segunda-feira, 23 de junho de 2008

O AMOR DURA ONZE CONTOS DE RÉIS: Breves notas sobre um certo sestro humorístico em Machado de Assis



Certa feita confessou o crítico Brito Broca que Machado de Assis “não exerceu nenhuma influência na minha formação literária.” E prosseguia no mesmo registro confessional: “Devo dizer que a minha primeira ‘amizade literária’ foi José de Alencar. Acho Alencar um amigo muito mais indicado para a adolescência do que Machado de Assis. [...] ... a primeira leitura de um livro de contos de Machado de Assis, quase na mesma época, não me causou impressão muito profunda. [...] ... eu procurava no conto, acima de tudo, a anedota, e os de Machado de Assis, naquele livro, cheio de intenções, cuja sutileza muitas vezes me escapava, possuíam um substrato anedótico bem pobre.” [1]

Certamente mais de um leitor de Machado fez idêntico percurso. É o meu caso. Adolescente, meu grande ídolo também era Alencar. Devorei, um atrás do outro, O Guarani, O Sertanejo, O Gaúcho... Devo dizer que era uma época em que também devorava Júlio Verne e Conan Doyle! Compreende-se. Em todos esses livros, por mais distantes em qualquer sentido que estejam Peri e Sherlock Holmes, a anedota ─ no sentido de trama com viradas espetaculares ─ é um elemento essencial, aquele que mais atrai um leitor juvenil. Tendo ouvido dizer que Machado de Assis era o maior escritor brasileiro, e que Dom Casmurro era o melhor romance escrito no Brasil, imaginei que as aventuras de Bentinho e Capitu seriam ainda mais emocionantes do que as de Ceci e Peri. A decepção foi enorme! A história me pareceu chocha e os personagens, aguados. Parei a poucas páginas e devolvi o livro à estante. Fui tratar de ler Agatha Christie. Só muitos anos depois retomei-o. E quando comecei a ler, foi uma iluminação!

Pequena pausa. Como nossa memória é fabuladora, a experiência que relato pode não ter acontecido no momento em que penso que aconteceu; pode ser uma invenção retrospectiva. Mas a verdade é que tenho uma lembrança nítida de que, já na primeira frase do primeiro capítulo de Dom Casmurro, deparei-me com uma formulação que reteve minha atenção por um efeito estético que produziu em mim. Transcrevo a frase:

“Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu.”

Notem bem o final da frase: de vista e de chapéu! Chamou-me a atenção isso, que não sei bem como nomear: uma quebra na seqüência ─ na regência da frase, se posso assim dizer ─ mediante a intromissão de um termo que não se encaixa! Conhecer alguém de vista? Certo. Mas conhecer de chapéu? Nunca tinha lido ou escutado falar. Obviamente sei e qualquer um sabe o que significa: que o narrador e o rapaz, quando se cruzavam, cumprimentavam-se tirando o chapéu um ao outro. E nada mais do que isso, pois só se conheciam de vista. Observem, entretanto, a economia, mas também a graça, com que Machado descreve esse cumprimento, apenas acrescentando um “de chapéu” a um “conhecia de vista”. O “de chapéu”, que a princípio não se encaixa ─ e justamente porque não se encaixa! ─, chama a atenção e, pelo inesperado, produz o efeito estético a que aludi e sobre o qual falarei adiante. Se, ainda outra vez, não estou fabulando a posteriori, remonta a esse episódio a minha descoberta do que significa ser escritor no sentido forte da palavra: não apenas alguém que escreve, mas escreve esteticamente ─ ou seja, produzindo no leitor um dado efeito que vai além da simples comunicação objetiva, tornado possível pelas possibilidades da língua.

A prova mais evidente disso consiste na intraduzibilidade que no fundo existe na poesia ─ onde o escrever estético marca praticamente todas as palavras e o seu arranjo no texto. Tal prova pode ser aplicada ao trecho machadiano. Para demonstração, consultem-se, por exemplo, duas traduções do seu romance em francês. Na primeira, de 1956, o trecho “... que eu conheço de vista e de chapéu” ficou assim: “... que je connaissais pour l´avoir déjà vu et salué” (“... que eu conhecia por já tê-lo visto e saudado”) [2] ; na segunda, de 1983, o resultado foi esse: “... que je connais de vue et qui ôte son chapeau quand il me croise” (“... que eu conheço de vista e que tira seu chapéu quando cruza comigo”) [3] . Como se vê, há nas duas traduções algo que se perde: a parte do estilista, do escritor propriamente dito. Ora, em Machado esse efeito, colocado logo na abertura de sua obra-prima, longe está de ser um caso isolado. Chega mesmo a ser uma de suas imagens de marca mais cativantes. Retomando o que disse antes, ela consistiria numa quebra na seqüência da frase, mediante a intromissão de um elemento estranho à sua regência. Trata-se de um sestro bem machadiano. O mais famoso deles é da lavra de Brás Cubas: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”... Quem não o conhece? Quem, já tendo lido as Memórias Póstumas, não lhe dedicou um sorriso? ─ eventualmente (e é o meu caso), um riso bem sonoro? Este, o riso, vem a ser o efeito estético a que aludi.

Aliás, mesmo sendo verdade que é a partir de Brás Cubas que o humor machadiano escancara as portas, vale notar que o a intromissão de um elemento inesperado na escrita ─ mesmo sem a estrutura do sestro em sentido estrito, conforme o defini ─ já tinha livre curso desde muito antes. Algo ao acaso, colhi alguns exemplos. Em Ressurreição, seu romance de estréia (1872), o coração de uma Raquel, depois de uma decepção amorosa, “não achou melhor convalescença que desposar o enfermeiro”. No romance seguinte, A Mão e a Luva (1874), um certo Estêvão, cujo amor por Guiomar passa por altos e baixos o tempo todo, padecia uma espécie de “tosse moral, que aplacava e reaparecia”; desse mesmo Estêvão, mais para a frente, Machado dirá que era “tão marechal nas coisas mínimas, como recruta nas coisas máximas”. Em Helena, que vem a seguir (1876), o elemento humorístico é bem escasso, mesmo assim o olho irônico de Machado não deixará de observar que o coronel Macedo, um dos personagens, “tinha a particularidade de não ser coronel. Era major”. E em Iaiá Garcia (1878), o romance imediatamente anterior à ruptura espetacular de 1881 ─ quando se inicia a segunda fase de Machado com a publicação de Brás Cubas ─, um Jorge, atordoado pela descoberta de que Iaiá Garcia o ama (obviamente, como sói acontecer nas tramas românticas, trata-se de um amor impossível!), resolveu nunca mais retornar à casa da moça: “resolução varonil ─ comenta Machado ─ que durou quarenta e oito horas”. Outros exemplos poderiam ser colhidos.

Essa intromissão do inesperado e seu efeito cômico já foi notada há muito tempo. Em 1889, em desagravo a Machado que havia sido ferozmente criticado por Sílvio Romero, o conselheiro Lafaiete Rodrigues Pereira, sob o pseudônimo de Labieno, publicou o seu Vindiciae contra o crítico sergipano. Ali, o desagravante refere-se à “força de expressão” da frase machadiana “pela aliança insólita ou pelo contraste das palavras”. [4] Alcides Maya, contemporâneo e amigo de Machado, escreveu o primeiro trabalho dedicado especificamente a examinar-lhe o humor, no qual refere-se ao “imprevisto hilariante das tiradas” [5]. Desconheço se o veio teve outros exploradores. O fato é que, escrevendo no final dos anos 30 do século que passou, Astrojildo Pereira, como se nada de relevante desde então tivesse sido dito sobre o humor machadiano, retoma o velho texto do conselheiro Lafaiete para assinalar que o defensor de Machado “já notava o feliz efeito que essa conjunção de contrastes produzia na estrutura da sua frase” [6]. Como disse, desconheço desenvolvimentos ulteriores sobre a especificidade do humor machadiano ─ notadamente sobre aquilo que chamei simplesmente de sestro, assinalado pela intromissão de um elemento estranho na regência da frase.

Entendam-me. Quando falo na ausência de desenvolvimentos não quero dizer que o humor machadiano não tenha sido notado por tantos quantos tenham se acercado de sua obra. Ao contrário, essa talvez seja a vertente mais saliente do seu texto e ninguém deixou de referi-la. Ao falar de ausências, refiro-me a abordagens que enfoquem o seu humor como matéria de reflexão própria, procurando circunscrevê-lo e analisá-lo na sua especificidade. O sestro, por exemplo, seria uma figura de linguagem? Qual? Afinal, ele difere dos eufemismos igualmente cômicos que se encontram com tanta abundância no seu texto, mesmo quando se trata de matéria mórbida como a morte ─ entre os quais destacaria, nem que seja pelo prazer de voltar a abrir o Dom Casmurro, aquele em que um Bentinho sexagenário lamenta o fato de que os amigos que lhe restam são de data recente, informando que “todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos”...

Nenhum leitor interessado passa por um trecho com tal expressividade sem fazer uma pausa. E eles fluem no texto machadiano aos borbotões, com uma naturalidade e uma (aparente) facilidade desconcertante. O humor de Machado é assim um dado essencial ao seu texto, e as análises de sua obra sempre levam em consideração essa particularidade. Veja-se, por exemplo, o debate que vem de longe a respeito do famoso absenteísmo político de Machado. É uma leitura que hoje não mais se sustenta, depois dos trabalhos de autores como Brito Broca e Astrojildo Pereira, que na verdade pertencem à primeira metade do século passado, e, mais recentemente, das pesquisas minudentes e eruditas de acadêmicos como Roberto Schwarz e John Gledson [7]. Tanto nos primeiros quanto nos segundos o humor machadiano é notado e integrado à releitura política que fazem de sua obra. Astrojildo Pereira, por exemplo, fazendo referência à ruptura operada por Brás Cubas, lembra que as tiradas humorísticas de Machado já vinham de antes, e que a partir do livro de 1881 ele apenas abriu as comportas para dar livre vazão aos seus “pendores galhofeiros” [8] , ao empreender uma crítica impiedosa das nossas práticas políticas, ainda que disfarçando-a com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, como confessa o próprio memorialista defunto. Roberto Schwarz, por sua vez, vê no “ambiente problemático-apalhaçado do livro” [9] a forma estilística ideal que Machado encontrou para repercutir no seu texto a “empulhação” geral de uma sociedade que professava na sala de visitas os ideais do Iluminismo e praticava na cozinha a realidade da escravidão.

Não obstante, o humor machadiano é um dado que se constata e cujas funções se analisam, mas que não se penetra em sua especificidade. Mais recentemente, Sergio Paulo Rouanet brindou os leitores de Machado com uma fina dissecação do estilo do Bruxo, onde o riso que ele provoca, mais uma vez, é uma constatação ─ aliás, já no título do trabalho [10]. Em determinado momento Rouanet, ele também reportando-se ao inesgotável Brás Cubas e referindo-se ao fato de que se trata de um livro escrito por um sujeito que já morreu, observa o desleixo com que o narrador trata a situação inusitada: “Evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo”; e chama a atenção para o fato de que o “efeito cômico” dessa passagem ─ como do livro de um modo geral ─ “vem da desproporção entre a enormidade do fato e a sobriedade da descrição.” [11] Idêntico efeito ocorre na passagem em que o herói fantasia a invenção de “um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.” Logo depois, porém, morre de uma complicação pulmonar rasteira. E Rouanet: “A invenção não era sublime, mas burlesca, simples veleidade de saltimbanco, uma idéia tão cômica que acabou matando seu inventor com uma morte ridícula, indigna de um déspota ─ cuja alta hierarquia exige ou o veneno ou o punhal ─, mas apropriada para um mero palhaço ─ a pneumonia causada por uma corrente de ar.” [12]

Retenhamos esse sentido da “desproporção” causadora do riso. Ele me parece ir na mesma direção que a quebra na frase que caracteriza o sestro. Nos dois casos, o inesperado é a pedra de toque. Haveria aí matéria para uma teoria do riso provocado pelo texto machadiano? Procurando uma resposta, dirigi-me ao livro clássico do filósofo Henri Bergson sobre o assunto [13]. Conhece-se a imagem inicial: um homem, correndo pela rua, tropeça e cai. Os transeuntes riem. Por quê? Antes de responder a pergunta, Bergson observa que se o homem tivesse ido ao chão porque sentiu vontade de sentar, ninguém acharia graça. “Acho eu” ─ diz ele. Assim, o riso decorreria do fato de que o homem caiu sem querer, porque não foi bastante hábil para evitar um tropeço. De onde sua resposta: o riso nada seria senão uma sanção social à desatenção do homem. Mas por que a sanção? Porque “a vida e a sociedade exigem de cada um de nós [...] certa atenção constantemente desperta, que vislumbre os contornos da situação presente, e também certa elasticidade de corpo e de espírito, que permitam adaptar-nos a ela.” Daí que “toda rigidez do caráter, do espírito e mesmo do corpo, será, pois, suspeita à sociedade, por constituir indício possível de uma atividade que adormece” [14].

É evidente a influência de Durkheim nessa curiosa teoria que funda a explicação para o riso numa presumida função social que ele exerce: corrigir a rigidez que conspira contra a elasticidade de que a sociedade precisa para não se esclerosar ─ analogamente à pena que, no crime, cumpre a função de renovar a consciência coletiva. Nos termos bergsonianos, precisos e sintéticos, a “rigidez é o cômico, e a correção dela é o riso”. Haveria muito o que dizer dessa teoria, a começar pelo seu discutível ponto de partida. Não é sempre, longe disso, que rimos de uma queda na rua. Rimos das quedas de Carlitos, sem dúvida, e mesmo quando uma criança que está dando os primeiros passos tropeça e tomba na areia fofa de uma praia... Mas não me lembro de já ter achado engraçado a queda de uma pessoa idosa numa via pública! É o que eu acho. O argumento é subjetivo, sei, mas não é mais do que o do próprio Bergson, que também diz: “Acho eu”.

Não obstante, e malgrado essa restrição, acho que a teoria bergsoniana, quanto transportada de situações do cotidiano para a linguagem, levando consigo essa mesma idéia de “queda”, pode servir para analisar o sestro machadiano. O filósofo francês se pergunta: “Existirá também esse tipo de rigidez na linguagem?” E responde: “Sim, sem dúvida, dado que há fórmulas feitas e frases estereotipadas. Um personagem que se exprima sempre nesse estilo será invariavelmente cômico.” Mais uma vez Bergson põe em curso o seu mote do “mecânico calcado no vivo” como definição de comicidade. Aqui, a hipótese bergsoniana se aplicaria sem tirar nem pôr, por exemplo, a José Dias, o patético agregado da casa de Bentinho em Dom Casmurro, cuja marca registrada são os superlativos com que infla de dignidade os pobres lugares comuns que distribui a três por dois [15]. Não tendo nada de seu, como acontece com os agregados, José Dias vive de favor na casa a mãe de Bentinho, prestando-lhe toda sorte de pequenos serviços. É especialista no discurso bajulatório, mas com certa classe e valendo-se de uma cultura de superfície que lhe permitia discorrer ao mesmo tempo sobre os “efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre”, como diz o narrador. Numa dessas fórmulas machadianas impagáveis (“impagabilíssimas!”, diria o agregado), José Dias “sabia opinar obedecendo”. Há uma passagem em que Machado descreve a performance familiar de José Dias num dos serões da família de modo tão delicioso que não resisto à tentação de transcrevê-lo:

“Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa [16] , e confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo.
─ Abaixo ou acima? perguntou tio Cosme um dia.
─ Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.
E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando.”

Voltando à idéia de “queda”, ela agiria, em relação ao sestro, sob a forma de uma “quebra” em fórmulas feitas e frases estereotipadas, como quer Bergson. Ou seja: aplicando a imagem da queda na rua à linguagem, Bergson estatui o que chama de uma “regra geral”, a saber: “obteremos uma expressão cômica ao inserir uma idéia absurda num modelo consagrado de frase.” [17] Residiria aí a explicação da comicidade machadiana? Concordaria que sim, à condição, porém, de reduzir o significado do conceito de explicação. Na verdade creio que estamos aqui diante do simples desvelamento de um processo, não das razões pelas quais ele se dá; noutros termos, diante de um “como”, não de um “porquê” ─ no sentido explicativo do termo. Dito de uma maneira mais analítica, é como se descobríssemos o seguinte encadeamento: a inserção de uma idéia absurda num modelo consagrado de frase produz o riso. Isso é bem diferente de dizer que isso ocorre porque, ao sancionar fórmulas feitas e frases estereotipadas, o riso cumpre a função social de... De quê? Evitar o esclerosamento da literatura? Não faz nenhum sentido. Tanto mais que são coisas diferentes o riso de um personagem que, num texto, sanciona a xaropada do agregado José Dias, e o riso do leitor que ri da descrição da cena: no primeiro caso, o riso é efetivamente uma sanção; no segundo, definitivamente uma homenagem a quem a escreveu! Haveria muito o que dizer dessa distinção, mas...


* * *

“Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase ao final do papel com o melhor da narração por dizer.” (Dom Casmurro)


Muitos anos se passaram desde o meu encantamento com o efeito estético do sestro que abre o Dom Casmurro, ocasião em que começou a minha admiração por Machado. Talvez as coisas não tenham se passado exatamente assim, como já disse, mas a história assim fica melhor contada. Pois bem. Faz algum tempo, pus-me a reler o Senhora de José de Alencar. Para minha grande surpresa ─ e até uma pequena decepção ─, defrontei-me, no livro, com a expressão “um conhecimento de chapéu”...[18] Como se dizia antigamente, caspite! Talvez o que acreditei uma genial invenção nada mais fosse do que uma expressão vigente à época. Ou Alencar foi o seu inventor. Em qualquer dos casos, se tivesse contado a descoberta antes, o meu texto perderia o começo que lhe projetei. Fiz bem, leitor?

Notas

[1] Brito Broca, Machado de Assis e a Política – mais outros estudos, São Paulo / Brasília, Editora Polis / INL – Fundação Nacional Pró-Memória, 1983, pp. 209-210.
[2] Dom Casmurro, Éditions Albin Michel, 1956, tradução de Francis de Miomandre.
[3] Dom Casmurro, Éditions A. M. Métailié, 1983, tradução de Anne-Marie Quint.
[4] Extraído de Josué Montello, Os Inimigos de Machado de Assis, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1998, p. 343.
[5] Alcides Maya, Machado de Assis – Algumas notas sobre o “humour”, Rio de Janeiro, Editora Jacintho Silva, 1912, p. 81.
[6] Astrojildo Pereira, Machado de Assis – Ensaios e apontamentos avulsos, Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1991, p. 14.
[7] Para Brito Broca e Astrojildo Pereira, vejam-se os trabalhos já citados nas notas 1 e 6, respectivamente. Para Roberto Schwarz, vejam-se: Ao Vencedor as Batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1977; e Um Mestre na Periferia do Capitalismo, São Paulo, Duas Cidades / Editora 34, 2000. Para John Gledson, Machado de Assis – Ficção e História, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986; e Machado de Assis – Impostura e Realismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
[8] Astrojildo Pereira, op. cit., p. 160.
[9] Roberto Schwarz, Um Mestre..., op. cit., p. 53.
[10] Sergio Paulo Rouanet, Riso e Melancolia, São Paulo, Companhia das Letras, 2007.
[11] Idem, op. cit. p. 223.
[12] Idem, op. cit., pp. 220-221.
[13] Henri Bergson, O Riso – Ensaio sobre a significação do cômico, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980.
[14] Idem, pp. 18 e 19.
[15] Analisando esse seu caráter, dirá Roberto Schwarz: “note-se que o agregado leva o amor dos formalismos às últimas conseqüências, que é a descrença nas formas elas mesmas. Assim, ele salta de uma a outra conforme a sua conveniência e sem constrangimento, desobrigado de consistência, com desapreço vertiginoso pela dignidade que cultua, o que lhe proporciona uma espécie de liberdade de movimento diante dos seus senhores” (Duas Meninas, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 23
[16] Adiante, ele próprio confessará a Bentinho que a tal viagem nunca tinha acontecido...
[17] Henri Bergson, op. cit., p. 61.
[18] José de Alencar, Senhora, São Paulo, Editora Ática, 1992, p. 68.

Luciano Oliveira
Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPE
email: jlgo@hotlink.com.br

7 comentários:

Le Cazzo disse...

Fez muito bem, caro Luciano. Reconheço-me adulatório diante da qualidade de sua prosa, mas o que posso fazer senão rir de mim mesmo? E agradeço por ter me feito ler com mais vagar a famosa passagem "que conheço de vista e de chapéu" - não digo como interpretava; digo apenas que talvez tenha lido cedo demais o Dom Casmurro - será possível que nesse esclarecimento derradeiro uma mola de uma certa postura intelectual salte? E essa última pergunta, então?

Quanto à adequação de Bergson para pensar o humor machadiano, acostumei-me a pensar no riso como uma explosão de vitalidade contra a tendência à ossificação, mecanização. Riríamos de José Dias porque descobrimos o mecanismo escroto de sua esperteza submissa e também rimos de nós mesmos ao perceber com Brás Cubas que a tragédia de nossa mortalidade, nossa possibilidade mais íntima!!!, por vezes soa como um disco arranhado, como uma engrenagem. Nem ali estamos salvos de querer fazer uma cena? Gostei muitíssimo de seu texto. Jonatas

Anônimo disse...

Lulu,

Acho que, apesar da própria idéia de vitalismo sugerir o contrário, o maior problema com a abordagem de Bergson é que ele acha que o riso é incompatível com a emoção. Talvez o seu funcionalismo o faça perder de vista o que há de mais "vital" no riso, percebendo-o como algo essencialmente punitivo e humilhante. O riso deriva, sobretudo, da ausência de empatia. Mais mecânico, impossível.

Será que a genialidade de um Cervantes (não me atrevo a falar de Machado de Assis com você!)não reside justamente na mistura equilibrada de sentimento trágico e de narrativa cômica? o humor que, para falar como Freud, "sorri por trás de suas lágrimas". Será que não é isso que suscita a figura do o Dom Casmurro?

Ao contrário da dimensão funcionalista contida na obra de Bergson, gosto de pensar acerca do humor como algo vital, sim, mas o vital como uma visão paradoxal da realidade por meio de uma mistura de alegria e dor, compaixão e zombaria. Uma estratégia de renúncia aos absolutos, se você preferir, e que impede que a nossa visão de mundo se torne rígida, congelada, mecânica. Esta renúncia dos absolutos só é possível na medida em que empatizamos com o outro, que conseguimos lidar psicologicamente com as ameaças que tal renúncia implica.

Vixe, tô tão freudiana hoje! Mas o fato é que precisamos de uma teoria de síntese. Bergson, sozinho, não dá conta do humor, como você bem percebe.

Unknown disse...

Luciano filósofo da Piedade.

Machado de Assis não é um escritor cômico e sim trágico. Creio.

Machado como Dickens, ordena estruturas narrativas trágicas, mas, que são evidenciadas por um "discurso manifesto" cheio de humor. O humor que permite desviar-se dos censores das instituições e do moralismo senso comum.

Um dribla o capitalismo selvagem da era vitoriana e o outro como assinala Luciano, by Roberto Schwartz, se infiltra entre o idealismo iluminista na sala e a escravidão na cozinha.

O humor neles dois é essencialmente superficial do jogo frasal. Lembram Jean Baez, que denunciava as mazelas sociais tencionando por contraste com sua voz doce e meiga.

O humor de Machado é essencialmente de "prazer preliminar" dos jogos formais na sintaxe frasal. Fora Luciano que dá gargalhada com os motes machadianos, o leitor vulgar como eu, faz no máximo um leve esgar, que nos descansa da árdua tarefa de ler a dissecação de quadros neuróticos depressivos.

Sem aprofundar a habilidade de enunciação de Machado que deixa a dúvida se a cornice de Bentinho é uma traço neurótico de uma paranóia persecutória, ou a percepção real de desejos adúlteros em Capitu. Verdade ou não, há em Bentinho uma racionalização projetiva colando na realidade marcas para comprovar seu "pânico de êxito", de que não conseguiria conquistar o amor de uma mulher deslumbrante.

Esse traço em Bentinho do homem perverso, que tem energia de construir um casamento, mas impotente, destrói a possibilidade de amar e ser amado. Anunciando sua linha trágica em direção da paráfrase de Paulo Honório de Graciliano Ramos. O homem que não supera o pai persecutório do totem e tabu e acredita que nunca seduzirá o amor autêntico da mulher desejada, pois outro homem fatalmente a roubará de si. Logo terá que destruí-la para que o fantasma paterno não a roube da sua impotência. Isso são expressões cômicas, humoradas?

Luciano que possui uma inteligência e ironia machadiana poderá perguntar-me se Chaplin em Tempos Modernos é cômico ou trágico?

Bergson evidentemente simplifica fatores estruturais e da amplitude psico-social do riso, mas pra dar aula sobre humor na publicidade, ele é o melhor autor para explicar coisas complexas com rara felicidade metafórica.

Cobremos de Bergson a descrição dos principais lugares (tropos) de onde pode partir a construção do riso social. Ele destaca o que Jônitas refere da ossificação do ser humano como ponto de referência para rirmos. Nós teríamos um cordão imaginário dentro da gente, que nos ajuda a equilibrar com a lei da gravidade. Graças a ossificação desse fio, por um desvio do equilíbrio social, impelido especialmente pela maior fonte do cômico, a VAIDADE, nós riríamos da ossificação no pretenso auto status de um ator social, que deveria estar sempre em humilde re-equilíbrio social.

Um general, velho ou novo, cheio de medalhas, anda olhando para o alto, como prova que seu status é superior a média de nós que o vemos num barzinho de rua, do Neno. Rimos quando a ossificação é revelada, pois de nariz erguido não pode ver um batente e tropeça caindo nos seios da gravidade mortal. De anjo levitante a óssea caveira decomposta.

Nós ali numa boa no Neno, tomando umas e outras, escutando Jonatas falar de chips e moléculas, Cynthia de epistemologia da cognição sociológica, Luciano explicando que todo ano lê Brás Cubas, Quincas Borba, e Dom Casmurro, "para limpar a língua". Quando vemos um velhinho, ou um jovem, não importa, caminhando normalmente carregando um cesto na cabeça, e cai no mesmo batente do general.

Ninguém ri, pois não expressava a onipotência nem do general, nem do bebê levitando erroneamente pela areia da praia. Mas, como eu havia bebido muita Serra Limpa, caio na gargalhada. Todos não sabem se olham para o nariz sangrando do rapaz, ou para o cesto esbagaçado no chão, ou para a minha famigerada risada.

Escondo-me no banheiro sem parar de rir. Ao ver o "CESTO" na cabeça do rapaz, antes da queda, ia perguntar a Luciano o que quer dizer "SESTRO", que ele tanto fala a respeito da literatura. Ia dizer lá vem pro Bar do Neno um rapaz com o "sestro de Luciano na cabeça". Quando vi a ossificação do sestro esbagaçado no chão, cai de rir da ossatura da minha ignorância vernacular.

Quando saí do banheiro com uma melancolia machadiana, vi que haviam pago a minha parte da conta. Calados seguiram adiante, fui sem me desculpar para casa, por que a tarde afinal me saíra muito bem. Boa conversa, boa bebida e comida de graça e muita risada. O que queremos mais?

Anônimo disse...

HA HA HA!

E não é que eu concordo com esse doido aí de cima?

Aliás, fui eu quem pagou a sua conta, Dirceu.

asadebaratatorta disse...

O título, nas breves notas, seria um exemplo do humor machadiano? =P

Minha condição de ainda-não-sociólogo me faz perceber uma certa erudição no debate, contribuindo pro meu riso juvenil e desleixado, que descarta a leitura de Dom Casmurro nas primeiras páginas. Talvez, um dia, se eu chegar lá, darei boas risadas. Por enquanto, acho O Alienista mais engraçado. =P

Será que não seria possível pensar numa certa tensão entre tragédia e comédia? Afinal, quem gostaria de ser o Bentinho?

De qualquer forma, a estética do "de chapéu" é mesmo fascinante. A versão machadiana soa-me esteticamente melhor. O estalo, a atenção para o chapéu é muito maior, enquanto a expressão de Alencar ainda foca mais o cumprimento.

Palavras incultas e insones de uma barata torta de tanto ler. =P

Anônimo disse...

professor luciano...
gostei deveras de seu post. "agradabilíssimo"! peguei no ar seu lampejo machadiano "iluminismo na sala e escravidão na cozinha" foi digno de uma boa risada nessa humilde leitora... e concordo q seu texto não teria metade da graça se não discorresse a partir de onde discorreu... um abraço
veridiana

Anônimo disse...

Uau!
Cinco leitores! Cinco! E gente da qualidade de Jônatas Ferreira, Cynthia Hamlin, Direceu Tavares, Veridiana...
E imaginar que Brás Cubas, na mensagem ao leitor enviada do outro lado do mistério, dava-se por pago com "talvez cinco"... Atingi a marca do defunto-autor. O mérito não é meu: é do Bruxo, que escrevendo para este lado de cá do mistério continua a nos interpelar: decifra-me ou te devoro!

Cinco beijos em cada um!

Luciano