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quarta-feira, 21 de abril de 2010
O Politicamente Correto e o Comunismo
Cynthia Hamlin
Que existe uma relação entre o politicamente correto (PC) e um certo tipo de construtivismo social sempre me pareceu evidente: se se parte do princípio de que as palavras não apenas nomeiam, mas de alguma forma constituem os objetos a que se referem, parece óbvio que uma das maneiras de se mudar a ordem social é alterando o significado das palavras (embora já não seja tão óbvio que isso possa ser feito apenas mediante o uso de palavras diferentes, ainda que menos ideologicamente carregadas, como querem alguns defensores do PC).
Também nunca tive dúvidas acerca das raízes do politicamente correto na academia norte-americana, especialmente por meio daquelas disciplinas de alguma forma relacionadas aos estudos culturais, como é o caso dos amorfos “estudos de raça” e de gênero, cuja preocupação principal (e legítima) consiste na erradicação do racismo e do sexismo. Agora, a relação entre politicamente correto e comunismo, essa eu confesso que me escapou completamente. Pois aqui vai um vídeo do ultraconservador Bill Lindt, explicando tudo direitinho.
Sua tese central, exposta no início do vídeo, é a de que “o politicamente correto não é nada mais do que ideologia marxista – o marxismo traduzido de termos econômicos para culturais”. E essa “tradução” parece seguir uma linha bastante clara para Lindt: de marxistas ocidentais como Gramsci e Lukács, passando pela Escola de Frankfurt (aparentemente os grades vilões do PC, em particular Marcuse), pela Nova Esquerda e desembocando no feminismo e nos estudos culturais.
De fato, é possível pensar acerca de todas essas tradições a partir de um denominador comum, amplamente apropriado por Marx: a negação da famosa separação operada por David Hume entre fato e valor e que é comum a todas as teorias críticas, entendidas como aquelas que se propõem a alterar a realidade que estudam, assim como suas próprias práticas teóricas e metodológicas. Também é possível pensar no desenvolvimento do marxismo ocidental em termos de uma ênfase progressiva na dimensão humanista do pensamento de Marx (talvez à exceção de Althusser) e, portanto, de elementos culturais.
O que Lindt parece “esquecer” é que, especialmente nos EUA, a tradição liberal teve uma influência muito mais marcante nisso que estou chamando genericamente de “estudos culturais” do que o marxismo. Basta pensarmos, por exemplo, na força relativa do feminismo liberal em relação ao feminismo marxista naquele país. Além disso, parece-lhe “escapar” que mesmo nas tradições de raízes claramente marxistas, como é o caso da Escola de Frankfurt, o comunismo, especialmente em sua forma histórica, o Socialismo Soviético, era encarado com ceticismo, o que lhes rendeu acusações sérias em relação a uma ausência de engajamento político – os “residentes do Grande Hotel do Abismo”, nas palavras de Lukács, que se limitavam a olhar para o abismo de dentro de seus quartos confortáveis, ocasionalmente atirando lá uma peça de mobília.
Parece-me, entretanto, que o mais complicado na “análise” de Lindt não é o que ele não sabe, mas a má-fé absoluta com a qual ele interpreta o trabalho de especialistas como Martin Jay (aliás, o que diabos o Martin Jay está fazendo em um vídeo como esse?). Algumas passagens saltam aos olhos.
“O termo teoria crítica foi buscado como um jogo de palavras. Fica-se tentado a perguntar o que é a teoria crítica. A resposta é: a teoria é “criticar”. E, mais adiante, recorre a Jay para fundamentar sua interpretação ao afirmar que “a Escola de Frankfurt teve o cuidado de não definir para quê servia – apenas contra o quê servia. Mais uma vez, Martin Jay, o historiador semi-oficial da Escola de Frankfurt”:
A própria teoria critica relutava em se colocar em uma camisa de força de sistematização e desafiava sua redução a uma definição única.
Mais esquisita ainda é a relação que Lindt estabelece entre a Dialética do Esclarecimento e o movimento ambientalista: “Os teóricos críticos chegaram mesmo a integrar a causa PC mais em moda, o ambientalismo, em seu marxismo cultural por meio da Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer”. E, novamente, recorre a Jay:
Eles [os teóricos da teoria crítica] estavam interessados no que chamavam de dominação da natureza. A Dialética do Esclarecimento deslocou a ênfase da dominação econômica para a dominação do mundo natural pela espécie [humana], inclusive daquilo que poderia ser visto como uma natureza interna, com base na compreensão psicanalítica da repressão. Então, eles estavam muito interessados em reconhecer que precisamos de uma relação mais cuidadosa e, digamos, equilibrada, entre a humanidade e o mundo natural.
O estabelecimento de uma relação tão direta entre as preocupações de Adorno e Horkheimer com a racionalidade instrumental presente na técnica e o movimento ambientalista me parece tão legítimo quanto afirmar Heidegger como precursor do veganismo (exceto, talvez, pela dificuldade de justificar o gosto deste pela carne de mulheres judias).
A mesma má-fé parece estar em jogo quando recorre a Jay, em sua explicação acerca do enfraquecimento da classe operária como agente histórico hegemônico, a fim de afirmar “o papel da Escola de Frankfurt na criação [dos] grupos de vítimas que constituem a coalizão PC”:
... a classe trabalhadora já não poderia desempenhar o papel hegemônico que os marxistas tradicionais esperavam dela e, assim, eles esperavam que os estudantes, os negros, as mulheres e outros grupos minoritários estivessem aptos a se unir.
Não resta dúvidas de que o politicamente correto é por vezes não apenas ingênuo, mas totalitário em suas críticas. O caráter inócuo de formulações como “verticalmente prejudicado/a” em substituição a “baixo/a” parece autoevidente. No entanto, ataques por parte de conservadores como Lindt, que se valem da acusação de fundamentalismo e da defesa de liberdade de expressão como pilar da democracia norte-americana, parecem esquecer que o uso de uma linguagem ofensiva pode, sim, funcionar como elemento de exclusão social. É por essa razão que não apenas os defensores de uma linguagem politicamente correta, mas também aqueles que advogam em favor da reapropriação irônica de termos originalmente derrogatórios (como o uso do termo “queer” pelo movimento gay dos EUA), enfatizam o uso da linguagem como forma de assujeitamento. E como antídoto para os exageros do PC, parece-me apropriado lembrar a ironia que estava na base do surgimento do termo “politicamente correto”, conforme mencionado por David Macey em seu Dictionary of Critical Theory (Londres: Penguin, 2000):
Embora seja parte do senso-comum afirmar que a demanda por correção política indica uma aborrecida ausência de qualquer senso de humor, existem evidências de que o inverso seja verdadeiro. A expressão [politicamente correto], e a correlata “ideologicamente correto”, podem ter se originado no feminismo dos anos de 1970, quando broches dizendo “Eu sou uma feminista sem senso-de-humor” gozaram de alguma popularidade e podiam ser usados em um sentido auto-derrogatório. Um cartão postal amplamente circulado naquela época reproduzia uma fotomontagem de Ray Lowry no qual uma mulher diz para um homem: “Eu poderia tê-la tornado tão feliz, Beryl...”. Uma amiga responde, no lugar de Beryl: “Ela não quer ser feliz, Graham. Ela quer ser ideologicamente correta...”. Beryl acrescenta “Isso mesmo!”.
E, no caso brasileiro, a defesa mais interessante que vi recentemente da importância de uma linguagem politicamente correta foi feita por Antônio Prata, citada no blog Na Prática, a Teoria é Outra:
Imagine uma escola religiosa na Dinamarca. Flores nas janelas, cheiro de lavanda no ar, vinte alunos loiros, com cristo no coração e leite A correndo pelas veias, respondendo a uma chamada oral sobre o Pequeno Príncipe. Ali, o garoto que se levantar e cuspir no chão será ousado. Mostrará que a despeito do aroma de lavanda, o ser humano é áspero, é contraditório, é violento. Quando a realidade fica muito Saint-Exupéry, é importante que surjam uns Sex Pistols para equilibrar. Agora, cuspir no chão de uma escola municipal em São Paulo, diante da professora assustada que não consegue fazer com que os alunos, analfabetos aos dez anos, fiquem quietos, não tem nenhuma valentia. Quando a realidade da polis é o caos, o som e a fúria são a correção política.
O sarcasmo dirigido aos intelectuais de esquerda seria audaz e iconoclasta caso o Brasil tivesse vivido de 37 a 45 e de 64 a 85 sob as ditaduras de Antonio Candido e Paulo Freire. Se antropólogos de pochete e índios com camisa do Flamengo estivessem ameaçando o agronegócio, devastando lavouras de soja para plantar urucum e cabaça para fazer berimbau. Se durante o carnaval as feministas pusessem no lugar da Globeleza drops de filosofia com Marilena Chauí e Susan Sontag. Se a guitarra elétrica fosse banida da MPB pela banda de pífanos de Caruaru. Do jeito que as coisas são, contudo, o neoconservadorismo faz sucesso não porque choca a burguesia, ao cuspir no solo de onde brotam seus nobres valores, mas porque assina embaixo da barbárie vigente – e ri dela.
Cynthia: Li com prazer o seu artigo acima. Acrescento que endossaria quase tudo o que você escreve.Ah,acabei esquecendo de ver o vídeo com Bill Lindt. Mas acredito que ele não alterará meu ponto de vista. Assim,assino o comentário antes de ir ao vídeo. Fernando.
Pois é: ainda que eu discorde de diversas coisas relacionadas ao movimento politicamene correto, o ataque dos conservadores me causa uma simpatia automática ao PC.
Acabei perdendo a citação do Lindt onde ele diz que o Politicamente correto "is communism writ large" (o PC é o comunismo tornado óbvio), e também sua defesa dos EUA dos anos de 1950, mas creio que o argumento desenvolvido no vídeo já é suficiente para mostrar de onde vêm seus temores.
E para quem tem mais facilidade com o inglês escrito do que falado, um link para um artigo do gênio:
2 comentários:
Cynthia:
Li com prazer o seu artigo acima. Acrescento que endossaria quase tudo o que você escreve.Ah,acabei esquecendo de ver o vídeo com Bill Lindt. Mas acredito que ele não alterará meu ponto de vista. Assim,assino o comentário antes de ir ao vídeo.
Fernando.
Oi, Fernando,
Pois é: ainda que eu discorde de diversas coisas relacionadas ao movimento politicamene correto, o ataque dos conservadores me causa uma simpatia automática ao PC.
Acabei perdendo a citação do Lindt onde ele diz que o Politicamente correto "is communism writ large" (o PC é o comunismo tornado óbvio), e também sua defesa dos EUA dos anos de 1950, mas creio que o argumento desenvolvido no vídeo já é suficiente para mostrar de onde vêm seus temores.
E para quem tem mais facilidade com o inglês escrito do que falado, um link para um artigo do gênio:
http://royalcello.websitetoolbox.com/printthread?id=2584267
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