laranjas descascadas na
cponte Voskresênski pode ficar ali sentada sem nariz, mas um rosto
que aspira ao cargo de governador, sem dúvida alguma... imagine o
senhor mesmo... não sei, excelentíssimo senhor... (então o major
Kovalióv encolheu os ombros)... me desculpe... mas se considerar
isto de acordo com as regras do dever e da honra... o senhor mesmo
poderá compreender...”
A semana passada, meu computador,
que julgo ser algo como o nariz de Kovalióv, também se rebelou ao
ser invadido por um vírus. Senti-me igualmente desamparado.
O que dizer da “mão encantada”,
de que nos fala Nerval, cuja vontade própria termina por levar ao
cadafalso Eustache Bouteroue?! Aqui, temos a curiosa situação em
que, não apenas uma parte do corpo ganha autonomia em relação ao
indivíduo: ela sobrevive à execução do desafortunado Bouteroue.
Poderíamos ainda mencionar as inúmeras sombras que se desgarram de
seus corpos na literatura do século XIX, entre as quais Italo
Calvino seleciona em sua coletânea de literatura fantástica do
século XIX um conto de Hans Christian Andersen de 1847? No começo
do século XX, um pequeno e curioso filme foi produzido a partir
desse mesmo tipo de questão, A Mão Ladra,
que lincamos abaixo.
Se em Marx há um depoimento acerca
do sentido social do estranhamento, da inquietação (Unheimlichkeit)
que marcam a vida moderna, Freud, no começo do século XX, ao se
debruçar sobre um conhecido conto de Hoffmann, O Homem de
Areia, apresenta uma dimensão
mais psicológica e mesmo trágica desse fenômeno. Acho que as duas
leituras se complementam, embora possa ver tensões claras entre as
duas. Acerca de Freud e seu célebre texto é preciso esclarecer: a
questão “estética” com a qual Freud se debruça em O
Inquietante (Das
Unheimliche), de 1918, coloca-se
nessa longa história de reflexão sobre a alienação, sobre o
estranhamento, na qual figuram os românticos, Hegel, Marx. É a vida
moderna que apresenta aquilo que nos diz respeito mais intimamente
como algo estranho e vice-versa – Simmel, por exemplo, falará da
estranha intimidade que a compartilha dos serviços de transporte
urbano implica. Concentrando-se na sensação de inquietude, em seu
sentido estético (tenho em mente aqui a origem etimológica dessa
palavra, ou seja, aesthesis:
sentir), Freud vai contemplar aquilo que parece escapar às
articulações racionais sobre a alienação, às articulações
discursivas. Sua intenção é iluminista: recuperar parte desse
conteúdo que recusa a simbolização para um terreno simbólico.
Para Freud, o sentimento de
inquietude diz respeito a uma série de ambiguidades: entre o que é
próximo e o que é mais distante, entre o doméstico, o particular e
público, por exemplo. A questão sempre é que aquilo que se nos
apresenta como distante, toque-nos tão intimamente, diga-nos
respeito de modo tão essencial. Mediante uma exegese de O
Homem de Areia, de Ernst Theodor
Amadeus Hoffmann, ícone do romantismo alemão, Freud pretende ter
acesso a essas e ambiguidades e, através delas, compreender melhor o
que há de inquitante em sensações de “déjà vu”,
extraordinárias coincidências núméricas, seres inanimados que nos
parecem mecânicos e vice-versa, situações familiares que nos
parecem estranhas etc. No conto de Hoffmann esses elementos aparecem
em profusão: uma boneca mecânica por quem Natanael, personagem
central da narrativa, apaixona-se, julgando-a humana, o retorno de um
personagem demoníaco sob diversos disfarses, dando a sensação de
que o real de alguma forma estagnou etc. A estratégia hermenêutica
de Freud não surpreende os seus leitores: desencavar as
ambivalências dos sentimentos do personagem central para com sua
amada e seu pai e verificar, na impossibilidade de ele aceitar tais
ambivalências, colocando seus sentimentos em perspectiva, o motivo para o surto psicótico ao qual ele sucumbe.
Num sentido bem restrito, poderíamos
dizer que a leitura de Freud de um processo de estranhamento retorna
ao sentido que Hegel confere a esse processo: ontologicamente
fundamental, impossível de ser transcendido pelo ser humano como
tal. O estranho é decorrente de um retorno dos indivíduos a uma
fase de sua estruturação psíquica em que projetavam o mundo como
extensões de seus desejos. Se o amadurecimento psíquico nos faz
sair do narcisismo primário de nossa existência, ele continua
pulsando dentro de nós, aguardando um momento propício para
eclodir. Natanael não precisaria ter o destino que teve se alguns
eventos propícios o tivessem poupado, ou resgatado. No entanto, sob as condições da vida moderna, os indivíduos estão sempre confrontados com uma realidade cujo sentido lhes escapa precisamente quando procuram dominá-la de forma categórica. Neste sentido, a
dimensão psicológica que Freud elabora acerca do estranhamento
humano não contradiz o pensamento marxiano, antes abre possibilidades analíticas para as quais Marx não poderia estar atento.
Mas pode ser que tudo isso que vi
como forma de elaboração de uma questão moderna central, seja apenas projeção de meu
narcisismo primário. É possível que não haja qualquer relação entre Marx,
Freud, Hegel, Hoffmann, Gogól e minha professora. Neste caso,
todavia, voltaria a sensação de estranheza, de inquietação.
Seria possível superá-la estudando um pouco mais?
4 comentários:
Belo texto professor. Possa ser que o texto, seja tanto sua projeção narcísica, quanto uma chave de interpretação de uma questão moderna. Ou seja, possa ser que seja possível lançar luz sobre processo sociais mediante uma projeção narcísica.... Afinal, comum a todos.
Josias.
Professor Josias (o pai de Tomé!),
Muito obrigado. O senhor é sempre muito gentil comigo.
E, afinal, de onde provém o dito autocentramento do narcisismo?
Coloquei no texto mais algumas linhas - uma citação dos Grundrisse. Gostaria de ter colocado um outro vídeo, abrindo o post, mas o Youtube não permitiu. Aproveito o seu comentário para apontar um link para este pequeno curta, do qual gosto muito. Chama-se O Homem de Areia e é baseada na fábula, que gerou o conto, que gerou o texto de Freud, sobre os quais me debruço.
Aí vai:
http://www.youtube.com/watch?v=UjgHbRrnjhU
Dizem que a luta é vã, Prof. Jonatas. Mas Josias, nosso amigo, com sua costumeira benevolência, aponta-nos uma possibilidade calcada em algo comum a todos. Pena que venha D. Zuleide, zelosa qual personagem de vídeo, colocar-nos em risco de cegueira com uma perguntinha, inocente que nem malandro em delegacia: mas, afinal, “de onde provém o dito autocentramento do narcisismo?” Inspirado pelo cazzo, sem dar a mínima para o conselho de pessoas mais experientes que eu, e volúvel como sou, Jonatas, não resisto à tentação de voltar, pela milionésima quinta vez, à tentativa de entender o quê diacho seria a tal de apercepção transcendental de Kant... Taí uma coisa que minha professora não me ensinou! Para mim, Prof., a origem de tudo deve ter algo a ver com isso, não sei. Ou talvez tenha a ver com o significado da palavra “cuidado”, tb não sei. Só sei que alguém está dormindo, agora, e que é preciso estar atento... Adorei o texto. Um abraço.
Mauro Mesquita
Mauro Mesquita, garoto bom,
Obrigado pelo comentário. Acho que a apercepção transcendental já é sintoma, assim como todo o problema relacionado ao julgamento que Kant expõe na CRP é sintoma. Mais que isso, as aporias kantianas - como sei que meus conceitos correspondem aos objetos? como encontrarei uma unidade entre o eu absoluto e eu objetivo? - já falam de uma sociedade cuja dinâmica depende da constante revolução técnica, do impulso por dominar o real que afinal termina por nos dominar. Aristóteles dava sua solução para o problema do julgamento: experiência, ver muitas vezes o sol girar em torno da terra. Mas o que vale a experiência num contexto de constante transformação? Para mim, o sujeito é sintoma, condição de racionalização mínima da vida quando a autoridade da tradição foi pro espaço. O que é a categoria subjetividade fora de um contexto de modernidade? Minha pergunta sobre narcisismo ia nessa direção. Ou seja, reafirmava o que Josias já havia depreendido do texto que publiquei sobre alienação.
E quando apareces no Recife? Abraço, Jonatas
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