Gabriel Peters (IESP/UERJ)
O
escudo nosso de cada dia contra a psicose nos dai hoje
Ao
caracterizarem o mundo prático da vida cotidiana em que o indivíduo passa a
parte mais substancial de seu tempo e coexiste com a maioria de seus
semelhantes como a “realidade suprema” (Paramount
Reality), os sociólogos de inspiração fenomenológica quiseram ressaltar que
essa esfera de experiência constitui o referencial primeiro com base no qual o
mesmo indivíduo distingue entre o que é mais e o que é menos real (Schutz,
1967: 231; Giddens, 2002: 45). A existência objetiva desse mundo partilhado com
outros não é, na maior parte dos casos, reclamada conscientemente, mas
simplesmente pressuposta como absolutamente evidente. Como viu Wittgenstein
(1969: 18), não se trata de um mundo cuja existência sustentamos por termos
sido convencidos de sua realidade, mas de um mundo cuja existência, tida como
dada, nos fornece o parâmetro mesmo com base no qual decidimos entre o que é
verdadeiro e o que é falso.
A
experiência da realidade suprema do mundo da vida cotidiana é pontilhada,
entretanto, por incursões a domínios fronteiriços à vivência prática do
universo social ordinário, isto é, a outras esferas vivenciais para as quais o
sujeito emigra momentaneamente e que adquirem a atmosfera de realidade apenas
enquanto dura a permanência do indivíduo nelas: uma trama romanesca na qual a
leitora se perde, esquecendo quaisquer preocupações relativas ao mundo real do
seu trabalho ou das suas relações familiares; um sonho intensamente vivenciado
e apenas revelado como tal após o despertar (possivelmente com algum sinal de
que o corpo do sonhador respondeu à experiência onírica como responderia a uma
experiência real); um cálculo complexo que
leva um matemático apaixonado pelo seu ofício a esquecer-se de si e do
mundo.
Embora todas essas experiências
marquem um escape momentâneo aos contornos da realidade suprema devido à
entrada em outros mundos experienciais, as vivências nesses “subuniversos” (na
expressão de William James) obviamente diferem entre si em uma série de
aspectos. Há, por exemplo, um continuum de
graus distintos de emigração em relação à realidade suprema da vida cotidiana
que vai desde o escape total próprio ao sonho, passa pela imersão consciente no
mundo fantasioso de uma peça teatral, até chegar às pequenas irrupções do
cômico na experiência ordinária (como bem mostrou Cynthia Hamlin).
Segundo
Peter Berger (1972: 164-165; 2003: 35-36), o caráter de “escudo” ou “casulo”
existencial protetor que a ordem social adquire para o animal humano pode ser
mais agudamente vislumbrado nas situações de significativa perturbação da distinção
entre a experiência na realidade suprema e as vivências alternativas em relação
a essa realidade. Por exemplo, filósofos céticos de todas as eras já
sublinharam que, no mais das vezes, não experimentamos nossos sonhos como tais,
mas sim com o mesmo assentimento ingênuo que conferimos às nossas experiências
na “verdadeira realidade”. É somente com o despertar que podemos
retrospectivamente compreender o sonho recém-vivenciado como uma fantasia
privada. A pergunta que os céticos extraem dessa transição, largamente
explorada em filmes de ficção científica como A origem, é: se fomos capazes de adquirir consciência de que
estávamos imersos em uma fantasia onírica apenas a posteriori, o que nos garante que não continuamos sonhando agora,
nesse exato momento?
Há
uma diferença crucial entre acalentar tais dúvidas céticas em um plano
estritamente intelectual e vivê-las efetivamente na nossa experiência do
mundo (Giddens, 2002: 41). Esta pode ser a diferença mesma que separa o
filósofo cético do psicótico. Trazendo os instrumentos da inteligência
fenomenológica para o âmbito de investigação das doenças mentais, mas sem
romantizar indevidamente a condição esquizofrênica, o jovem Ronald Laing (1974)
reconheceu que certas formas de esquizofrenia tinham uma espécie de componente
filosófico vivido, com a “insegurança ontológica” de determinados pacientes
derivando justamente do fato de que levavam visceralmente
a sério, em sua existência cotidiana e trato com os outros, algumas dúvidas
céticas que os filósofos se acostumaram a colocar tranquilamente em seus
gabinetes: em que medida a existência dos objetos materiais e de outras pessoas
depende da representação que faço deles em minha mente? Como posso estar seguro
de conhecer os conteúdos das mentes de outros indivíduos? Que garantia tenho da
existência do meu próprio corpo?
O
enfraquecimento ou perda “cética” dos referenciais cognitivos que conferiam o
mínimo indispensável de segurança e estabilidade psíquica ao caminho prático e
experiencial do indivíduo pelo mundo engendram uma terrível sensação de que se
está lançado em um palco de ameaças iminentes,
porém difusas e incompreensíveis. Espero não soar como psicanalista de boteco
se sublinhar que o pânico adulto advindo de uma extrema desorientação cognitiva
em face de um cenário a que se está inescapavelmente exposto não é assim tão
diferente, em seus contornos fenomenológicos, do medo da escuridão entre as
crianças (ver mais abaixo).
Com efeito, um achado estatístico
frequente na literatura sobre a esquizofrenia aponta que é o estado ansioso de
dúvida radical quanto à confiabilidade última das impressões que o sujeito têm
de si, dos outros e do mundo (o “Trema”
psicótico) que acaba empurrando o
indivíduo na direção de projetos delirantes de conquista da certeza. Assim, por
exemplo, as ilusões persecutórias que caracterizam um retrato paranoico que o
indivíduo faz de sua posição no mundo social, apesar de todos os seus custos
psíquicos, não deixa de ser uma espécie de resposta à incerteza cheia de pânico
quanto aos pensamentos e sentimentos que correm nas mentes de outras pessoas:
“80% das esquizofrenias começam com os
sintomas negativos. Delírio e alucinação chamam mais a atenção. Já os sintomas
negativos ocorrem mais no íntimo das pessoas e causam menos impacto nos outros.
É o caso do indivíduo que, certo dia, não vai trabalhar, não avisa ninguém e
passa o dia todo deitado, tomando café e fumando. (...) Geralmente, esses
sintomas marcam o começo da doença, a fase chamada trema psicótico, marcada por
tensão e ansiedade muito grande. A pessoa sente que algo está acontecendo, mas
não sabe dizer o que é...Em determinado momento, porém, ele fala – “Estou sem forças, porque estão tramando
algo contra mim e colocaram veneno na minha comida”. Essa
explicação delirante é suficiente para diminuir o nível de tensão e ansiedade.
É como se a pessoa tivesse uma dor de causa desconhecida e, de repente,
chegasse a um diagnóstico que, de algum modo, a tranquilizasse”
(Gattaz/Varela, 2013)
A
contraparte da definição freudiana do sonho como “psicose normal”, dotada de
“todos os absurdos, delírios e ilusões de uma psicose” (Freud, 1975: 199),
consiste, nesse sentido, em uma fenomenologia da psicose como intrusão das províncias privadas do sonho e
da imaginação no próprio domínio experiencial público da vida cotidiana.
Quanto mais coesas são as representações do real compartilhadas em tal ou qual
cenário sócio-histórico, mais essa intrusão socialmente inapropriada de
significados e representações privadas não será coletivamente percebida como
experiência desviante guiada por uma “visão alternativa do mundo”, mas como
simples perda de contato com a realidade em si – ou seja, psicose.
A
criança a sós com a noite
O
anseio existencial humano por experimentar seus ambientes de ação e experiência
como confiáveis e seguros manifesta-se desde a mais tenra infância na relação
com as figuras parentais. As interações com os agentes primários de
socialização dão início ao cultivo de um “sistema de segurança básica”
(Giddens, 2003: 66), um senso de que a realidade dos objetos, das pessoas e de
si próprio está solidamente fundada. Combinando as investigações de Piaget
acerca da descoberta infantil da “constância dos objetos” àquelas de Erikson
sobre o florescimento da crença de que as ausências das figuras parentais são
provisórias e não impedirão o seu retorno, James Morley (2003) mostrou que
ambos são partes de um processo global e difuso, inseparavelmente cognitivo e
emocional, de aquisição de confiança na facticidade e continuidade, organização
e previsibilidade, inteligibilidade e acessibilidade do mundo.
Piaget
investigou circunstanciadamente o estágio de desenvolvimento cognitivo em que a
criança, lá por volta da compleição do primeiro semestre de vida, dá todos os
indícios comportamentais de crer que os objetos materiais que a circundam
continuam a existir quando retirados do seu campo de atenção.
Complementarmente, Erikson e Winnicott postularam que um dos principais
desafios na caminhada desenvolvimental do bebê é a aquisição da crença de que
suas figuras parentais continuam a subsistir quando estão ausentes e, portanto,
da expectativa afetivamente carregada de que elas retornarão à sua esfera de
experiência (Giddens, 2002: 42). O laço cognitivo e emocional com a mãe e/ou o
pai (como papéis sociais – não necessariamente os pais biológicos, não
necessariamente um casal heterossexual etc.) é gradativamente tecido em
experiências intensas e com instrumentos comunicativos pré-verbais como o
sorriso e o choro.
A maleabilidade cognitiva que
possibilitará à criança o aprendizado de um imenso conjunto de possibilidades
de orientação intelectual e prática nas suas relações com o mundo cobra seu
preço existencial sob a forma de uma experiência (gradualmente mitigada, porém
durável) de extremada desorientação, complementada por sua extraordinária
vulnerabilidade física e emocional. É por isso que Peter Berger vê no gesto da
mãe que consola e apazigua o choro aterrorizado de seu bebê uma espécie de cena
originária dos esforços humanos de construção social e simbólica de ordem:
“Uma criancinha acorda dentro da noite,
talvez de um mau sonho, e se acha cercada pela escuridão, sozinha, assaltada
por ameaças indescritíveis. Em tal momento, os contornos da realidade em que
confiava estão obscurecidos ou invisíveis, e no terror do caos que começa, a
criança grita por sua mãe. Dificilmente se exageraria em dizer que, neste
momento, a mãe está sendo invocada como suma sacerdotisa da ordem protetora. É
ela (e em muitos casos somente ela) que tem o poder de banir o caos e restaurar
a forma benigna do mundo. E, é claro, qualquer boa mãe fará exatamente isto.
Ela pegará a criança, a embalará no gesto atemporal da Magna Mater que se
tornou nossa Madonna. Talvez ela acenda a luz que circundará o cenário com um
brilho quente de luz tranqüilizadora. Ela falará e cantará para o filhinho e o
conteúdo desta comunicação será invariavelmente o mesmo – “não fique com medo –
tudo está em ordem – tudo está certo”. Se tudo correr bem, a criança se
tranquilizará, readquirirá confiança na realidade e nesta confiança voltará a
adormecer” (Berger, 1973: 76-77)
Considerando o caráter difuso e
global do terror da criança diante das ameaças que a realidade parece lhe
impor, as quais são sentidas de modo ao mesmo tempo confuso e
extraordinariamente intenso, Berger sustenta que a oferta de conforto, proteção
e segurança que a mãe oferece em resposta ao seu choro angustiado é sentida pelo
bebê de modo igualmente difuso e global: “‘Tudo
está em ordem, tudo está certo’ –
está é a fórmula básica da confiança da mãe e do pai. (...)A fórmula
poderia...ser traduzida numa afirmação de alcance cósmico: - ‘Tenha confiança
no ser’” (op.cit.: 78). Os retornos
contínuos das figuras parentais protetoras instilam e reforçam essa confiança
na ordem e inteligibilidade do real, bem como na disposição afetuosa dos
principais personagens na existência social da criança, disposições sem as
quais o desenrolar mesmo da formação da personalidade seria impedido ou
severamente prejudicado.
Mas Berger, como bom sociólogo doublé de teólogo, vai além: a concepção
da realidade implicada no gesto protetor e carinhoso da mãe é válida? Segundo
ele, tal concepção só não será ilusória ou mentirosa caso a existência natural
revelada por nossa visão de mundo racional e científica não seja a única
existência que existe (se me permitem a repetitividade heideggeriana da
formulação). Caso contrário, a criança estará absolutamente certa em achar que
a realidade irá destruí-la, não importa o quanto chore e esperneie:
“Se a realidade for coextensiva à realidade
‘natural’ que nossa razão empírica pode apreender, então a experiência é uma ilusão e o papel que a corporifica é
uma mentira. Pois então é perfeitamente
claro que tudo não está em ordem, não
está certo. O mundo no qual se diz para a
criança confiar é o mesmo mundo no qual ela eventualmente morrerá. Se não
houver outro mundo, então a verdade última sobre este mundo é que eventualmente
ele matará a criança bem como sua mãe. Isto, seguramente, não diminuiria a
presença real do amor e seu consolo muito real; daria mesmo a este amor uma
qualidade de trágico heroísmo. Todavia, a verdade final não seria amor, mas
terror, não luz, mas trevas. O pesadelo do caos, não a segurança transitória da
ordem, seria a realidade final da situação humana. Pois, no fim, todos temos de
nos achar nas trevas, sozinhos com a noite que nos tragará. A face do amor
confiante, dobrando-se sobre nosso terror, será então nada mais que uma imagem
da ilusão misericordiosa. Neste caso, a última palavra sobre a religião é a
palavra de Freud. A religião é a fantasia infantil de que nossos pais governam
o universo para nosso bem...” (Berger, 1973: 78-79).
O
argumento de Berger acerca do caráter ilusório ou “mentiroso” das crenças
implicadas nos atos protetores de mães e pais diante dos terrores infantis
obviamente não se identifica à denúncia moral, mas possui caráter metafísico. O
autor, naturalmente, também não teve qualquer intenção de discutir “o direito
dos ateus de serem pais” (idem), ainda que tenha julgado interessante sublinhar
a existência de ateus que, em face de considerações similares, julgaram que ter
filhos – ou “transmitir a uma criatura o legado da nossa miséria” (Machado de
Assis) - seria imoral. Pais ateus poderiam replicar, de qualquer modo, que a
concepção da realidade implicada no seu gesto carinhoso é menos abrangente do
ponto de vista metafísico, pressupondo apenas um “Tudo está bem agora”, o qual permitirá que a criança
avance na direção de uma fase adulta em que possa aceitar sua própria morte com
uma dose maior de equanimidade de algum tipo: heroísmo trágico, resignação
estóica, imortalidade vicária ou ocupação em tarefas que a distraiam do seu
destino último.
Seja
como for, o que é certo é que tanto o fervoroso fiel empenhado em garantir a
salvação de sua alma pelo bom comportamento neste mundo quanto o escritor ateu
devotado à produção de uma obra literária que influencie gerações futuras de
leitores buscarão integrar suas mortes individualíssimas em um retrato mais
abrangente de uma existência partilhada com outros. Cada um luta por fazer com
que o sentido de sua morte não seja, pura e simplesmente, a morte do sentido. Dessa
forma, eles justificam seus esforços e ocupações em termos socialmente
inteligíveis e, ademais, podem antecipar a própria aniquilação física com o
mínimo possível de terror. (Vale dizer, no entanto, que a expectativa de
alcançar a imortalidade pela glória não é suficiente para alguns artistas
ateus, a julgar pela cândida confissão de Woody Allen: “Não quero alcançar a
imortalidade pela minha obra. Quero alcançá-la não morrendo”).
Ocupar-se
antes de morrer
Como Pierre Bourdieu (Bourdieu, 2001; Peters,
2012) e Alfred Schutz (1967), Berger se faz herdeiro sociológico de uma tese
anteriormente sustentada por filósofos como Pascal e Heidegger, qual seja, a
ideia de que o mergulho nos “jogos” (Bourdieu) e na “tagarelice” (Heidegger) da
vida social cotidiana nos desvia ou “diverte” (Pascal) da contemplação aberta e
aterrorizada de nossa mortalidade:
“Nada é mais insuportável ao homem do que
ficar em absoluto repouso, sem paixões, sem negócios, sem divertimento, sem
aplicação. Sente então sua inanidade, seu abandono, sua insuficiência, sua
dependência, sua impotência, seu vazio. (...)...[a] infelicidade natural de nossa condição débil e mortal...[é] tão
miserável que nada nos pode consolar quando refletimos a fundo sobre ela. (...)...os homens que sentem naturalmente a sua
condição evitam acima de tudo o repouso e procuram por todos os meios os
motivos de preocupação” (Pascal, 2003: 94-95; 97).
Vê-se
que Heidegger e Sartre não foram os primeiros a explorar certos estados de
humor como fontes de insights sobre o
“ser-no-mundo” humano. Depois de Pascal, tanto Schopenhauer quanto Nietzsche
também emprestariam ao tédio uma
espécie de dignidade filosófica ao concebê-lo como desagradável intuição da
vacuidade de nossa condição. E o psicanalista Sándor Ferenczi se inscreveu
nessa linhagem intelectual ao cunhar sua categoria diagnóstica de “neurose de
domingo”, em referência ao dia da semana em que os sentimentos de vazio e
depressão tornavam-se mais intensos entre os seus pacientes – e olha que ainda
nem existia o Domingão do Faustão
para exacerbar o problema.
Mas
nos centremos no que Pascal disse sobre a mortalidade. Todos os investimentos
de tempo, energia, recursos e competências que caracterizam o movimento da vida
social em seus mais diversos cenários ou “jogos” só fazem sentido contra o pano
de fundo da transitoriedade da existência, da “pressão da finitude” (como disse
Viktor Frankl). Schutz reconheceu esse ponto quando fez remontar os mais
variados sistemas socioculturais de “relevância”, isto é, as questões e assuntos
que propelem nossas práticas porque importam
para nós, a uma intuição última que chamou de “ansiedade fundamental”, o
senso simultaneamente perturbador e motivador de que nosso tempo no mundo é
escasso, de que é melhor ocupar-se, pois o tic-tac da morte está tocando
(Schutz, 1967: 228).
O
pensamento filosófico ocidental sempre foi enamorado do ensinamento
socrático-platônico de que a filosofia é um aprendizado preparatório para a
morte, ensinamento eloquentemente apresentado no Fédon (2003). É sintomático que esta visão segundo a qual
“filosofar é aprender a morrer” (Montaigne) tenha brotado da pena do mesmo
autor que tanto insistiu na diferença entre o rigor da episteme filosófica e os preconceitos irrefletidos da opinião (doxa)
corrente (Platão, 2003: 28). As estruturas que envolvem a existência social
cotidiana parecem estar radicadas na premissa de que refletir sobre o morrer só
valeria a pena se impedisse de morrer
- o que, de certa forma, as reflexões que desembocam em crenças quanto à
própria imortalidade buscam fazer ao seu modo, pois é o próprio Sócrates quem diz:
“sem a convicção de que vou me encontrar primeiramente junto de outros deuses,
sábios e bons, e depois de homens mortos que valem mais do que os daqui, eu
cometeria um grande erro não me irritando com a morte” (op.cit.: 25).
Ora,
do ponto de vista da opinião corrente (que não deixa de ser filosoficamente
sagaz à sua maneira), a obsessão com a própria morte, embora não impeça de
morrer, pode muito bem “impedir” de viver – ao menos de viver tal como o
concebe a doxa cotidiana, isto é, de ocupar-se com projetos, tarefas,
trabalhos, obrigações, funções, missões e assim por diante. Ao criar uma ordem
de atividade significativa que interpela os atores a dela participarem com os
seus investimentos de tempo, energia e habilidades, o mundo social não apenas
oferece a tais atores um senso de que sua existência é justificada (Bourdieu, 1988: 56-58) como neutraliza, pelo menos parcialmente, a consciência da
aniquilação que inevitavelmente o espera.
As
rotinas da vida societária fornecem um abrigo mundano aos agentes ao
enraizá-los em um mundo de sentidos e respostas já estabelecidos, protegendo
tais indivíduos do confronto direto e solitário com a Angst metafísica, em particular no que toca à sua condição
inescapável (e inescapavelmente solitária) de “ser-para-a-morte” (Heidegger) ou
“cadáver adiado” (Pessoa). Por vezes, é claro, a situação-limite entre as
situações-limite irrompe sem aviso prévio na vida social cotidiana, revelando a
falibilidade ou, mais ainda, a precariedade ontológica última de todas aquelas
estruturas que o mundo social havia provido para garantir alguma segurança,
tranquilidade e previsibilidade aos seus membros. Um acidente ou doença mata
uma pessoa conhecida e, de repente, o sujeito é como que chacoalhado pela
lembrança daquilo que supostamente já sabia em algum nível de
(semi)consciência: o que aconteceu com o outro pode acontecer com ele a
qualquer momento e vai certamente
ocorrer a ele em algum momento. Se
tudo correr bem, no entanto, após algum tempo de meditatio mortis depressiva ou aterrorizada, os assuntos da vida
cotidiana lhe emprestarão a sanidade de volta:
“Suponhamos um homem que desperte de noite,
de um desses pesadelos em que se perde todo senso de identidade e localização.
(...) A pessoa jaz na cama numa espécie de paralisia metafísica...Durante
alguns momentos de consciência dolorosamente clara, pode quase sentir o cheiro
da lenta aproximação da morte e, com ela, do nada. E então estende a mão para
pegar um cigarro e...‘volta à realidade’. A pessoa se lembra de seu nome,
endereço e ocupação, bem como dos planos para o dia seguinte. Caminha pela
casa, cheia de provas do passado e da presente identidade. Escuta os ruídos da
cidade. Talvez desperte a mulher e as crianças, reconfortando-se com seus
irritados protestos. Logo acha graça da tolice...e volta a dormir resolvido a
sonhar com a próxima promoção (...) As paredes da sociedade são uma autêntica
aldeia Potemkin levantada diante do abismo do ser; têm a função de proteger-nos
do terror, de organizar para nós um cosmo de significado dentro do qual nossa
vida tenha sentido” (Berger, 1972:164-165).
Peter
Berger: apologia
pro sociologia sua
Poucas figuras na teoria social do
século XX produziram reflexões sociológicas tão sensíveis a questões
existenciais, tão tensionadas por preocupações últimas com o sentido da vida e
da morte, quanto Peter Berger. Isto é tanto mais impressionante considerando-se
que não se trata de um existencialista mórbido (embora suas citações sugiram
que sofre de terror noturno), mas de um dos prosadores mais leves e
espirituosos de nossa venerabilíssima disciplina. Por isso, quis fazer com que
esse texto soasse também como uma “apologia
pro sociologia sua”, para tomar de empréstimo a expressão de Gilberto
Freyre (que, de modo honesto e nada atípico, utilizou-a em referência à
sociologia de Gilberto Freyre [1968: 23]).
De qualquer modo, paro por aqui,
pois toda essa conversa sobre a morte começou a ficar deprimente, e acho que a
novela começa daqui a pouco. Pascal tinha toda a razão.
Referências
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________O dossel sagrado: elementos para uma teoria
sociológica da religião. São Paulo, Paulus, 2003.
BERGER,
Peter & LUCKMANN, Thomas. A
construção social da realidade. Petrópolis, Vozes, 1985.
Bourdieu,
Pierre. Lições da aula. São Paulo,
Ática, 1988.
________Meditações pascalianas. Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 2001a.
Frankl,
Viktor. Man’s search for meaning. Boston, Beacon Press, 1992.
Freud,
Sigmund. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII (1937-1939): Moisés e o
monoteísmo, Esboço de psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro,
Imago, 1975.
Freyre,
Gilberto. Como e por que sou e não
sociólogo. Brasília, Universidade de Brasília, 1968.
Gattaz,Wagner;
Varella, Drauzio. “Esquizofrenia”. http://drauziovarella.com.br/letras/e/esquizofrenia/
Giddens,
Anthony. Modernidade e identidade.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.
________A constituição da sociedade. São Paulo,
Martins Fontes, 2003.
Laing, Ronald. The
divided self: an existential study in sanity and madness. Harmondsworth,
Penguin, 1974.
Morley, James. “The texture of the real: Merleau-Ponty
on imagination and psychopathology”. In: Philips, James; Morley, James (Org.). Imagination and its pathologies.
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Pascal, Blaise. Pensamentos. São
Paulo, Martin Claret, 2003.
Peters,
Gabriel. (2012). “O social entre o céu e o inferno: a antropologia filosófica
de Pierre Bourdieu”. Tempo Social, 24, 1, 229-261. Link: http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v241/v24n1a12.pdf
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Fédon: diálogo sobre a alma e a morte de
Sócrates. São Paulo, Martin Claret, 2003.
Schutz,
Alfred. Collected papers I: the problem of social reality. The Hague, Martinus Nijhoff, 1967.
______Fenomenologia e relações sociais. Rio de
Janeiro, Zahar Editora, 1979.
Wittgenstein, Ludwig. On certainty. Oxford, Basil Blackwell, 1969.
6 comentários:
Gabriel,
Como sempre, seu texto é um deleite. Mas desta vez, não sei se porque não pude lê-lo com a lentidão necessária, o que você escreveu terminou por intensificar meu confronto com a Angst metafísica (e olhe que não era dia do Domingão do Faustão): fiquei pensando que se as rotinas societárias protegem os indivíduos do vazio e da depressão, o olhar das ciências sociais e humanas sobre elas tendem a desprotegê-los: estranhando e desnaturalizando o viver em sociedade, nossa profissão é perigosa. Fico pensando que se Riobaldo tivesse feito um curso de Ciências Sociais seu pavor maior não seria do diabo mas de grandes nomes das nossas disciplinas...Vade Reto! Mas vou pensar poliana e dicotomicamente: as rotinas societárias protegem mas são potencialmente conservadoras; o olhar das ciências sociais desprotegem mas são potencialmente inovadoras. Parabéns pelo texto.
Tâmara prezadíssima,
Como sempre, eu é que gosto que me enrosco em contar com a leitura e os comentários de uma mente afiada, sensível e espirituosa qual a sua. Tu me apontaste (para utilizar a dileta segunda pessoa dos meus parentes maranhenses) um utilíssimo complemento aos argumentos centrais desse experimento em sublimação sociológica da morbidez que foi o meu texto.
Sublinhar, como fazem Giddens ou Berger, que os seres humanos são intensamente vulneráveis a perturbações no seu senso existencial de que o mundo em que estão lançados é relativamente seguro, previsível, confiável e inteligível não é um procedimento incorreto, mas incompleto. E quanto à rotina vivida como opressão? E quanto à apreciação da novidade e da surpresa? E quanto às experimentações com o novo que caracterizam empreendimentos inovadores nas mais diversas esferas da ação humana? Sem querer sugerir que todos os meus flancos intelectuais estão friamente protegidos, confesso que explorei mais detalhadamente esta questão das articulações ou “formações de compromisso” (Freud) entre as propensões humanas à ordem e à sua subversão no meu último experimento de Anpocs:
http://portal.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=8686&Itemid=429
No paper anpocsiano, diferentemente do que aconteceu nesse meu estudo de Cazzo, minhas propensões mais cavernosas foram intensa e continuamente temperadas por uma apreciação pollyânica do que a vida tem de alegre e positivo (especialmente a partir da página 12). Ufa! Um grande abraço!
Vige, Gabriel!
Assim fico vaidosa, quase acreditando. Mas confesso também que fico feliz por lhe ter motivado a arredondar mais sua argumentação. Abração.
Eita!
Eu achei que tinha enviado um comentário ontem, mas acho que se perdeu na angústia infinita da rede.Rssss
Faço outro então:
Gabriel,
Assim você me deixa vaidosa, até acreditando em seus elogios. E a vaidade, dizem, é um dos pecados mais feios.
Mas fico feliz por tê-lo motivado a arredondar melhor sua argumentação para o universo cazziano. E assim que tiver tempo lerei seu trabalho para a ANPOCS. Abração.
Gabriel,
grande texto, grande motivação sociológica. Obrigado
Danilo
Obrigado a você pelos elogios, Danilo. Abs
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