Caspar David Friedrich: Manhã de Páscoa (ca. 1833)
Jonatas Ferreira
Recentemente, seguidores do trabalho de Alvin Gouldner (The Coming Crisis of Sociology, 1970) têm reafirmado a tese de que a feitura da sociologia tem sido marcada por dois estilos estéticos, o Classicismo e o Romantismo (OSSEWARD, 2007; DE LA FUENTE, 2007), e que é preciso compreender o peso dessa marca, dessa demarcação para procurar operar fora de sua esterilidade. Num certo sentido, essa afirmação consubstancia a importância que atribuímos à cultura Romântica no que diz respeito à emergência de uma sociologia não-positivista na Europa – e que Gouldner, Osseward e de la Fuente chamariam de não-clássica. Nossa intenção, entretanto, não é encontrar estilos, tipos-ideais, categorias, que venham a enquadrar a produção sociológica em limites epistemológicos, ou, mais propriamente, estéticos. Pelo contrário, a própria pergunta da qual partimos (“o que é mesmo Romantismo?”) indica que nosso esforço é de algum modo genealógico. A emergência do Romantismo diz respeito, por exemplo, a tensões de classe efetivas, históricas que lhe atribuem um sentido sem o qual teríamos diante de nós apenas um conceito vazio. Assim, podemos dizer, especificamente que o Romantismo de Novalis e dos irmãos Schlegel teve uma influência considerável no florescimento da hermenêutica de Schleiermacher. Em 1797, organiza-se em torno dos irmãos Schlegel um grupo de discussão do livro Teoria da Ciência, de Fichte. Além de Friedrich e August, o grupo era composto por Novalis, Tieck, Schelling e Schleiermacher (Bornheim, 2005, p. 91). E é nesse espaço que tal influência se opera.
Um primeiro dado objetivo que permite entender o peso dessa influência é a percepção crítica do presente, isto é, do começo do século XIX, como um momento histórico em que os laços com a tradição foram cortados, um momento em que os objetos da cultura se tornam incompreensíveis, um momento de alienação – conceito tão claramente romântico. Se o entendermos bem, esse é um gesto kantiano: já aí está implícita a necessidade de analisar a condição de possibilidade de compreensão de objetos históricos – de um modo semelhante ao projeto kantiano de justificar cientificamente a compreensão de objetos naturais. Porém, mais claramente, esse é um gesto hermenêutico. Essa alienação só se torna efetivamente problemática numa sociedade dinâmica, que se industrializa, onde a tradição se torna um problema. Constatar tal alheamento é de partida um exercício crítico. E é nesse sentido que, no Verdade e Método, Gadamer (2002, p. 263) observa acerca da hermenêutica do século XIX:
“Ela elevou-se fundamentalmente acima de seu objetivo pragmático original, ou seja, de tornar possível ou facilitar a compreensão de textos literários. Não é somente a tradição literária que representa um espírito alienado e novo, necessitado de uma apropriação mais concreta, mas, antes, tudo que já está de maneira imediata no seu mundo e não se expressa nele, e para ele, junto com toda a tradição, a arte, bem como todas as demais criações espirituais do passado, o direito a filosofia etc., encontram-se despojadas de seu sentido originário e dependentes de um espírito que as faça aflorar e intermedeie, espírito que, de acordo com os gregos, chamamos de Hermes, o mensageiro dos deuses”.
E Gadamer segue:
“É a gênese da consciência histórica, a que a hermenêutica deve uma função central, no âmbito das ciências do espírito” (Ibid.).
A obra de Schleiermacher está inscrita no curso de uma tendência em que se coloca a necessidade de refletir acerca da desproporção temporal do presente. Levando a ideia romântica de reflexão até o ponto em que ela se torna um princípio constitutivo da investigação histórica, ele ajuda a construir um pilar fundamental do pensamento científico dos séculos XIX e XX. Ao longo de aproximadamente duzentos anos, a influência da hermenêutica científica como lugar de resistência a concepções instrumentais das ciências humanas não pode ser ignorada. Recordemos nomes como Dilthey, Heidegger e Gadamer para apreciar a importância da tentativa de transformar a hermenêutica em uma ciência universal. E isso significa muito especificamente um posição nova e fundamental para a exegese: ela deve ser entendida como propedêutica da compreensão em geral e não apenas mobilizada quando a interpretação de um texto resultar problemática. Dessa perspectiva, qualquer forma de expressão posta em circulação - digamos um discurso, uma pintura, a produção de uma escultura etc. - já traz em si uma perda de sentido que demanda o exercício hermenêutico, isto é, o esforço de reconduzir essa expressão à originariedade de seu significado. “O esforço da compreensão tem lugar cada vez que não se dá uma compreensão imediata, e correspondentemente cada vez que se tem de contar com a possibilidade de um mal-entendido” (Gadamer, 2002, p. 280-281)
Isto é, o esforço de compreensão tem sempre lugar, é essencial, na exata medida em que a comunicação mobiliza um “tu” cuja expressão será sempre objeto de um “mal-entendido”. Assim, o presente deve ser informado acerca de si próprio e o deve fazer através da história. Mas como a história seria possível da perspectiva desse presente que se reconhece desproporcional, cindido por uma mediação impossível entre finito e absoluto? Não é esse sentimento que o sublime, tal qual definido por Kant e Schiller, já expressa? O projeto schleiermacheriano de uma ciência universal da hermenêutica engaja-se num esforço para responder a essa pressão cultural. Ao procurar responder a essa questão, ele enuncia pela primeira vez duas coisas importantes: a hermenêutica constitui uma arte; seu objetivo é possibilitar compreensão universal. Contra o peso de uma exegese regrada pela tradição clerical, ele propõe a noção de hermenêutica que dá continuação à ideia de ars critica, proposta por Friedrich Schlegel: o trabalho da interpretação deve considerar o entendimento como faculdade poética (no sentido de poiesis, isto é, uma faculdade produtiva). E é exatamente essa ideia que proporcionará uma alternativa teórica à injunção da autoridade da tradição.
Esse elemento anti-tradicionalista dentro do qual a hermenêutica originalmente se localiza e se desenvolve tem um sentido religioso particular. Ele significa a reforma, o direito de interpretar textos religiosos sem a mediação da Igreja Católica. A relação entre o projeto de uma hermenêutica universal e a luta protestante pelo direito individual a uma interpretação inspirada e não clerical da Bíblia é muito forte, como já observou Dilthey (1972, p. 237-238). Não obstante, a necessidade da luta protestante não implicou automaticamente o surgimento do projeto de uma hermenêutica universal. Antes que esse passo fosse dado, uma forma básica de dogmatismo teria de ser questionado, isto é, a ideia de que a Bíblia constituiria um todo cujo sentido deveria orientar a exegese de cada livro, de cada passagem particular. “Na medida em que a teologia da Reforma apela a este princípio para a sua interpretação da Escritura Sagrada, continua, de fato, presa a uma pressuposição, cujo fundamento é dogmático. Pressupõe que a Bíblia é uma unidade” (Gadamer, 2002, p. 276). É quando Schleiermacher renuncia esse dogma que a compreensão de cada texto individual reclamará o auxílio da história.
“O velho princípio interpretativo de compreender o individual a partir do todo já não podia reportar-se nem limitar-se à unanimidade dogmática do cânon, mas dirigia-se à abrangência da realidade histórica, a cuja totalidade pertence cada documento individual” (Ibid., p. 278)
Porém, também aqui já não há conforto, posto que se abandona como dogmático a idéia de que a história constitua um texto cujo sentido total estaria de algum modo disponível. E aqui a filosofia da história de Hegel seria um exemplo da postura a ser combatida.
“Dessa maneira, a resistência contra a filosofia da história universal acabou empurrando-a para o elemento da filologia. Seu orgulho estava em que tal metodologia não pensava o nexo da história universal teleologicamente, a partir de um estado final, como era o estilo do Auflklärung pré-romântico ou pós-romântico, estado que seria igualmente o fim da história, o dia final da história universal. […] A compreensão do decurso total da história só pode ser obtido a partir da própria história” (Gadamer, 2002, p. 308-309).
O problema colocado por uma ciência da hermenêutica, entretanto, transborda o domínio religioso e indaga mais amplamente acerca da relação que o presente pode estabelecer com o passado quando já não podemos contar com um enquadramento simbólico ou mítico. Como julgamos? Como nós informamos o presente acerca do passado quando constatamos que esse presente é o lugar da desproporção? Procurando desfrutar da experiência da produção do texto, Schleiermacher promove a consolidação de uma noção de conhecimento histórico que procura se validar fora dos limites do dogmatismo da tradição – a tradição é em si o problema a ser tomado pela exegese.
Hermenêutica como Ars Critica: Reflexão e Ciência
Anos antes de Schleiermacher formular os princípios de sua hermenêutica, Novalis (1997, p. 28) já observava: “Eu só mostro que entendi um escritor quando posso agir dentro de seu espírito, quando, sem constranger sua individualidade, eu posso traduzi-lo e mudá-lo de diversas maneiras”. É precisamente a possibilidade de ser fiel ao texto, ao demonstrar capacidade de transformá-lo, que caracteriza a dinâmica e qualidade paradoxal da hermenêutica romântica. Em lugar da exposição do sentido, o que ela propõe é um conceito de conhecimento que objetiva à revivência do ato de pensamento que encontra expressão no texto. Seu método é o da mimesis, mas mimesis para Schleiermacher não é a reprodução de uma coisa objetiva, mas a apropriação do ato que dá vida ao texto. Semelhante ao conceito aristotélico de imaginação, a 'imitação' que a interpretação busca é de um movimento. Cedo em sua carreira, e em harmonia com uma herança fichteana que corria no Romantismo de Jena, ele afirma: “Se se considera o entendimento como uma tarefa da hermenêutica e aderimos à percepção [Anschauung] de que o pensamento não deve ser tratado como algo objetivo ou como uma coisa, mas como um ato [factum], todas essas distinções dialéticas podem ser evitadas”. (Schleiermacher, 1977, p. 43). Mediante esse tipo específico de imitação, a imaginação é capaz de determinar um produto que pode mesmo não corresponder à forma estática através da qual o trabalho original foi expresso, e do qual o processo de interpretação teve de começar. O que a imaginação deve necessariamente fazer, entretanto, é fazer surgir a experiência artística, ou religiosa, da produção do texto. As traduções do Édipo Rei e da Antígona, por Hölderlin, ridicularizadas no século XIX, podem ser consideradas exemplos da maneira como a tradição romântica concebia a interpretação de um texto, isto é, buscando não a forma cristalizada do texto em si, mas a experiência artística que o gerou.
A interpretação criativa de um processo criativo, entretanto, demanda um exercício preliminar: colocar-se no lugar do autor, cercar-se das informações históricas necessárias a entender o tipo de diálogo que este estabelece com o seu mundo. Sem o trabalho meticuloso de coletar informação histórica o intérprete não é capaz de reconstituir internamente a atmosfera de onde o texto salta. A revivência interna de condições históricas que permitiram a produção do texto, apesar de constituir um passo necessário, não contempla todo o processo de exegese. Esse processo deve ser completado pela apropriação do ato artístico, do ato de transcendência expressiva, materializada no texto sagrado ou na obra de arte, ao qual o intérprete só tem acesso quando pode sobrepujar o caráter definido do texto. Essa dualidade, como sabemos, traduz dois diferentes níveis do exercício hermenêutico, isto é, uma “interpretação gramatical”, que pretende reconstituir uma totalidade histórica, e uma “interpretação técnica” (ou psicológica).
“Assim, paralelamente à interpretação gramatical, ele coloca a psicológica (técnica) – e nesta é que se encontra o que ele tem de mais próprio. No que se segue, deixaremos de lado as elaborações de Schleiermacher sobre a interpretação gramatical, que em si mesmas são da maior perspicácia. Elas são primorosas para o papel que a totalidade já dada da linguagem desempenha para o autor – e com isso também para o intérprete, assim como para o significado do todo de uma literatura para cada obra individual. Pode ser também […], que a interpretação psicológica, no desenvolvimento do pensamento de Schleiermacher, só adquira paulatinamente sua posição de primeiro plano. Seja como for, essa interpretação psicológica tornou-se realmente determinante para a formação das teorias do século XIX – para Savigny, Boeckh, Steinhal, e sobretudo Dilthey” (Gadamer, 2002, p. 291-292).
Ao dar ênfase ao segundo plano do exercício de interpretação, Gadamer pretende ligar o esforço teórico de Schleiermacher a uma “estética do gênio”, também herança cultural do romantismo. “O modo de criar do artista genial é o caso modelo, a que se reporta a teoria da produção inconsciente e da consciência necessária da produção” (Ibid., p. 299). Interessante pensar a hermenêutica psicanalítica dessa perspectiva. É exatamente porque a obra textual pode ser pensada como a resultante de forças conscientes, que lidam racionalmente com os compromissos históricos que o autor tem com o seu tempo, e inconscientes, que atestariam a medida de seu gênio, que Schleiermacher afirmará que a hermenêutica científica deve propor para si uma maior compreensão do texto do que o próprio autor teria. Para acessar esse campo inconsciente, genial, da expressão textual, o hermeneuta não poderá se valer apenas da razão, mas de um salto emocional em direção ao autor. É nesse sentido que se pode dizer que a interpretação psicológica é um exercício divinatório.
Para realizar essas expectativas, o conceito de hermenêutica deve ampliar seu escopo, da revelação de significados etimológicos para uma reflexão mais complexa acerca da relação entre linguagem e pensamento. O texto é uma fonte de inspiração – esse é o princípio básico de onde um teólogo protestante começaria a conceber o processo de exegese. Para ter acesso à sua qualidade transcendental, entretanto, teríamos de aceitar que ele também é uma sedimentação linguística. De acordo com Schleiermacher, a linguagem tem a capacidade de permitir a interpenetração de esferas excludentes, tais como, particular e universal, finito e absoluto, divino e mundano etc. Ao produzir o texto, a linguagem colocada em movimento pelo autor deve necessariamente refletir um posicionar-se ativo entre essas esferas antinômicas, e, por essa razão, ela não pode ser propriamente entendida se a tomamos por um processo mecânico de atribuir sinais a coisas. Para Schleiermacher, o ato de interpretar é religioso na medida que permite uma revivência finita de um ato de transcendência. O texto é maior que a letra do texto porque o texto é linguagem vencendo aporias. O tema fundamental da linguagem e da produção textual é o campo particular dentro do qual ele se engaja na reflexão acerca do problema do julgamento – que discutimos nos posts anteriores.
O aspecto teológico dessa concepção de hermenêutica é que, embora Schleiermacher possa concordar com Jacobi que o sentimento religioso distingue-se do entendimento, para ele essa oposição tem uma caráter elíptico, isto é, ela sempre cira a necessidade de se tematizar de algum modo a área de contato onde essa oposição é transcendida. Esse movimento não implica, todavia, um cancelamento daquela tensão, pois ele “recusa reivindicar finalidade” (CURRAN, 1994). Antes, trata-se de tornar possível a materialização dessa tensão no ato de transcendência. O texto é tanto transgressão quanto limite. Assim, embora transcendente, o ato de intepretação nunca pode ser absoluto. Analisando as Falas de Schleiermacher, Forstman (1977, p. 99) chega a uma conclusão similar: “Religious consciousness or feeling, the presentiment of the infinite in the finite or of the ultimate identity of the ideal and the real does not elevate a person beyond the boundaries within which humanity is confined. [...] In the analysis of the conditions of dialectics, ‘the intuition of God is never really accomplished but remains only an indirect schematism’.” E, assim, se o texto religioso, por exemplo, deve realizar seu propósito, isto é, permitir a transcendência, ele deve permanecer histórico, pois apenas sua historicidade garante que o ato religioso de transcendência pode ser constantemente reivindicado. Tanto em Schleiermacher quanto em Dilthey, o trabalho da exegese busca alcançar essa vivência de genialidade, de transcendência, de excesso. E é exatamente por isso que o trabalho de interpretação não deve nunca terminar; se isso ocorresse, ele teria falhado, pois o que ele objetiva é a constante reedição do ato original de criação.
Como pode ser percebido do 'Comunicado à Academia de 1829', a posição de Schleiermacher acerca da processualidade do trabalho da exegese variou muito ponco desde suas primeiras considerações na primeira década daquele século. Sua oposição à crença de Wolff em uma hermenêutica que forneceria um insight necessário no pensamento enfatiza essa contingência. O trabalho de interpretação sempre envolve suplementações e revisões. Para ele, esse trabalho compreende o jogo e tensão de dois níveis de interpretação, como vimos acima. A interpretação gramatical é definida como “arte de encontrar o preciso sentido [Sinn] de uma dada afirmação a partir de sua linguagem e com o auxílio de sua linguagem” (Schleiermacher, 1977, 70). A interpretação técnica ou psicológica, por outro lado, caracteriza a tentativa de revelar a maneira particular mediante a qual o autor transforma sua herança gramatical e abre a linguagem a possibilidades futuras. Desse jogo, a ideia de círculo hermenêutico passa a ser compreensível. “Conhecimento completo sempre envolve um círculo aparente, no qual cada parte só pode ser entendida a partir do todo ao qual ela pertence, e vice-versa. Todo conhecimento científico deve ser construído desta forma” (Schleiermacher, 1977, p. 113). É de grande importância que a tensão que configura o círculo hermenêutico possa ser julgado a partir de sua perspectiva temporal. Não existe interpretação gramatical se a estabilidade da gramática não for colocada em movimento pelas contribuições técnicas e particulares do autor; e o inverso é verdadeiro, pois não existe expressão textual que não esteja fundamentado em um conjunto de regras gramaticais mais amplas. A língua se abre ao que ela tem sido e ao que ela ainda será; entre esses dois pontos ela estica-se dentro de si.
O conceito de círculo hermenêutico, entretanto, não se apresenta apenas como uma tensão entre interpretação gramatical e interpretação técnica. Dentro deste último método, uma outra divisão existe, isto é, entre um conhecimento comparativo e conhecimento divinatório. O método divinatório dispõe o intérprete a se transformar no próprio autor de modo a assegurar uma compreensão imediata, endopática, de sua individualidade. O método comparativo, por outro lado, “procede através da subsunção do autor a um tipo geral. Ele então tenta encontrar seus traços distintivos através de sua comparação com outros de mesmo tipo geral. O conhecimento divinatório é a força feminina nas pessoas; conhecimento comparativo, é a masculina” (Ibid., 150). E é essa força feminina, seu salto para fora da racionalidade, que permite afinal suplantar as aporias que a exegese implica. Não surpreende que os termos em que essa solução é proposta nos remeta ao texto kantiano.
“But how is it possible for the comparative method to subsume a person under a general type? Obviously, either by another act of comparison (and this continues into infinity) or by divination.” (SCHLEIERMACHER, 1977, p. 150-151)
Como Schleiermacher lidou com o enigma proposto por Kant? Nós já demonstramos aquilo que caracterizou a resposta do Romantismo de Jena às aporias do julgamento: reflexão infinita, o reconhecimento da precariedade do indivíduo, da desproporção do presente, sua abertura em relação ao futuro. Sob a influência dessa abordagem, Schleiermacher viu a necessidade de lançar luz sobre a relação que esse presente, a atualidade do texto escrito, teria com a tradição, com o passado. Para ele, ao estudar o passado nos dispomos a vivenciar a transcendência do texto.
Para que isso ocorra, precisamos nos submeter à circularidade do processo hermenêutico, como já observamos. Mas qual a garantia de que essa circularidade não resulte vazia? Apenas quando compreendemos que para Schleiermacher a linguagem mobiliza sempre no exegeta uma dimensão dialógica, dialética, obtemos uma resposta. A possibilidade de conhecimento histórico da perspectiva desse diálogo é que a linguagem não seja entendida meramente como repositório de significados. A produção de textos abre uma dimensão comunicativa que não pode ser controlada inteiramente e por esse motivo, mais que um processo de enunciação, ela constitui uma procura. A interpretação visa a restaurar precisamente a centelha viva do processo imediato de conversação, que Schleiermacher descreve do seguinte modo:
The immediate presence of the speaker, the living expression that proclaims that his whole being is involved, the way the thoughts in a conversation develop from our shared life, such factors stimulate us far more than some solitary observation of an isolated text to understand a series of thoughts as a moment of life which is breaking forth, as one moment set in the context of many others. (Schleiermacher, 1977, p. 183)
Apesar de constituir uma área de investimento teórico importante, a dialética para ele está intimamente relacionada à própria hermenêutica. Apesar de rejeitar a arte, Platão representa aqui o ideal de filósofo dialético, de “artista filosófico”. É precisamente à aporia do conhecimento de Platão que Schleiermacher retorna para mostrar o caráter dialógico, reflexivo do conhecimento: para 'vir a saber' o indivíduo 'deve ter algum conhecimento prévio daquilo que ele quer saber'. Todos lembramos daquela passagem do texto platônico em que ele mostra isso com a ajuda de um escravo inculto que é levado a deduzir um teorema matemático. Platão argumenta que todo verdadeiro conhecimento é recordação. Essa entretanto não foi a resposta que Schleiermacher se deu àquela charada, mas o reconhecimento de que todo conhecimento está em processo, constituindo assim uma produção sempre incompleta (SCHLEIERMACHER, 1996). Considerando a influência de Friedrich Schlegel na hermenêutica de Schleiermacher, Dilthey (1972, p. 242) observa que para ele:
“The goal of the interpretation is the unity between the character of Platonic philosophising and the artistic form of Plato’s works. Philosophy is here actual life, life intermingled with conversation, and its literary representation is only a way of setting it down for further reference. So it had to be dialogue, and dialogue of such a carefully constructed kind that it forced its readers to re-create the living transactions between thoughts.”
O fato de a produção de conhecimento ser vista como uma conversação, como um processo no qual as fronteiras da vida e da cognição encontram-se necessariamente confundidas, é uma posição que será alvo de várias reivindicações de cientificidade no século dezenove. Entre elas encontra-se, por exemplo, a filosofia do valor. Dilthey sofrerá esse ataque. Interessa-nos aqui, no entanto, que diversos desses pressupostos que a hermenêutica de Schleiermacher compartilha com o Romantismo de Jena marcarão as ciências sociais.
E nesse ponto estou ainda por decidir se faço um último e derradeiro post sobre Romantismo e historicismo ou se a contribuição pára aqui. O problema é que sempre há algo a dizer sobre o assunto...
[por editar]
2 comentários:
Estou estupefata com a qualidade do texto. Muito bom!
Muito obrigado, cara Anônima. Abraço, Jonatas
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