Hermes carregando Diónísio, do escultor Grego Praxíteles (cerca de 350 a.C). O termo hermenêutica deriva do grego hermeneus (tradutor/intérprete). Hermes, mensageiro dos deuses, é o deus das fronteiras e daqueles que as atravessam, dos pastores, dos oradores, dos poetas, da invenção, dos comerciantes e dos ladrões.
Realismo Crítico e Hermenêutica
Como vimos anteriormente, dada sua concepção de agente humano, os realistas críticos não negam a dependência lingüística de nossas atividades, seja em contexto naturais, seja em contextos sociais (embora contestem que todas as nossas conceituações do mundo sejam igualmente adequadas). No entanto, isso não significa que essas atividades não possam também ser explicadas em termos causais e não apenas interpretadas. Isso porque, embora o processo de produção de um objeto (e aqui estou me referindo especialmente aos objetos sociais) possa ser linguisticamente dependente, a partir do momento em que passa a existir pode constituir um objeto passível de ser explicado causalmente. Para autores associados à teoria do discurso britânica, como Norman Fairclough, Bob Jessop e Andrew Sayer, considerar a importância da linguagem na constituição da realidade inevitavelmente coloca grandes questões causais acerca das condições de possibilidade da emergência de determinadas ideologias, de como elas estruturam e são estruturadas por conflitos políticos e, de maneira mais geral, como os discursos produzem seus efeitos (Fairclough, Jessop e Sayer, 2004).
A junção entre um momento interpretativo ou hermenêutico e um momento explicativo é central à abordagem contrastiva de Lawson (1997; 1999; 2003a; 2003b; 2003c; 2006), que se opõe fortemente à tendência quantitativista da macroeconomia. Na esteira de diversos autores que defendem a idéia de que o mundo social já se encontra previamente interpretado aos cientistas sociais devido ao fato de que somos agentes sociais competentes (cf. Giddens, 1993; Collier, 1994; Outhwaite, 1987), Lawson estende uma das formas de compreensão do mundo cotidiano para as ciências sociais. Para ele, uma das formas pela qual avançamos em nosso conhecimento cotidiano é perguntando por que algo não é exatamente como esperávamos que fosse. Assim, frequentemente nos perguntamos coisas do tipo: "por que nossos alunos se saíram pior nas provas deste ano do que nas dos anos anteriores"? (por que uma greve de professores "cortou" o semestre em dois); "por que me cachorro não quis sair para passear hoje"? (por que comeu algo que lhe fez mal no dia anterior); "por que minha correspondência não foi entregue hoje"? (por que o porteiro do meu prédio não veio trabalhar) etc.
Reflexões deste tipo são abundantes na vida cotidiana e a complexidade das respostas pode variar imensamente, algumas requerendo explicações mais profundas do que outras. Mas, de forma geral, num sentido pragmático, conseguimos resolver satisfatoriamente grande parte das questões levantadas em nossa vida diária, o que nos possibilita seguirmos com nossas atividades. Ao refletir sobre o que possibilita o sucesso ou o fracasso das respostas oferecidas, Lawson examina dois pontos correlatos: primeiro, a estrutura das perguntas e das respostas oferecidas; segundo, tenta estabelecer as precondições ontológicas do sucesso das respostas bem-sucedidas, isto é, "as condições que devem se apresentar para que tais práticas bem-sucedidas ocorram" (Lawson, 2003c: 86).
Em relação à estrutura das perguntas, cada uma delas estabelece um contraste com uma situação esperada, ou seja, em vez de assumirem a forma "por que x?", assumem a forma "por que x e não y, como esperado?". E as respostas dadas a esse tipo de pergunta referem-se a um fator causal que não diz respeito a x em si mesmo, mas explica o conttraste "x e não y". Para Lawson, isso é, obviamente, muito mais simples do que explicar todos os fatores causais envolvidos em uma pergunta do tipo "por que x", pois requer apenas que se identifique o fator responsável pela diferença em questão. A idéia do contraste não é nova. John Stuart Mill, Max Weber e diversos sociólogos históricos já adotavam aquilo que o primeiro chamava de "método da diferença". O que é novo na perspectiva de Lawson é a aplicação dos contrastes para a identificação do interesse suscitado pela pergunta e a posterior identificação de possíveis mecanismos causais via abdução ou retrodução (o método de inferência lógica preferido pelos realistas críticos). Em outras palavras, os contrastes podem nos alertar para situações em que existe algo de interesse para ser explicado, e isso tem uma relação direta com algumas das principais questões levantadas pela teoria feminista acerca da cegueira de gênero. A ênfase em explicações contrastivas significa que tanto as questões levantadas pelos cientistas quanto a forma como elas são tratadas, isto é, os mecanismos causais buscados necessariamente refletem os pontos de vistas, as interpretações e, para tomar emprestado um termo da fenomenologia, os horizontes dos cientistas. Não se trata aqui de simplesmente supor, como fazem as teóricas do standpoint theory, que as perspectivas são inevitáveis, mas de considerar que tais perspectivas interessadas, preconceituosas e viesadas são, na verdade, indispensáveis para o estabelecimento de uma explicação causal. Nas palavras do próprio Lawson (1999: 41),
A tarefa de detectar e identificar mecanismos causais previamente desconhecidos parece requerer o reconhecimento de contrastes surpreendentes ou interessantes, e esses últimos pressupõem pessoas em posições que as tornem aptas a detectar contrastes surpreendentes ou interessantes, e esses últimos pressupõem pessoas em posições que as tornem aptas a detectar contrastes relevantes e percebê-los como surpreendentes ou interessantes e que desejem agir com base em sua surpresa ou interesse. A iniciação de novas linhas de investigação requer pessoas predispostas, literalmente preconceituosas, no sentido de olhar em certas direções.
É claro que não há garantias de que explicações baseadas no estabelecimento de contrastes sejam sempre bem-sucedidas, mas existem duas condições que devem ser satisfeitas para seu sucesso. A primeira é que deve haver um domínio de observação (espaço-temporal), o que Lawson (2003c: 89) chama de um "espaço de contraste", no qual é significativo, dada nossa compreensão atual, o estabelecimento de comparações. A segunda condição, mais difícil de ser alcançada, é que todos os aspectos ou partes relevantes do espaço de contraste sejam corretamente interpretados como estando sujeitos a mais ou menos o mesmo conjunto de influências, exceto por um subconjunto, que é o que deverá contar como o mecanismo causal em questão. Assim, por ex., meus alunos estiveram sujeitos a mais ou menos as mesmas circunstâncias que os alunos dos anos anteriores, exceto uma: a greve dos professores. O ponto importante, para Lawson (1997: 210), é que se deve identificar "um fator causal (incluindo-se talvez uma ausência) que contribuiu para o estado de coisas atual, mas que não teria possibilitado o que era esperado ou imaginado, ou não condicionou uma alternativa concreta".
O estabelecimento dessas condições mostra que, por um lado, o processo de construção do conhecimento pode se beneficiar da cooperação de indivíduos predispostos de diferentes maneiras, ou em situações diversas. Isso significa que, de acordo com o que defendem as teóricas do standpoint theory, é necessário incorporar aqueles conhecimentos tácitos, inarticulados, característicos de grupos em situação de liminaridade e, de maneira geral, excluídos da ciência social (Smith, 1990). De fato, a dualidade do pertencimento/não pertencimento de grupos como esses faz com que eles sejam forçados a ter consciência das práticas, dos valores, das crenças e das tradições não apenas dos grupos dominantes, mas também dos seus próprios. É essa "consciência bifurcada" que gera maiores oportunidades da identificação de contrastes que podem ajudar a esclarecer o funcionamento de uma totalidade. Isto significa dizer que, contrariamente a teóricas do standpoint como Nancy Hartsock (1983), uma teoria produzida por mulheres não é necessariamente mais "verdadeira" ou produz melhores concepções de realidade, mas certamente apresenta algumas possibilidades de identificação de contrastes interessantes e questionamentos alternativos. Assim, a vantagem do conhecimento gerado por grupos em situação liminar não se refere ao status de verdade das respostas obtidas, mas à natureza das questões reconhecidas como importantes ou significativas (Lawson, 1999). Trata-se, portanto, da possibilidade de tornar visível aquilo que é invisível, ou de subverter questões tradicionais.
Este pré-entendimento que, na perspectiva de Lawson, deve ser tornado explícito e explorado ao máximo, representa uma tentativa de resgate de uma forma de entendimento relativa ao pensamento cotidiano e a uma forma de experiência que ficou marginalizada na tradição da ciência moderna. E essa tentativa de resgate coincide justamente com a experiência hermenêutica que Gadamer defende (embora não se limite a ela). O que gostaria de fazer aqui é mostrar como o momento hermenêutico sugerido por Lawson para a geração de hipóteses explanatórias pode se beneficiar de um diálogo mais intenso com a obra de Gadamer, em especial, com sua concepção de experiência hermenêutica.
Cynthia
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