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Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
sábado, 3 de abril de 2010
O olho que nada vê: da visão à audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Margaret Archer 1
Cynthia Hamlin
'SOLITÁRIO QUAL NUVEM VAGUEI' *
Solitário qual nuvem vaguei Pairando sobre vales e prados, De repente a multidão avistei Miríade de narcisos dourados; Junto ao lago, e árvores em movimento, Tremulando e dançando sob o vento.
Contínua qual estrelas brilhando Na Via Láctea em eterno cintilar, A fila infinita ia se alongando Pelas margens da baía a rondar: Dez mil eu vislumbrei num só olhar Balançando as cabeças a dançar.
As ondas também dançavam neste instante Mas nelas via-se maior a alegria; Um poeta só podia estar exultante Frente a tão jubilosa companhia: Olhei – e olhei – mas pouco sabia Da riqueza que tal cena me trazia.
pois quando me deito num torpor, Estado de vaga suspensão, Eles refulgem em meu olho interior Que é para a solitude uma bênção; Então meu coração começa a se alegrar, E com os narcisos põe-se a bailar
William Wordsworth in 'O olho Imóvel Pela Força da Harmonia' Tradução de Alberto Marsicano. * Este poema também é conhecido como “Narcisos”.
Há alguns dias, Jonatas sugeriu que eu desenvolvesse algo sobre a concepção de sujeito do romantismo inglês. Para variar, eu disse que não. Para variar, cá estou eu. Bem, sim e não. A verdade é que não entendo nada do movimento romântico e, por uma série de razões que não vêm ao caso, não estou disposta a fazer o investimento monstruoso que Jonatas tem feito no tema. Mas algumas questões que ele tem levantado têm uma implicação direta nas minhas preocupações teóricas do momento, em particular, as noções de subjetividade e de reflexividade, centrais à teoria da agência desenvolvida por Margaret Archer. Meu objetivo aqui não é fornecer um resumo de sua obra, ou mesmo de sua teoria da agência, mas apresentar sua crítica às noções correntes de reflexividade e introspecção baseadas em um modelo que tem o olho e a visão como referências.
Pouco conhecida no Brasil, a obra de Archer pode ser caracterizada em termos de uma tentativa de resolução do problema agência/estrutura que guiou a maioria dos empreendimentos teóricos da década de 1980. Sua estratégia básica consiste na aplicação de uma concepção estratificada de realidade (derivada da obra de filósofos realistas como Roy Bhaskar) que, ao mesmo tempo que reconhece a interdependência das dimensões sistêmica e interativas da sociedade, estabelece uma distinção analítica entre elas e reconhece a autonomia relativa das estruturas sociais, dos sistemas culturais e das práticas cotidianas dos agentes humanos. Em outros termos, a cada uma dessas dimensões correspondem “poderes causais”, propriedades ou formas de agência específicas que não podem ser reduzidas umas às outras. Sociedade, cultura e pessoas são tipos distintos de agentes, com propriedades também distintas. São justamente esses “poderes causais” do agente humano que Archer desenvolve a partir de uma concepção bastante original de reflexividade.
A reflexividade (ou “deliberações reflexivas”) importa porque é por meio dela que ocorrem as influências condicionais dos fatores estruturais e culturais sobre os cursos de ação. Colocando a questão de forma mais simples, as estruturas sociais e a cultura não têm, necessariamente, uma influência direta e imediata na ação humana, mas seus efeitos dependem da forma como os agentes as interpretam (em termos realistas, as propriedades culturais e estruturais dependem de certas condições para que se manifestem de uma maneira específica, o que é uma outra maneira de dizer que as estruturas e a cultura dependem da agência humana para que mudem ou se reproduzam). Isso não quer dizer que a estrutura e a cultura possam ser consideradas idênticas ao que se pensa delas (Archer é uma realista e, como tal, rejeita as diversas formas de idealismo presentes na teoria social). Talvez a posição que mais se aproxime desta posição seja o célebre “postulado de Thomas” (de William Thomas, da Escola de Chicago): “tudo o que for definido como real, será real em suas conseqüências”, embora essas conseqüências possam ser inteiramente distintas do que a crença estabelece. Para recorrer a um exemplo que gosto de dar em minhas aulas de graduação, se eu acredito que existe um monstro embaixo da minha cama, prestes a me devorar durante o sono, é bastante provável que a conseqüência disso seja uma noite mal dormida.
Reflexividade, no sentido usado por Archer, deve ser entendida num sentido bastante amplo: “o exercício regular da habilidade mental, compartilhada por todas as pessoas (normais) de considerarem a si mesmas em relação aos seus contextos (sociais) e vice-versa” (Archer, 2007). Esta definição pressupõe a existência de um domínio mental privado, relativo àquelas atividades da mente humana das quais o sujeito tem consciência. A deliberação reflexiva consiste, neste sentido, em um exercício (auto)crítico no qual desejos, crenças etc. estão sob escrutínio, podendo levar a um autoconhecimento (falível e sujeito às armadilhas do inconsciente) relativo ao que fazer, ao que pensar e ao que dizer.
De uma perspectiva da filosofia da mente, o principal problema que uma noção como a de reflexividade encontra é o de saber como podemos conhecer nossos próprios pensamentos. Para colocar a questão em termos semelhantes ao que Jonatas tem tratado aqui em suas reflexões sobre o romantismo, o famoso dualismo cartesiano entre subjetivismo e objetivismo chega a um impasse quando Kant reconhece que a introspecção, como forma de (auto)conhecimento, pressupõe uma cisão no self segundo a qual somos, simultaneamente, sujeitos e objetos:
“Que eu tenho consciência de mim mesmo é um pensamento que já contém um self dividido, o Eu como sujeito e o Eu como objeto. É absolutamente impossível explicar como o Eu que eu penso ser um objeto (de intuição) para mim é o que me permite me distinguir de mim mesmo, embora este seja um fato indubitável.” (Kant apud Archer, 2003: 53).
Diante desse impasse, as tentativas de se construir o conhecimento com base na introspecção foram progressivamente abandonadas (e aqui passo a bola para Jonatas descrever as soluções tentadas por autores como Schleiermacher e Dilthey). Como no poema de Wordsworth, a introspeção que se dá na solidão (ou, mais apropriadamente, na solitude) permite uma solução estética, mas não epistemológica ao problema do autoconhecimento. Como conseqüência, nega-se que os sujeitos possuam qualquer privilégio epistêmico em relação às suas próprias mentes e conteúdos mentais são, na melhor das hipóteses, tratados como epifenômenos pelas diversas teorias.
Para Archer, no entanto, existe um substituto para a noção de introspecção que nos possibilita pensar sobre o sujeito como alguém que tem uma vida interior extremamente rica e cuja compreensão é fundamental para o entendimento dos fenômenos humanos. Falarei disso no próximo post. Agora eu vou para a praia, cuidar do corpo docente.
Claro que pode, Jonatas. Eu gosto de estréias curtas, rápidas e impactantes. Seu post de amanhã garante pelo menos as duas primeiras coisas. Aliás, fui eu quem andou invadindo sua praia por esses dias.
3 comentários:
Oi, Cythia.
Estou concluindo algo sobre Schleiermacher. Como você me passou a bola, poderia postá-lo amanhã... Ou é muito cedo? Abraço, Jonatas
Claro que pode, Jonatas. Eu gosto de estréias curtas, rápidas e impactantes. Seu post de amanhã garante pelo menos as duas primeiras coisas. Aliás, fui eu quem andou invadindo sua praia por esses dias.
Margareth Archer falando sobre reflexividade:
http://video.google.com/videoplay?docid=9156562982538374872#
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