quinta-feira, 15 de março de 2012

A razão dos alemães

Niklas Luhmann

Por Edilene Leal - doutoranda da UFS


O problema

A relação entre racionalidade e modernidade sempre manteve um status privilegiado entre os principais intérpretes da sociedade moderna, particularmente entre os alemães. De Weber a Habermas, a razão oferece (e assim deve ser) os substratos fundamentais para a configuração de todo aparato social. Luhmann, entretanto, inaugura uma teoria radicalmente diferenciada dessa relação na medida em que faz desaparecer os seres humanos e sua racionalidade do lado da observação (forma) no qual se encontram os sistemas científicos, ou seja, nos sistemas societários; o outro lado permanece, sob essa perspectiva, totalmente inacessível ao cientista social. Por isso, afirma que: “Cruzar a fronteira até o outro lado da forma se considera ‘cinismo’” (luhmann, 2007:132). Se comparado a outros pensadores como Weber, Adorno e Hokheimer, Habermas teria esse cinismo ainda mais agravado uma vez que, em pleno “fins do século XX, [pretendeu sustentar] a tese de que a teoria da sociedade e a teoria da racionalidade se condicionam mutuamente” (Idem, p.133). A tese aqui em tela é aquela segundo a qual a modernidade é produto evolutivo da supressão da racionalidade e da moral tradicionais de estrutura conteudística e hierárquica, e em seu lugar emergiu uma ética racional fundada em procedimentos despojados de valoração e de interesses. Porém, é exatamente nesse ponto (a teoria da modernidade e da racionalidade) a partir do qual Luhmann e Habermas mais se afastam que eles mais se aproximam, pois também Luhmann reclama uma estrutura procedimental para manter a diferença entre os sistemas e seu entorno (terreno das lutas culturais e dos conflitos políticos). Isto é, ambos acreditam e efetivamente desejam, apesar das premissas teóricas antagônicas, a configuração de uma super-sociedade mundial, de base amoral e pós-convencional, dando as coordenadas para o resto do mundo.

Racionalidade e Modernidade

No âmbito da sociologia, as teorias sobre a modernidade em geral partem da premissa weberiana de que sua característica predominante é o paradoxo entre a racionalidade de meios/fins e a racionalidade de valores. O primeiro tipo de racionalidade seria responsável pela condução das ordens sociais (Estado, ciência, burocracia, etc.) as quais se tornaram plenamente desenvolvidas nos tempos modernos, mas, à custa da perda de significado dos valores políticos, culturais e éticos cuja atuação limitar-se-ia à esfera da subjetividade. Em vista dessa situação, os autores – Weber, Adorno, Horkheimer – concluíram pelo domínio inexorável da racionalidade instrumental contra o qual não existiriam possibilidades efetivas de saída. Habermas, no entanto, recusa essa compreensão e pretende recompor o quadro da racionalidade valorativa moderna sob as bases de uma ação comunicativa que se mantém apartada da racionalidade dos sistemas sociais. Nesse caso, leva ao extremo a bifurcação da racionalidade que ele mesmo critica em Weber, uma vez que acredita que o principal problema da modernidade atual seria a expansão da racionalidade técnica sobre a racionalidade comunicativa, fenômeno que ele denomina colonização do mundo da vida. Assim Habermas defenderia uma “pureza” da razão que já havia sido perdida pelas análises de Weber, a partir da qual seria possível recuperar o quadro dos valores modernos ocidentais tornando-os efetivamente válidos paras todos os cantos do mundo. Habermas, portanto, apresenta claramente um projeto normativo para as sociedades modernas fundado nos valores ocidentais, segundo ele, valores duramente conquistados. O que ele faz com a racionalidade sistêmica? Acredita que é possível cuidar para mantê-la apartada do andamento produtivo dos consensos comunicativos.

Esses autores - Weber, Adorno, Horkheimer e Habermas -, caracterizam-se por uma singular perspicácia analítica que o fizeram registrar, repetidamente, que a racionalidade moderna produz discursos falsos ou enganadores os quais resultaram em metanarrativas, em projetos totalitários, em defesa de verdades absolutas. Entretanto, em todos eles percebemos a formulação, de maneira sub-reptícia ou mesmo claramente, de análises que recaem nesses discursos normativos. Pois, quando Weber concluiu que o processo de racionalização tornou-se dominante e refratário a mudanças no seu curso de expansão técnica ou quando Adorno e Hokheimer afirmam que vivemos sob a égide de um mundo administrado ou ainda quando Habermas afirma a existência da separação entre a lógica comunicativa e a sistemática, apontando para um o resguardo universal de consensos racionais; de forma semelhante, excedem seus próprios domínios epistemológicos e nos deixam tomar suas preferências analíticas como resultados desinteressados. A principal motivação para isso é o descompasso entre a análise da sociedade tal como é e determinado ideal de como deveria ser a sociedade.

A crítica desconstrutivista e seus limites

Em tempos mais atuais, o processo crítico se esgarça em torno dessas recaídas nas metafísicas da totalidade e da absolutização valorativa. Destacamos a desconstrução derridariana da racionalidade moderna, constituída por uma indiscutível consistência crítica. Porém, se a desconstrução como método cumpre, em primeira instância, a função a que se propõe, isto é, evidenciar o aspecto eminentemente construído dos conceitos, em segunda instância, cria outras dificuldades porque esbarra em problemas muito semelhantes, embora através de um percurso oposto, àquelas produzidas pela vertente de pensamento que se decide por um mundo em que a racionalidade técnica define os parâmetros da vida contemporânea. Pois, um mundo governado, prioritariamente, pela técnica é um mundo governado por ninguém, cujas referências valorativas comuns perdem, em grande medida, seu sentido, para o qual a “condução da vida”, como já admoestava Weber, cabe a cada um em sua intimidade. Ora, este também pode ser e, inevitavelmente seria, um mundo plenamente desconstruído de suas metafísicas e de seus encargos político-valorativos, desprovido de qualquer fundamentação racional para orientação de condutas. Quando se opera com a desconstrução, a pura contingência acaba atingindo o lugar antes reservado à racionalidade pela modernidade, de forma que o mesmo vazio ético vislumbrado por Hannah Arendt na autodefesa de Eichmann – segundo a qual era apenas um burocrata exercendo sua função, portanto, incapaz de ser responsabilizado por seus atos – comparece no “paraíso” da plena relativização teórica e prática do mundo.

Dessa maneira, substituir a racionalidade pela desconstrução, relativização, construção ou qualquer outra denominação semelhante significou, por um lado, a evidência das visões unilaterais do mundo, mas, por outro lado, também significou o impedimento de que as múltiplas visões concorrentes fossem criticadas. Essa é, provavelmente, uma das razões para falarmos, ainda hoje, sobre o avanço indomável da racionalidade técnica à custa de um menor desempenho da racionalidade valorativa, como se a sociedade pudesse constituir-se independentemente de fatores culturais gerais, da partilha de um núcleo duro de valores, de relações intersubjetivas. A afirmação de que a técnica é a característica preponderante nas sociedades atuais não vem acompanhada das perguntas de quem (grupos ou indivíduos) ou o que (instituições) conduzem o domínio da técnica. Nesse sentido, Luhmann é o autor que leva às últimas consequências essa visão desencarnada da racionalidade técnica, pois lembra aos autores que desenvolveram essa dicotomia entre racionalidade técnica e valorativa, de Weber a Habermas, que o uso cada vez mais efetivo e ampliado da “forma” técnica nas sociedades diferenciadas nada tem a ver com o caráter racional dessas sociedades. Pois, é apenas uma instalação e, enquanto tal encontra-se fora da forma racionalidade que mobiliza outros parâmetros distintivos. Ou seja, a técnica é apenas meio, são os homens, sendo racionais ou irracionais, orientando-se ou não por valores, que dão sentido (fim) à instalação técnica.

Luhmann e a perspectiva da diferença
Ao que parece, a teoria dos sistemas de Luhmann também retoma o dualismo (racionalidade valorativa/racionalidade instrumental) de Max Weber, Adorno, Horkheimer e Habermas, uma vez que parte da relação entre sistema que corresponderia à racionalidade instrumental e o entorno do sistema, o qual corresponderia à racionalidade referente a valores. Luhmann, todavia, faz mais do que manter essa diferença: vale-se da teoria da diferença entre sistema/entorno para neutralizar o entorno, isto é, com suas opiniões múltiplas, seus sentimentos, seus desejos, com sua autonomia individual, com a escolha de seus candidatos, etc. Se, aparentemente, podemos ficar tranquilos com o fato de que a racionalidade sistêmica não poderá dominar o entorno, não se pode deixar de considerar o esvaziamento de noções e práticas fundamentais das sociedades atuais: a prática do amor erótico é mera internalização de códigos pelos amantes, a qual promove o florescer do sentimento do amor. Tanto é assim que, segundo Luhmann, as mulheres não devem ler textos literários, porque de alguma maneira se imunizariamm das técnicas de sedução de seus amantes. Na esfera do subsistema político, a legitimidade transmuta-se em “operador sistêmico”, com a função de impedir que as contingências ou mudanças oriundas do entorno invadam seu sistema. Dessa forma, a legitimidade ocorre como mera “ilusão” funcionalmente necessária para o sistema político, já que se geram expectativas de comportamentos diferenciados cujo processo de decisão já antecipou esses comportamentos na legitimidade pelo procedimento.

A racionalidade sistêmica em Luhmann consiste no fato de que as sociedades, historicamente, criaram códigos, que, por sua vez, são cada vez mais necessários nas sociedades diferenciadas, como meio de organizar, minimamente, as relações sociais e suspender o estado permanente de conflito entre possibilidades variadas. Se os esforços na contenção do domínio do conflito são, nesse sentido, incomensuráveis e inesgotáveis, sempre pode haver a possibilidade de que o turbilhão valorativo constitutivo do entorno, no qual existem os seres humanos, possa irromper e controlar os subsistemas. Isto é, o receio de Luhmann é contrário ao receio de Habermas: enquanto este receava que os sistemas societários invadissem o mundo da vida, aquele temia que valores específicos pudessem invadir um subsistema ou subsistemas e impor a eles seus próprios interesses, minando o acordo, estruturalmente conquistado, de impermeabilidade dos subsistemas e dos seus códigos: diferenciados e fechados em si mesmos.

Ora, se todo “equipamento” da “engenharia social” de Luhmann é despojado de valoração – racionalidade, técnica, comunicação, códigos –, tanto do ponto de vista metateórico como pragmático, numa situação de invasão dos subsistemas pelo mundo ambiente, então quaisquer valores grupais ou individuais podem preencher o vazio valorativo dos subsistemas. Ainda mais: dado que tudo é sociedade e que esta estrutura-se, autopoieticamente, qualquer desestruturação em um subsistema corre o risco de afetar todo o resto.

Sendo assim, é preciso perguntar se tal situação é possível: a existência de sociedades “perfeitamente” despojadas de valoração de qualquer espécie, sem que interesses individuais ou de grupos conduzam suas ações, nas quais os processos políticos/culturais atuem mediante técnicas e procedimentos, cuja principal preocupação interna seja a manutenção de sua diferença caracterizadora? Para Luhmann, essa seria a descrição das sociedades modernas atuais. E de qualquer maneira, essa seria uma situação também “ideal”, ou seja, existe em Luhmann uma consideração positiva à medida que o ponto de partida de suas investigações como observador de segunda ordem é o ponto de partida da racionalidade sistêmica. Mas é bom lembrar que esses sistemas societários caracterizam um dos lados da diferença entre sistema/entorno, ou seja, o mundo dos valores concorrentes, das disputas políticas, das diferenças culturais caracteriza o outro lado da diferença e que, primordialmente, esses sistemas se autoconstituem num processo permanente de absorção e rejeição (acoplamento/desacoplamento) de elementos (reivindicações, disputas, exigências, etc.) oriundos da sociedade.

Dessa maneira, se considerarmos que Luhmann acertou na sua “descrição” dessa “Sociedade Mundial” atual – já que supôs ser positiva a confluência de sociedades em uma unidade sistêmica mundial –, o prognóstico de Weber, Adorno, Horkheimer atualizou-se em grande parte, excetuando a hipótese em comum (nos três últimos), segundo a qual a racionalidade técnica não se efetivaria em um total vazio valorativo, ao contrário, seria conduzida por uma encarniçada luta pelo poder e pela dominação dos recursos econômicos e culturais. Poderíamos supor que Luhmann se aproximaria mais de Habermas, ainda que por meio de estratégias teóricas diferentes, uma vez que ambos “anseiam” pelo desaparecimento de interesses, valores, sentimentos, como condutores das ações intersubjetivas.

Por fim, acreditamos que essa hipótese – recorrentemente criticada, reclamada ou negada pelos autores da modernidade e da pós-modernidade –, a mais acertada para pensar as sociedades hodiernas. Pois, se de fato vivemos sob o domínio da racionalidade técnica, este domínio atualiza-se por meio de lutas culturais, disputas de valores, divergências ou consensos políticos. Ora, esses modos de atualização, de qualquer maneira, não decorrem da essência da racionalidade valorativa? Não estaríamos, também, nos movendo no domínio dos valores políticos, sociais, culturais e estéticos, à medida que ampliamos o alcance e a rede de relações do projeto civilizatório em curso? Por fim, acreditamos que, se determinados valores – antes considerados fundamentais e universais pelo pensamento moderno – perderam grande parte de sua força nos tempos atuais, não significa dizer que vivemos sob o vazio valorativo da racionalidade da técnica. Se, porventura, permanecem as lutas cotidianas, os dissensos, as diferenças é porque valores concorrentes disputam, entre si, sua vez de tornarem-se consenso e de espalharem-se pelo mundo humano.

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