Cynthia Hamlin
Há cerca de 3 semanas, Artur participou da banca de defesa de dissertação de uma orientanda minha. Um dos pressupostos fundamentais da dissertação era a tese de Margaret Archer de que as estruturas sociais e os valores culturais não incidem diretamente sobre a agência individual, mas são mediados por um processo reflexivo que frequentemente assume a forma de conversações interiores do sujeito consigo mesmo.
Durante a defesa, Artur questionou o pressuposto afirmando logo de cara que não tinha conversações interiores. Foi um choque. Como assim, não tem conversações interiores?! Minha orientanda ainda tentou argumentar, citando Platão: “o pensamento é uma conversa da alma consigo mesma”. Ao que ele replicou: “Alma é uma secreção verde que tem origem no sistema límbico e sai pelo nariz”. Desde então, tenho perguntado a todas as pessoas que cruzam o meu caminho se elas conversam consigo mesmas. Até agora, Artur foi o único que negou ter conversações interiores. Seria ele uma curiosidade sociológica?
Talvez valha a pena um pequeno adendo para compreender o estado de espírito perrusiano no momento dessa afirmação. Artur sofre de uma pequena obsessão por Scarlett Johansson. Coisa leve, claro. Sabendo disso - e que ele resistiria participar de uma banca em companhia de 4 mulheres a fim de discutir gênero - joguei como isca a minha própria orientanda. Como já afirmou o poeta renascentista inglês John Lyly, tudo vale no amor, na guerra e nas defesas de dissertação. Disse que ela era a cara de Scarlett - o que é verdade - e, só por garantia, coloquei um porta-copos com a foto da dita-cuja na mesa à sua frente durante a defesa.
Mas, assim como o amor e a guerra, as defesas de dissertação estão sujeitas à influência do imponderável. Se o truque serviu para atrair Artur para a banca, o Je-ne-sais-quoi scarlettiano que pairava sobre o ambiente parece ter tido um efeito tão poderoso em sua alma que nem todos os lencinhos retirados de todas as bolsas de todas as mulheres da banca foram suficientes para dar conta de suas secreções nasais. E em lugar do intrépido intelectual que desafia Refutador, o demônio de ossos ocos e asas de pterodáctilo (aqui), Artur era a própria imagem de Amelie Poulain, liquefazendo-se diante de uma emoção impossível de ser contida. Pobrecito.
Quanto a mim, faz três semanas que uma dúvida atroz me persegue: seria Artur o elemento empírico que refuta a teoria do agente humano de Archer, ou a teoria está correta e Artur é que não pode ser considerado um agente humano? A última hipótese era cruel demais para ser sequer aventada. Além do mais, já tive evidências de que ele compartilha pelo menos parte da habilidade mental de considerar a si mesmo em relação ao seu contexto e de monitorar suas próprias crenças, desejos e ações - se não por meio de conversações consigo mesmo, pelo menos por meio de outras atividades mentais privadas, como a fantasia, a meditação preparatória, a clarificação, as conversas imaginárias com outras pessoas (Archer, 2003)... De fato, todas essas atividades podem ser percebidas em seu diálogo imaginário com Refutador, exceto a conversação consigo mesmo.
A menos que... Será? Seria Refutador um alter-ego perrusiano, uma espécie de Gollum bachelardiano defensor de rupturas epistemológicas cujas implicações para a concepção de doença mental poderiam parecer excessivamente disciplinantes para o nosso Smeagol sociólogo/psiquiatra? Não seria difícil fundir os diálogos de Artur e Refutador, por um lado, Smeagol e Gollum, por outro:
- O que você quer, ser hediondo? (...)
- Nada, pequeno mortal, nada, a não ser chateá-lo; inclusive, você sabe muito bem por que estou aqui. Deixe de ser imêmore e lembre-se de que sou produto das suas dúvidas, dos seus impasses e das suas confusões. Sempre que uma contradição surge ou um problema de difícil solução aparece, os seus pensamentos procuram-me. Portanto, sou eu que devia estar incomodado, pois fui invocado e retirado por você do meu descanso no sétimo nível infernal. Where would you be without me? We survived because of me! I saved us! It was me! We survived because of me!
- Not anymore.
- What did you say?
- Master looks after us now. We don’t need you.
- What?
- Leave now. And never come back.
Por mais tentadora que possa parecer essa solução, ela traz uma contradição teórica que teria implicações profundas para o self perrusiano, caso fosse aplicável. Se vocês repararem bem, existe uma diferença no uso dos pronomes pessoais que tornam a comparação inviável: Artur/Refutador usam os pronomes “eu”, “mim” e “você”, ao passo que Gollum/Smeagol usam “nós”, “eu”, “mim” e “você”, mas os dois primeiros são relativamente indiferenciados. Em outros termos, embora Gollum/Smeagol tenham um sentido de self, ao contrário de Artur/Refutador, eles não parecem ter uma identidade de self. No próximo post, falarei sobre essa distinção e como Scarlett e Refutador assumem um papel central na determinação da identidade de self perrusiana.
(continua...)
9 comentários:
Hehe... muito bom!
Eu não tenho "interior". Só tenho vísceras dentro de mim!
É verdade, Arture. Sua alma foi parar no lixo do Cefish. Eu vi quando a faxineira levou a montanha de lencinhos num saco preto.
Texto muito legal e as ilustrações estão ótimas.
De forma semelhante a Artur, eu não acredito muito nessa estória de conversação interior, ainda que não tenha lido Archer. Não é que eu não consiga tê-las; não acredito nelas, o que é diferente. (Como naquela máxima: "não acredito em Deus, mas que ele existe, existe...") É sempre muito monótono, quando tento. Acho mesmo que tem algo interessante aí: não é que eu não pense com um Outro, com Outros, é que esse processo raramente tem a clareza de um diálogo, de uma conversa com frases estruturadas etc. Por isso acredito que conversar mesmo a gente só consegue com o outro, mediante sua presença, mesmo que essa presença seja mediada por TICs. Só a presença do outro, nosso desejo de nos comunicar com ele ou ela, ou com um grupo de pessoas, demanda frases estruturadas. Escrever é outra coisa, as frases não são produzidas na mente, internamente, mas do contato pensamento, nervos, músculo, teclado, tela.
Num processo psicanalítico, por exemplo, uma grande descoberta é que não podemos verbalizar as coisas da forma que pensamos-sentimos. E olhe que ali estamos próximos ao menos de um monólogo em frente ao outro.
Eventualmente, quando penso, as coisas podem tomar a forma: "Será que Cynthia, Archer e Veridiana têm razão?" Mas o que se segue não é da ordem do diálogo, da conversa, ainda que possa seguir com mais uma ou duas frases simulando esse procedimento.
Quanto a Artur não ter interior, isso é conversa. O interior dele pode até estar mal decorado,com entranhas e toda espécie de coisas que nós vemos no CSI. Mas que ele tem, tem.
Mas como não li Archer, todas as minhas dúvidas já devem ter sido esclarecidas por ela... Jonatas
Jonfer, você é meu primeiro caso de reflexivo comunicativo! Será, será???
Cynthia,
Bom demais, esse seu texto! Valeu dar uma passada pelo Cazzo, apesar de minha falta de tempo aqui em Aracaju. Embora também não leia Archer, seu texto indica que eu posso ser o primeiro caso de reflexivo comunicativo. A não ser que Jonatas assuma-se como o primeiro. Neste caso, fico sendo o segundo; estou acostumada com isso, sempre fui segunda da classe. Beijão
Obrigada, Tâmara. Fico feliz que tenha gostado. Para falar a verdade, duvido que algum de nós três sejamos primordialmente reflexivos comunicativos, mas, até por nossas afinidades com a vida intelectual, tendemos mais para o que Archer chama de meta-reflexivos e que, para resumir um longo argumento, é um povo mais complicado. Vou ver se dá para desenvolver essa tipologia aqui. De qualquer forma, eu acho essa a parte mais complicada do trabalho da Archer: muito "tipo-ideal" para o meu gosto.
E, Jonatas, depois eu esclareço melhor essa coisa da conversação interior. Suspeito que não é bem como você está pensando. Independente disso, eu suspeito que você conversa sozinho (eu já vi, eu já vi!). Ou você também tem um Refutador de estimação?
Oba!
Tem tipologia, é comigo mesmo! Acho que entendo que uma realista crítica se canse com tipo-ideal, mas eu gosto muito.
Todavia,já vou dizendo que não quero ser meta-reflexiva; não sou complicada, sou simples como Cléa Rosa (pergunte a Rodorval o que isso quer dizer, que ele sabe)
E o blog está grande, agora! Abraço
Tâmara,
Tá pensando que você pode escolher seu próprio tipo-ideal, é? Não é assim que funciona, não! Pergunta a Max Weber!
Realmente, o blog está grande. Isso foi um desgosto que Jonatas teve ontem à noite e descontou no pobre do Cazzo. Mas ficou melhor de ler, né? Eu só acho que a gente podia aproveitar a oportunidade e tirar esse gorilão daí. Antes o Cazzo tinha um monstrinho que era super fofo. Mas a gente cansou dele... Alguma ideia para uma nova figura?
Beijo
Essa conversação interior toda lembrou-me o velho Lua:
"Vivo sempre escutando
A cantiga de vem-vem
Quando ouço ele cantando
Penso ser você que vem
Fico de ôio no caminho
Por fim não chega ninguém
Ai, ai, ai
Por fim não chega ninguém } bis
Quando perco a esperança
Parece uma tentação
Me sento lá no terreiro
Escoro o rosto com a mão
Sem plano, pobre coitado
Fazendo risco no chão
Ai, ai, ai } bis
Fazendo risco no chão
Tá vendo, meu bem tá vendo
Como é doce querer bem
Faz inté levar em conta
A cantiga de vem-vem
Ai, ai, ai } bis
A cantiga de vem-vem"
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