Uma das manifestações do Refutador...
Artur Perrusi
Num dia chuvoso, faz muito tempo, entreguei um trabalho de mestrado à prestigiosa professora Silke Weber. Tinha como tema a teoria das representações sociais. Suava frio porque, num gesto demente, arriscara demais na feitura do texto.
Não me lembro mais da avaliação silkeana. Sei que fiquei um tempinho na frente da porta de sua sala e, minutos depois, escutei gargalhadas inenarráveis. Suspirei, respirei fundo e fui recolher meus cacos.
Muito tempo depois, publiquei o troço, já recauchutado, na revista Caos, da graduação de Ciências Sociais, aqui da UFPB.
Reedito, agora, no Que Cazzo. Bora ver o que acontece. Talvez, Cynthia tenha uma síncope ou exploda a hérnia estrangulada de Jonatas. Enfim, não desejo mal a ninguém.
Lá vai:
Era madrugada e o vento uivava na janela, produzindo um barulho estranho de quem quer entrar. Levantei-me e fiquei reparando na espuma das ondas, despencando o meu olhar sobre a praia de Intermares e recebendo como prêmio um sopro carinhoso de ar quente. Praia estranha, pensei: silenciosa, calada, muda e que não conta o seu pecado a ninguém; talvez porque seja terrível demais e nem mesmo mereça perdão. Há pecados maiores do que nós, sem dúvida – em vão, tentamos cometê-los, embora nossa idade nos diga "ainda é cedo"! Olhava a minha praia da janela, numa noite de luar, e fenecia sôfrego e romântico por ela.
Não sei bem por qual razão, pensei no Inferno... Também, com esse cheiro?! Não, não era o perfume doce de aliamba vindo do Bar do Surfista... um cheiro de enxofre? Olhei à minha esquerda e...
O Refutador estava sentado no canto da janela com um olhar distante de muita espera, como se ali estivesse há bastante tempo. Suas enormes asas de pterodáctilo estavam recolhidas, e o luar da madrugada dava um efeito tenebroso àquela figura dantesca. Com um movimento rapidíssimo - um pequeno bater de suas infra-asas -, pousou suavemente no meu computador, mostrando-me que não era um anjo, e sim um demônio - anjos desfilam ao longo do tempo sem imperativos de voar. Apesar de enorme, o Refutador tinha ossos ocos, por isso podia ficar daquele jeito, quase em cima de mim, com seus olhos cínicos e céticos, sem arrebentar com tudo.
- O que você quer, ser hediondo? - perguntei, com uma voz engasgada de medo. Já conhecia o Refutador de longa data e lhe tinha uma antipatia gratuita.
- Nada, pequeno mortal, nada, a não ser chateá-lo; inclusive, você sabe muito bem por que estou aqui. Deixe de ser imêmore e lembre-se de que sou produto das suas dúvidas, dos seus impasses e das suas confusões. Sempre que uma contradição surge ou um problema de difícil solução aparece, os seus pensamentos procuram-me. Portanto, sou eu que devia estar incomodado, pois fui invocado e retirado por você do meu descanso no sétimo nível infernal. Não sabe que horas são? Por que sempre de madrugada?
O Refutador tinha razão. Meus impasses na tentativa de entender o conceito de representação social e de utilizá-lo na compreensão do saber médico produziram aquela sensação de ausência, aquele gosto de enxofre azedo, que propiciam, quase sempre, a vinda DELE. Decidi, assim, já que era inevitável a sua infecta presença, dialogar pela madrugada adentro. Além do mais, o Refutador era um tipo especial de demônio; talvez o pior tipo, justamente o modelo de arrenegado que tinha inclinação pelas coisas do espírito humano; em suma, um beiçudo intelectual!
EU: Bem, Refutador, se você apareceu, então deve saber por que está aqui. Estou divagando sobre as relações entre a ciência e o senso comum, utilizando para isso o conceito de representação social, com o intuito de aplicá-lo no entendimento do saber psiquiátrico a respeito da doença mental...
REFUTADOR: Pequeno imberbe, logo o conceito de representação social? Tal conceito é identificado com as formas ideativas do "senso comum" e foi concebido para analisar como determinadas "idéias e noções" científicas são apropriadas pelo conhecimento ordinário. Assim, a teoria da representação social analisa apenas um sentido possível: a passagem de "idéias e noções" do conhecimento científico ao "senso comum". Não causa surpresa que Moscovici, o fundador desse conceito maluco, tenha estudado a "fixação" da psicanálise no "senso comum" e não o contrário, como seria o caso se tivesse estudado a influência do "senso comum" na produção dos postulados psicanalíticos (Moscovici, 1978). Pense direitinho e me diga: qual o trabalho que você conhece, cujo caminho é da representação social ao saber científico?
EU: Humm ... realmente não conheço nenhum. Inclusive, os trabalhos que tenho à disposição sempre estão relacionados com o estudo da representação social de algum objeto no "senso comum". São exemplos disso os trabalhos de Claudine Herzlich (1975) sobre a saúde e a doença, bem como o de Jodelet (1989) sobre loucura. Mesmo aqueles estudos que examinam as relações profissionais tentam perceber tais relações como práticas exercidas numa situação cotidiana (Aubré et Raspaud, 1986; Morin, 1989; Guimelli et Jacobi, 1990)... Nenhum deles procura a ocorrência de representações sociais num determinado meio científico ou especializado, no qual o objeto representado é o próprio objeto de conhecimento da disciplina ... Talvez possa encontrar tal ocorrência nos autores americanos, como Eliot Freidson (1984), mas desconfio que seu conceito de representação não se identifica com o de representação social dos autores franceses.
REFUTADOR: Ser betuminoso, veja a enrascada na qual se meteu! Pois como vai encontrar representações sociais na produção científica? O "construto social" doença é apropriado de formas diferentes pelo “senso comum” e pelo saber médico. O conhecimento científico não é "senso comum", e suas representações - conceitos, categorias, sistemas teóricos - não são representações sociais, pelo menos no sentido de "A representação social da psicanálise".
EU: Aí é que tá! Discordo dessa diferença absoluta entre o "senso comum" e a ciência...
REFUTADOR: Espere um pouco, meu caro! A resposta de um físico atômico sobre o que é doença será certamente diferente daquela por ele dada sobre o que é energia quântica. A primeira estaria relacionada (ou mais próxima) com o que chamamos de "senso comum", mas a segunda seria uma resposta científica...
EU: Não me interrompa, por favor. Sinceramente, não me arriscaria a fazer uma ruptura tão grande entre o "senso comum" e a ciência; inclusive, tentaria colocá-la, a ciência, dentro de um conceito "alargado" de ideologia, como uma espécie de "região" ou "campo" surgido e desenvolvido historicamente a partir de instâncias culturais da sociedade, e que ganhou, aos poucos, a sua autonomia relativa. O conhecimento científico não deve ser visto como algo externo à práxis social, uma ciência pela ciência, por exemplo. Na verdade, compreender a sua natureza exige o conhecimento de sua inscrição específica e sua eficácia própria nas práticas sociais. Acho interessante analisar as relações entre o "senso comum" e a ciência como uma circularidade, em que o ponto de partida estaria em algum lugar indefinido do círculo, talvez numa região disforme onde não poderíamos distinguir ciência de "senso comum". Seria, na minha opinião, uma analogia com a formulação de Bakhtin (1986) sobre a circularidade da cultura, em que existe uma influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura hegemônica.
REFUTADOR: Pequeno mustelídeo, e daí?
EU: E daí que o conhecimento científico não é um tribunal onde se julga, sempre culpado de crime contra a verdade, o "senso comum". E mais, estou falando das "ciências sociais" e não exatamente das ciências naturais, como no seu exemplo anterior. O objeto do cientista social é um "objeto que fala" (Bourdieu et al.; 1968: 64), e diria mais: que fala, sente, pensa, cria sentido e produz conhecimento. A ciência social é construída a partir desse conhecimento. Não podemos esquecer que tal conhecimento é produzido por sujeitos que exprimem suas experiências e suas convicções, seus pontos de vistas e suas explicações das situações por eles vividas e interagidas. Se há elaboração, há tipificação, interação e... compreensão. A compreensão é uma condição ontológica da existência em sociedade; nesse sentido, ela antecipa a compreensão "sociológica"...
REFUTADOR: Ser bifronte, posso até concordar com você sobre a gênese da ciência como uma região surgida do "continente ideológico", mas discordo quanto ao seu processo de expansão e independência, já que, com o desenvolvimento da ciência e sua "regionalização", ela se destacou, por assim dizer, da ideologia e, evidentemente, do "senso comum". O processo não se esgota na gênese, como na embriologia, por exemplo. E o processo histórico de formação do conhecimento científico distanciou a ciência do "senso comum".
Dizer que os miseráveis humanos falam, tudo bem - papagaios também falam. Que sentem, vá lá. Admitamos até que compreendam, embora não saibam, como disse o Filho Dele, o que fazem. Mas dizer que essa compreensão ordinária é a base da compreensão científica é ir longe demais...
EU: Peraí, não é bem assim...
REFUTADOR: Peraí nada! Com a sua posição, você não consegue explicar qual é, afinal de contas, a diferença entre o senso comum e a ciência. Para você a diferença é apenas quantitativa? Existiria somente continuidades entre o "senso comum" e a ciência? Ora, os dois lidam com "fatos", diria você. Um empirista, entusiasmado com as suas próprias divagações, diria que a ciência sistematiza e cataloga, e que sua teoria da causalidade é mais abrangente do que a do "senso comum"; portanto, não haveria uma diferença qualitativa entre o conhecimento em geral e o científico. Desse modo, o conhecimento surgiria da sensação para depois tornar-se racional. Essa ligação entre o sentir (percepção) e o racional se manteria pela ditadura dos fatos – império da intuição e da percepção.
Digo-lhe que o conhecimento científico não tem origem no sensível, e sim no racional. Ou seja: a origem do conhecimento não é o real, pois, meu caro lorpa, o conceito não se produz a partir do dado e sim em direção ao fato. Assim, o conhecimento da realidade é um processo comandado pelo conhecimento e condicionado pela realidade. Onde está o "senso comum" nesse processo? Não "está" simplesmente, pois o objeto do conhecimento é construído e o movimento dessa construção é teórico.
EU: Não sabia que no Inferno se lia Bachelard ...
REFUTADOR: Bachelard?! Não só ele, mas outros também... Gilberto Freyre, por exemplo. Um verdadeiro torresmo ardente...
EU: E também, quem sabe, Canguilhem?
REFUTADOR: Sim, por que não? E por falar em Bachelard, talvez você encontre uma relação entre o "senso comum" e a ciência justamente naquela fase pré-conceitual ou pré-científica do conhecimento científico, na qual, como diria você, a ciência ainda está pouco "regionalizada", um tanto misturada no solo arenoso da "ideologia". O objeto da história da Ciência não se identifica com o objeto da ciência. Mas você não é historiador...
Bote na cabeça o seguinte: a compreensão científica vai de encontro à compreensão ordinária. A ciência é uma luta contra o "senso comum" e suas ilusões. O "senso comum" esconde, ilude e desvia. A ciência tem que utilizar as astúcias da razão para não se perder no labirinto do conhecimento ordinário. A razão é uma britadeira que tem que penetrar até o fundo desse material resistente e daí retirar alguma verdade.
Pra que venerar o "senso comum"? Se o conhecimento ordinário fosse o que você diz, pra que Ciência? Seria somente necessário convidar os "laicos", sabedores das suas "experiências e convicções", e deixá-los falar à vontade. Os cientistas sociais seriam apenas restauradores do discurso alheio - tipo os restauradores de monumentos históricos que trabalham para restituir e preservar a obra na sua originalidade - e hiperempiristas. Alguns sociólogos já são assim: deixam um gigantesco espaço para o discurso laico, justo até à exaustão de sentido, isto é, o discurso fica literalmente à disposição do leitor. No fundo, quem vai interpretar o discurso é o leitor e não o sociólogo, esse descendente da preguiça. Subentende-se que o discurso laico ou do "senso comum" seja transparente, condensando todos os significados pertinentes. Ora, quem exprime um discurso assim só pode ser um super-sujeito, mais onisciente do que o Sujeito da Ilustração...
EU: Não me identifico com essa visão de ciência guerreira. A ciência do contra: contra a natureza, contra si própria, contra o passado... o diabo a quatro!
REFUTADOR: Cuidado...
EU: Eita, desculpe aí, foi sem querer. Mas vamos por partes, little Jack!
REFUTADOR: Eu o conheço!
EU: Certo, certo, mas não me interrompa, por favor. Não falei que a compreensão ordinária esgota ou é superior ou igual à compreensão científica. Disse apenas que ela é a base. E por quê? Porque o material do sociólogo vem justamente daí, desse mundo de sentido e de ação.
Sua posição, Refutador, é um tanto objetivista, e o objetivismo, como já dissera Husserl (1989), afirma-se contra o mundo socializado, justamente contra o mundo que o sustenta. Como não levar em conta o mundo vivido pelas pessoas? Mais ainda: como não levar em conta as interpretações e, conseqüentemente, a compreensão que as pessoas têm do seu mundo, já que, inclusive, tal mundo e a compreensão desse mundo são partes constitutivas do objeto dos cientistas sociais? Nesse sentido, reconheço que os sujeitos ou as pessoas, para não utilizar um conceito tão controvertido na filosofia, embora tenham evidentes limitações cognitivas e de ação, são competentes e produzem um conhecimento que faz parte do próprio objeto do pesquisador social.
REFUTADOR (falando em surdina): Acreditar nas pessoas... Acreditar nas interpretações que as pessoas têm de si mesma e do mundo... A única pessoa que tem essa posição no Inferno é Cândido... além da velhinha de Taubaté!
EU (continuando, sem ligar para o dito acima): O mundo das pessoas ou do "senso comum" é o nosso mundo e, se produz ilusão, estando aprisionado nos esquemas típicos da falsa consciência (inconsciente / consciente; manifesto / latente; aparência / estrutura), como afirmar que tais esquemas não fazem parte também de nosso mundo de cientistas sociais? Como postular uma extraterritorialidade para a ciência social, sem postular a ação cognitiva de um supersujeito - ahá, você também, Refutador, não foge das aporias da filosofia do sujeito! - que está além do seu próprio mundo? Um supersujeito que, mesmo tendo sido constituído no mundo de seus objetos de estudo, tem a capacidade de olhá-lo de fora, sem ilusões.
REFUTADOR: Sei, os seres humanos são que nem ratinhos de laboratório num labirinto, onde não há um super-rato que observe livremente o labirinto sem pré-julgamentos e sem a prisão do contexto. Não há uma metateoria do labirinto entre os ratinhos. Quem somente poderia formular tal metateoria seria Deus, quer dizer, o dono do laboratório...
EU: Não há uma metateoria, embora haja teorias de ratinhos que, de algum lugar bem localizado do labirinto, produzem um conhecimento do mesmo, percebendo determinadas coisas do mundo em comum que os outros ratinhos ainda não perceberam. Tais ratinhos, embora façam parte do mundo do labirinto, estando assim "próximos" dos outros ratinhos, pelo fato de terem "uma posição cognitiva" privilegiada, isto é, estarem numa situação institucional na qual podem pensar e refletir sobre as situações vividas no labirinto (fundamentalmente têm tempo investido para refletir), estão também distantes dos outros conterrâneos. Tais ratinhos podem, por causa do conhecimento novo assim produzido, perceber determinadas questões que os outros ratinhos ainda não perceberam, embora o processo de produção de conhecimento do labirinto não seja esotérico - os ratinhos savants não são físicos quânticos -, nem implique que os outros ratinhos possuem alguma incapacidade de princípio em obter, por seus próprios meios, tais conhecimentos ou mesmo de fornecer boas informações a respeito do labirinto. Seria justamente esse maior jogo de proximidade e de distância que caracterizaria a diferença entre a compreensão ordinária e a compreensão científica do labirinto.
REFUTADOR: Proximidade e distância... Humm... Simmel! Aposto também que a compreensão dos ratinhos savants modificaria a sociedade dos ratinhos no labirinto, que modificaria a compreensão dos ratinhos savants, que modificaria a sociedade, ad nauseam, num feed-back eterno. O que Giddens (1987) chama de a dupla hermenêutica...
EU: Sim, é isso.
REFUTADOR: O que me incomoda é a falta de transcendência entre os ratinhos. Que os homens puderam eliminar o Absoluto, posso até compreender, pois daqui do Inferno o Absoluto é bem Relativo, mas eliminar toda e qualquer transcendência é espantoso. Parece que o conhecimento do labirinto esgota-se no labirinto. Um conhecimento fechado de um mundo fechado. Não consigo conceber um conhecimento que não seja um entendimento que vá além de si mesmo. Em suma, sentido sem transcendência é um sentido que se esgota no fato e no mundo empírico, sendo um sentido mitigado.
EU: Nego sim uma transcendência divina, mas não nego uma transcendência com face humana ou, pelo menos, cujas fronteiras estejam nos limites da humanidade. O sentido de uma transcendência humana não é mitigado, e sim histórico, possuindo limites precisos e, por isso, mais modestos. Da fórmula "sujeito absoluto" - após Freud, Marx, o desconstrutivismo... - só jogo fora o "absoluto", permanecendo ainda um sujeito... Certo, um sujeito que não é mais onisciente, mas pelo menos consciente. Reconhecer a necessidade de um diálogo entre o senso comum e a ciência social faz parte dessa proposta de modéstia. Resgatar a subjetividade não é defender a existência de um Sujeito Metafísico, inteiramente transparente, soberano, mestre de si e do mundo. Ao criticar corretamente tal Sujeito, boa parte das teorias sociais abandonou pura e simples qualquer referência à subjetividade.
Veja, quem criou essa estória de ratinhos foi você, Refutador; na verdade, o mundo humano não é fechado, e sim formado por vários mundos e, inclusive, com mundos dentro de mundos. Os sentidos de tantos mundos não podem esgotar-se na realidade factual, sendo assim "transcendentes". Como posso negar uma transcendência se, no fundo, defendo que existe uma "construção social da realidade" (Berger & Luckmann, 1992.)?
REFUTADOR: Idealismo puro! Prefiro pensar numa "construção da realidade social"...
EU: Você me tacha de idealista, e eu te acuso de objetivista. Parece-me que há, em toda essa querela a respeito das relações entre "senso comum" e "ciência social", uma tentativa de se esvaziar o problema do sujeito. No fundo, você é um popperiano, só faltando afirmar que "o conhecimento, na medida em que é objetivo, é um conhecimento sem um sujeito que conhece" (Popper, 1978).
Além do mais, voltando a outro ponto polêmico, a sua análise é muito centrada no processo interno da produção científica. E não é à toa, pois, se não me engano, esta é a posição de Bachelard. Tudo bem, um pensador como Canguilhem, por exemplo, que sofreu muitas influências da filosofia bachelardiana da ciência, procura fazer uma espécie de "epistemologia histórica"; porém, tal epistemologia é praticamente uma história conceitual, na qual o conceito tem um privilégio na análise, sendo o que melhor exprime a racionalidade científica. Assim, tal história conceitual ainda é uma abordagem interna à ciência. Seria uma abordagem importante, sem dúvida, já que rompe com os pontos de vista que afirmam a história da ciência como um processo evolutivo contínuo; contudo, não analisa e não se preocupa com o nosso entrevero: as relações do conhecimento científico com o seu Outro, isto é, os conhecimentos não científicos, mesmo que, reconheçemos, em diversas passagens Canguilhem tente relacionar a história de um determinado conceito com as condições sociais e políticas da época.
Talvez a melhor solução fosse utilizar um conceito "alargado" de paradigma. Dessa forma, "abriríamos" o conceito de paradigma de Kuhn (1975), relacionando-o a condicionamentos históricos e sociais, em que os valores e os conhecimentos do "senso comum" perpassariam longitudinalmente a ciência, resgatando o diálogo entre o "mundo vivido" e o "mundo científico".
REFUTADOR: Sinceramente, isso está mais para Foucault do que para Kuhn...
EU: Não nego o seu parentesco com o conceito foucaultiano de "episteme" ....
REFUTADOR: Tudo bem, mas Foucault reconheceu em As palavras e as coisas o perigo, nas suas próprias análises anteriores, de identificar o conceito de "episteme" com uma totalidade cultural. Convenhamos, o conceito de "episteme" não é exatamente um conceito operacional, pois não é fácil apreender, num longo período histórico, diversas modalidades de práticas e de visões de mundo através de um único conceito - talvez a utilização de modelos cognitivos culturais de longo alcance ajudasse a compreender melhor as representações da loucura num dado período histórico. Lembre-se também que "episteme" é conectado à noção de saber, uma noção distinta da de ciência. Lembre-se ainda que o conceito de paradigma tem vários sentidos, inclusive no próprio Kuhn...
EU: E daí? A polissemia de um termo não elimina a sua pertinência. Kuhn, provavelmente, queria condensar vários sentidos em apenas um conceito - como Foucault, com seu conceito de "episteme". E não esqueça que um discurso fraco pode gerar idéias fortes. O tecido conceitual pode estar relaxado, mas não impede a produção de noções tensas e cortantes.
REFUTADOR: Evasivas! A questão é a seguinte: primeiro, o conceito de paradigma foi aplicado para o mundo interno da ciência, não interrogando as possíveis interpelações que vêm de "fora", principalmente do "senso comum"; segundo, ele está preocupado com os valores e os hábitos da comunidade científica e não das pessoas em geral; terceiro, o conceito de paradigma foi construído para ser aplicado às ciências naturais e não às ciências sociais, a tal ponto que Kuhn, como um positivista, coloca as últimas como pré-paradigmáticas, isto é, pré-científicas...
EU: Alto lá! Isso não é tão fechado em Kuhn. Ele fala, por exemplo, em paradigmas filosóficos quando analisa Descartes. Usa-se, por exemplo, o conceito de paradigma em literatura (Coelho, 1982), bem como pode-se usá-lo em ciências sociais – com algumas modificações, é claro –, contanto que não se perca de vista que a ciência social não comporta um paradigma, mas sim vários, perfazendo uma situação multiparadigmática (Giddens, 1978).
REFUTADOR: Stultorum infinitus est numerus! Muito bem, mas continuamos no âmbito da ciência. E o maldito "senso comum" nisso tudo? Utilizando o conceito de paradigma, pode-se perceber a passagem de um paradigma para um outro ou relacionar paradigmas entre si, mas como perceber a passagem de noções do "senso comum" à ciência? O "senso comum" tem "paradigmas"? Você teria de fazer tantas modificações no conceito de paradigma, para encontrar "paradigmas" no "conhecimento ordinário", que descaracterizaria completamente o conceito original de Kuhn.
EU: Digo-lhe que fazer modificações num conceito não nos leva à fogueira. Você é Refutador e não Torquemada. Uma obra de arte não se esgota na responsabilidade do artista, assim como uma teoria na do cientista. Mas você tem toda razão: para os meus objetivos, preciso fazer algumas modificações no conceito de paradigma, talvez tão grandes que o descaracterize. Mas não importa, contanto que eu tenha consciência do fato.
REFUTADOR: Um eclético! O Senhor das Moscas vai te adorar! Corrumpere et corrumpi saeculum vocatur. Ampliar a tal ponto um conceito pode transformá-lo num conceito bombril, de mil e uma utilidades, menos a de produzir conhecimento.
EU: Não, não é ecletismo. É tentativa e erro, apenas. Você não percebe que todos esses epistemólogos citados (Bachelard, Canguilhem e Kuhn) problematizaram as ciências naturais e não as sociais. Na minha opinião, existe uma diferença de natureza entre ambas, a qual inicia-se a partir dos seus diferentes objetos de conhecimento: o objeto das ciências naturais é o mundo natural, enquanto o das ciências sociais é o mundo humano. Os valores perpassam o "antes", o "durante" e o "depois" da pesquisa social, pois eles são imanentes à produção conceitual e teórica do conhecimento da realidade social do homem. Uma teoria social, como a de Marx, por exemplo, não surge apenas como uma resposta "conceitual" ao socialismo francês, à economia política inglesa e à filosofia clássica alemã, mas possui no seu "interior epistemológico" os condicionamentos axiológicos do contexto histórico e cultural. Toda teoria social possui na sua imanência condicionamentos axiológicos, geralmente "microfísicos" e de poder. Analisar o conhecimento médico, por exemplo, seria examinar também os conceitos históricos e culturais que o orbitam, precedem-no, originam-no e o iluminam.
Quando aplico o conceito de paradigma a um conhecimento como o médico, é evidente que ele não vai ficar indiferente a essa transposição epistemológica...
REFUTADOR: Se existe uma diferença ontológica entre a Natureza e o Homem - pra quem vem do Inferno, a diferença é apenas metodológica - não consigo perceber a viabilidade da aplicação de um conceito de um campo a um outro.
EU: Estou falando, Refutador, de um conceito e não de uma teoria. Um conceito, como mostrou Canguilhem, pode migrar de uma teoria para outra e de um campo epistemológico para outro; contudo, o conceito sofre modificações que, com o tempo, podem transformá-lo completamente. Assim, o conceito de paradigma, quando de sua transposição, precisará incorporar a interferência do axiológico na produção científica.
Veja, o paradigma, assim como o conceito de episteme, pode ser visto como um sistema de regras de formação de discurso. Com o conceito de episteme, resgato para o paradigma toda uma teorização que diferencia o saber e a ciência; mais ainda: resgato uma teorização que tenta descobrir as condições históricas de possibilidade dos discursos e das práticas que dizem respeito a um determinado saber. Ao analisar as práticas, resgato a percepção social que se tem do objeto visado justamente por estas últimas.
Ora, analisar as práticas e a percepção social que formam um saber é examinar seus condicionamentos históricos e sociais. Seria realizar uma análise que sai do âmbito meramente científico, olhando mais de perto as interpelações que vêm do "senso comum". Lembre-se que Foucault analisou o saber psiquiátrico, examinando também as práticas de internamento e as instâncias sociais (Igreja, Medicina, Justiça, et cetera e tal); em suma, estudou a percepção social da doença mental, postulando que esta última foi fundamental para o surgimento da psiquiatria, polemizando conseqüentemente com as histórias oficiais da Psiquiatria, as quais a consideram uma conquista da razão médica. Quando penso em percepção social, penso também nas influências do "senso comum".
REFUTADOR: Pra quem abusou do proselitismo para resgatar o "sujeito", utilizar Foucault não deixa de ser curioso... O "sujeito" foucaultiano é apenas um vetor do Poder.
EU: Certo, mas acho possível resgatar o conceito de episteme sem pós-estruturalismos...
REFUTADOR: Lá vem ele de novo... Além disso, lembre-se de que Foucault coloca a doença mental como uma "invenção" da razão médica.
EU: Discordo de que a doença mental tenha sido uma "invenção" da razão médica; na verdade, a razão médica produziu o conceito de doença mental, o que é diferente de sua idéia social. Na minha opinião, as sociedades humanas percebem de alguma forma o patológico, mesmo que as significações sociais mudem, principalmente quanto à sua relação com o que se considera "anormal".
REFUTADOR: É evidente que o conceito de doença mental é diferente da sua "idéia social". Pelos Demônios! Tenho repetido isso desde que pousei no seu computador. Não existe, por exemplo, uma "experiência social" sobre o conceito de energia quântica, exceto se fosse possível a sua socialização, o que seria, convenhamos, uma superestimação do "senso comum".
EU: Você está me deformando...
REFUTADOR: Não, estou só refutando ("refuto ergo sum!")...
EU: Então está me refutando mal. O conceito de energia quântica, sem dúvida, é uma produção ideativa da ciência, não existindo enquanto tal no meio social; contudo, é bem diferente quando falamos de doença, a qual é percebida e experimentada por qualquer ser humano. Seria muito estranho dizer que a doença foi produzida pela Medicina; afinal, as pessoas adoecem desde a primeira gripe de Adão e Eva após a saída do Paraíso.
E, apesar do seu desprezo pelos mortais, os homens e as mulheres são racionais e refletem sobre seu mundo e sobre o que lhes acontece. Quando tais homens e mulheres interiorizam suas experiências e as "normas sociais" de sua sociedade, tal interiorização não cria um programa automático que agenciaria cada sujeito ao seu papel social respectivo. A interiorização não é passiva e sim turbulenta, sujeita a modificações e a tomadas de consciência. Há uma pressão dos indivíduos, através de suas experiências de vida, sobre a consciência social, e tal pressão proporciona "grande parte do material sobre o qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados" (Thompson, 1981:16).
REFUTADOR: Tamanha certeza sempre esconde uma insegurança. É evidente que você quer levar a discussão para o campo da ciência social, onde é bem mais fácil descobrir "influências axiológicas". Tudo bem, digamos que você tenha sucesso na aplicação do conceito de paradigma no campo do saber. Mas quem disse que a Medicina é um saber?
EU: Confesso que não tenho certeza, pois ainda não defini se a Medicina é um saber ou uma ciência ou mesmo um meio caminho entre os dois. Foucault, por exemplo, coloca-a como um saber, já que a medicina possui como objeto o Homem; mas, tradicionalmente, a Medicina representa-se como científica. Minha tendência, de qualquer forma, é perceber a Medicina como um saber de um tipo específico: um saber profissional.
REFUTADOR: Se você apreender a Medicina como uma disciplina científica, pode até aplicar a epistemologia de Canguilhem na história do conhecimento médico, mostrando-a como conceitual, descontínua, recorrente e, principalmente, progressiva. Foucault, contudo, pode concordar em aplicar tal epistemologia numa ciência, mas não num saber. Percebe-se em História da Loucura que Foucault contesta uma história progressiva da Psiquiatria e, conseqüentemente, não utiliza o presente dessa disciplina médica para julgar o seu passado - não utiliza um critério evolutivo para julgar a história da Psiquiatria. Na verdade, o seu caráter normativo está de cabeça para baixo: quem julga não é o presente e sim o passado. A loucura, o que tem de "original" e "primevo" na sua essência, julgaria do passado o seu "enclausuramento" e a sua "estigmatização" na modernidade. E, nos livros posteriores, como O nascimento da clínica e Arqueologia do saber, Foucault não muda de posição em relação à Medicina e aos outros saberes (economia, biologia e linguagem): todos são perpassados por uma visão relativista na qual não ocorre nenhum julgamento do presente sobre o passado. Olho com estranheza um médico que não vê nenhum progresso na Medicina...
EU: Não, não sei se a Medicina é uma ciência. Podemos utilizar os critérios de verificabilidade e falseabilidade em algumas partes do conhecimento médico, mas a Medicina não é em si uma ciência; na verdade, ela nutre-se das descobertas de ciências como a Química, a Biologia, a Bioquímica, a Genética, etc. Evidentemente, não nego que a Medicina tenha um momento científico, mas defendo que a sua determinação, enquanto um conhecimento específico, vem da sua natureza profissional. Quanto ao progresso médico, reconheço-o enquanto "progresso tecnológico", mas não do ponto de vista da expansão normativa da medicina ou da "medicalização" progressiva da sociedade. Obviamente é melhor sofrer de uma pneumonia no séc.XX do que no séc. XV... contudo, não sei se é melhor ser louco hoje do que antigamente.
REFUTADOR: Medicina como profissão ... humm ... mas quais seriam as características das representações sociais na profissão médica?
EU: Seriam representações de um tipo especial: representações profissionais!
REFUTADOR: Isto é uma especulação sem fundamento!
EU: Por que não? Os profissionais, em particular os médicos, apreendem a sua situação de trabalho tomando muito mais como referência as significações e o sistema de representações atribuídos à sua atividade do que através das características objetivas do mundo profissional. E há um cotidiano profissional, acumulando uma série de experiências intuitivas e tácitas que "formatam" uma série de representações construídas e partilhadas pelos profissionais.
REFUTADOR: Sei, só falta você defender que existe um "senso comum" profissional...
EU: Além de demônio, você é um adivinho! Isso mesmo! Se existe um cotidiano no trabalho, existe uma vivência e, assim, uma produção de representações relacionadas a tal vivência; tais representações formariam uma espécie de "senso comum"... Lembre-se que as relações de trabalho estruturam um sistema de interações entre os indivíduos e, a partir de tal sistema de interações, surgem as representações profissionais. Os médicos partilham idéias e visões a respeito da sua atividade. Tais idéias e visões, como são partilhadas por um grupo social, são autênticas representações sociais, isto é, representações profissionais. Tais representações "formatam" um modelo de profissão: um sistema mais ou menos coerente, mais ou menos consciente de representações do que seja a profissão e sua atividade específica. Cada modelo de profissão corresponde a hábitos, condutas, valores, crenças, esquemas de ação e atitudes que orientam as decisões e as ações dos profissionais. Em suma, representações socais!
REFUTADOR: De qualquer forma, as representações profissionais de profissionais de uma determinada profissão são diferentes das "representações profissionais" que os leigos têm da dita profissão; estas últimas representações é que estariam relacionadas ao "verdadeiro" senso comum, sendo assim "verdadeiras" representações sociais...
EU: Tá certo, mas lembre-se que o conceito de representação social aqui defendido tem uma relação muito maior com o conceito de cotidiano do que com o de "senso comum...
REFUTADOR: Só agora você me diz isso!?
EU: Você não me deixa falar...
REFUTADOR: Como não lhe deixo falar!? Você é uma matraca atômica! E outra coisa: representação profissional é uma representação social que tem como objeto a atividade do profissional; mas não estamos falando disso! Estamos sim discutindo sobre a possibilidade de uma representação do objeto de uma profissão: a doença mental!
EU: Ora, Refutador, estudar as representações profissionais é um primeiro passo para estudar as representações que os profissionais têm do objeto de sua atividade. Inclusive, pode-se argumentar que a representação da doença mental é parte constituinte da representação profissional do psiquiatra. Não existe motivo de procurar a representação social num "locus" externo à profissão. O próprio cotidiano profissional do psiquiatra produz as suas representações sociais sobre o objeto de sua prática: a doença mental.
REFUTADOR: Mas a representação da doença mental entre os psiquiatras não é uma representação social ou profissional, e sim uma representação científica! A visão de doença do psiquiatra não vem do senso comum, nem mesmo do seu cotidiano profissional, e sim da sua formação universitária, calcada no conhecimento científico da doença mental.
No fundo, para você, a determinação social da doença é fundamental; assim, se você admitisse o caráter físico das doenças, poderia identificar a Medicina com a ciência natural e admitir a sua "objetividade". Na verdade, você interpreta o caráter normativo de toda doença, no meio profissional médico, praticamente como uma norma social. Ora, quem dita o caráter normativo da doença é a própria vida, quando se vê ameaçada. O normal não seria um fato e sim um valor. Porém, não um valor social, como você pretende, mas sim um valor estabelecido pela vida. Canguilhem, por exemplo, coloca como ideal de saúde a capacidade de instituir novas normas, enquanto a doença seria um determinado estado em que ocorre a ditadura de uma única norma. O doente, então, perderia a capacidade de ser normativo, sendo anormal, pois não conseguiria fixar novas normas. Ele seria dominado por uma norma de vida inferior, de certo modo "totalitária", porque incapaz de se modificar diante de alterações ou da vontade do paciente. Tal caráter normativo, para polemizar novamente com você, é sempre individual.
EU: Não nego um caráter normativo biológico para a doença, como também não nego o seu "status" físico. O que afirmo - e parece que você não entendeu - é que o médico identifica o "status" físico da doença com a sua significação social, como também elide o papel social do doente. Um cachorro e um homem com gripe, sem dúvida, estão doentes, mas a gripe não terá nenhuma significação social para o primeiro, enquanto para o último, dependendo da sociedade, seu estado poderá ser considerado como doença ou ... preguiça. Uma coisa, assim, é analisar a doença "em si"; outra é apreender a relação entre a doença e a sociedade. Quem produz os "sentidos da doença" é o meio social, apesar de nossa sociedade reservar um lugar privilegiado, nesse processo semiótico, à Medicina.
Portanto, não nego o "status" físico da doença, mas pergunto: qual é o "status" físico da doença mental? Ora, eu posso, de uma certa maneira, diferenciar os limites entre o componente orgânico ou funcional de uma doença da sua significação social; entretanto, no caso da doença mental não sabemos como os limites se dão...
REFUTADOR: É só uma questão de paciência histórica e aguardar que encontrem o componente físico da doença mental.
EU: Estão tentando fazer tal coisa há 100 anos e ainda não conseguiram!
REFUTADOR: Veja, por trás de toda essa sua compulsão em tentar encontrar uma representação social da doença mental entre os psiquiatras, tem o seguinte raciocínio: você diz que os psiquiatras, no fundo, depuram a significação social da doença mental ao naturalizá-la. Na verdade, a significação social da doença mental é a sua própria naturalização. Parece, segundo você, que os psiquiatras acham as visões leigas da doença mental "parasitas" e que, somente depurando o julgamento psiquiátrico dos mesmos, seria possível aceder a uma "objetividade". Acredito que você “leia” a realidade empírica do psiquiatra ajustando-a a um modelo ideal de julgamento. Dessa forma você não reconhece a complexidade das ações e dos discursos dos psiquiatras, cuja referências são originadas de uma pluralidade de julgamentos – o médico e o psiquiatra funcionam como aquela pessoa que, diante de um problema no encanamento da casa, ensaia diversas formas de conserto, até que uma funcione convenientemente.
Parece que você está dominado pelo discurso do especialista. Você acha que o médico deve pensar: "olha, eu tenho um saber especializado; logo, tenho uma autonomia de julgamento sobre o objeto da minha prática profissional, porque posso me apropriar dele de forma eficiente, sem impurezas, sem parasitas e, graças a essa purificação, posso aceder a uma objetividade". Assim, você fica tentado a examinar, por diversas maneiras, se essa reivindicação de autonomia de julgamento é legítima, se os parasitas estão ocultos deliberadamente ou de forma inconsciente.
Ao defender que as visões de doença mental dos psiquiatras são representações sociais, você tenta contestar a reivindicação de objetividade dos psiquiatras em relação à doença mental, mostrando que o discurso psiquiátrico não se depurou dos parasitas, isto é, das interpelações do senso comum. Mas é você que subentende, na verdade, que a psiquiatria produz um julgamento autônomo e depurado sobre a doença mental! Você é que está procurando os elementos parasitas, isto é, as determinações sociais da doença mental no discurso psiquiátrico, subentendendo que exista um a priori: um julgamento autônomo psiquiátrico. Você é que está se colocando do ponto de vista de um discurso especializado e purificado das interpelações do senso comum!
Por isso, essa preocupação toda em procurar determinações externas ao discurso psiquiátrico; determinações provenientes do "senso comum". Ao subentender que existe um discurso autônomo depurado das significações sociais e ao tentar encontrar os parasitas de tal discurso, você produz uma apreensão dualista do discurso psiquiátrico: no discurso existem dois componentes: o "puramente" médico, que precisa ser desmistificado, e o determinado socialmente, que precisa ser justificado sociologicamente. Assim, os atos médicos são vistos como práticas de "etiquetagem" - os psiquiatras julgam, de forma ilusória, que suas ações têm como objeto realidades biológicas, mas que são, na verdade, realidades sociais: sociais na maneira de etiquetar "desvios sociais" (os loucos); sociais na própria decisão médica, já que determinada mais por interesses profissionais ou mesmo de classe do que unicamente médicos.
Dessa forma, porém, fica difícil saber o que é "social" e o que é "biológico" na doença. Tudo porque há a compulsão de se provar que a atividade médica é guiada por determinações sociais (classe social, etnia, profissão, interesses institucionais); tudo para mostrar que o julgamento do médico não é autônomo, e sim "construído socialmente". Mas, se você sabe o que é "construído socialmente", o que seria afinal o julgamento propriamente médico? Mesmo que se prove que a visão de doença do médico é uma representação social, em que isso invalidaria o julgamento médico enquanto tal?. Você, nesse caso, não teria um a priori comandando seu raciocínio: um dualismo ente fatores sociais versus saber especializado? Se você percebeu "referências sociais" ou fatores sociais no discurso do psiquiatra, foi porque tomou, como premissa não discutida, o discurso psiquiátrico como uma expertise? Os fatores sociais traíram que tipo de discurso médico?
Você pensa: - ah, os médicos acham que são especialistas, que têm um discurso científico sobre a doença e que romperam com o "senso comum"; mas vou provar que seu julgamento é permeado de representações sociais e que os médicos recorrem a operações cognitivas completamente ordinárias, típicas do senso comum. O raciocínio médico é ordinário e não calcado num saber formalizado e guiado por regras estritas (onde está o raciocínio clínico, então? Ah, esse também é ordinário e não se distingue do "senso comum"). Você assim iria procurar competências ordinárias no uso da linguagem médica. Os médicos dizem-se livres da linguagem do senso comum!, vamos então mostrar que os pobres coitados, na verdade, confeccionam seus julgamentos através de competências que não se distinguem das competências ordinárias relacionadas ao uso da linguagem em situações de interação social. O saber especializado do médico é desmistificado em relação a sua imagem usual: a aplicação de regras de um saber formal. Cria-se um abismo entre as regras e os julgamentos reais. O veredicto, de novo, é negativo: nada distingue os julgamentos de especialistas de julgamentos profanos.
Assim, cheio de garbo, você prova que o raciocínio médico não é puramente médico! Nada distingue um julgamento de um especialista de um julgamento profano, pois são formados pelo mesmo tipo de competência ordinária, alicerçada nas representações sociais! Você parte da premissa tácita de que o discurso médico é baseado num saber formal e em regras estritas, e finda encontrando o contrário, isto é, um saber ordinário como qualquer outro, perdendo de vista justamente o seu ponto de partida: o saber formal médico. E ficamos sem saber, afinal, qual é a especificidade do saber médico... qual é a especificidade da representação médica da doença mental!
Pense: nada lhe permite dizer que, necessariamente, o saber de um médico, o saber de uma expertise é a aplicação de regras formais. A prática de aplicação de um saber, numa determinada situação institucional, é bem mais complexa do que sonha seu vão dualismo. A tentação pode ser dualista, a partir do momento em que o pesquisador tenta separar ou fazer uma triagem entre o que é autônomo e o que é parasita. O observador dualista tenta, também, só que de outra maneira, "purificar" o discurso especializado. Os fatores "internos" ou imanentes do julgamento são aqueles que correspondem à imagem de expertise pura intuída pelo observador. Os fatores "externos" ou transcendentes do discurso especializado seria tudo aquilo que não é englobado pelo modelo de expertise do observador.
EU: Mas eu não sou dualista... eu...
REFUTADOR: Eu, eu, nada! Já estou enjoado dessa discussão toda, e prefiro mil vezes o meu "inferninho underground" e seu "agito". Você devia era ocupar a sua mente com uma outra questão, bem mais fundamental do que toda essa discussão...
EU: Que diabo de questão é essa?
REFUTADOR: Ora, isso é óbvio! "Seria saber por que Eva foi tirada exatamente da costela de Adão, já que Deus podia usar um pedaço de madeira, uma pedra ou qualquer outra matéria. Aquela costela estava sobrando? Se não estava, então Adão estaria sendo privado por Deus de parte essencial de seu corpo, dado não ser concebível que desde o início estivesse presente no corpo humano algo supérfluo. Ou Adão tinha treze costelas de um lado e doze do outro? Era uma espécie de monstro, como os homens que têm três mãos e três pés?" (Fox, 1993:18)
***
Não respondi ao Refutador, seja porque não saberia, seja principalmente porque ele desapareceu com os primeiros raios de sol do amanhecer - o bicho pulou para dentro do espelho do meu quarto, entrando nele, deixando-me somente com o seu cheiro de enxofre!
Olhei vazio para o espelho e, após alguns pensamentos distantes (os pensamentos mais profundos são sempre aqueles que dão uma impressão de distanciamento), perguntei-lhe: o que é que estou fazendo aqui? Não obtive resposta alguma, exceto a devolução da pergunta, coisa óbvia para um espelho. Fiquei parado, cabisbaixo e amargurado pela falta de interlocutores; então, como um vitelo fulminado, com as mãos contra o rosto, perguntei novamente ao espelho: que sei eu?, como se estivesse à espera do dia em que pudesse perdoar-me a mim mesmo ou tivesse de enfrentar a minha definitiva condenação. Pois compreendera, enfim, que o sentido das minhas ações perdera-se para sempre; nem o mundo, o próprio mundo tinha já mais sentido. E o Sol brilhava e fazia calor em Intermares, pra que, meu Senhor, se nem o espelho responde. Sem dúvida, pensei, é impossível refletir sobre as relações da representação social com a ciência e a medicina sem uma deprimente tomada de consciência dos limites da inteligência humana.
De repente, escutei um voz tonitruante vinda de não sei onde:
- CHEGA DE FRESCURA, RAPAZ!
Sorri, agradeci a Belzebu e comecei a escrever...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NOTA
1) "Minha alma freme de horror ao recordar tais coisas" - é por estas palavras que Enéias começa a dolorosa narrativa do cerco de Tróia...
11 comentários:
Cadê a maquininha de eletrochoque?
PLUG IT! PLUG IT!
(That's kind of intellectual).
MY kind of intellectual. Foi a emoção...
Arture,
desde a nota de rodapé do seu texto anterior que eu estou com a pulga atrás da orelha ("Aspeamos a noção "doença mental" (DM), pois o que existe de fato é o doente ou a pessoa com algum tipo grave de sofrimento psíquico.) A categoria "doença" mental não é construída da mesma forma que qualquer outra categoria relativa a não observáveis, como por ex., a categoria de quantum na física? Negar isso não seria o mesmo que concordar com Foucault de que a doença mental é uma invenção da razão médica (e isso lido da forma mais idealista possível)?
No geral, ficou uma sensação de que vc parece propor uma solução de continuidade entre ciência e senso comum, mas de discontinuidade entre ciência natural e social.
Consegui colocar o divisor. O problema estava num comando html para visualização da imagem. Retirei, a imagem não deu pau, e o divisor está funcionando. Jonatas
Simmel impressionista?
É, como assim, Simmel impressionista. Responde aí vai
Frisby, David. 1981. Sociological Impressionism. A Reassessment of Georg Simmel's Social Theory. London: Heinemann.
Ajuda?!!!
Simmel impressionista... Me convença!
ass: hortênsia da federal
Simmel impressionista comofas
ass: digitando de meu laptop no bar da margarida
Cynthia,
tua pergunta merece uma resposta mais longa. Um post. Farei isso.
acho que é isso mesmo que vc disse: de todo modo, coloquei ciência, mas deveria ser ciência social, tendo como ponto de partida o saber prático; ciência social, tendo uma descontinuidade com a ciência natural. Naquela época, pensava assim mesmo. Quando publiquei, deixei como estava...
Simmel impressionista? Como assim?
Arture,
estamos envolvid@s no mesmo rolo no grupo de epistemologia feminista, discutindo "carne e linguagem" (nas palavras do Thomas Laqueur). Existe uma confusão enorme entre o uso de termos como "sexo" enquanto categoria e sexo como realidade (material), e frequentemente há um deslize entre um sentido e outro. Você colocou o seu debate em termos de ciência e representação social e fico me perguntando se o problema não é melhor atacado ao se pensar categoria (de primeira ou de segunda ordem, pouco importa) e realidade. Doença mental existe como realidade extradiscursiva?
Estamos ansiosas esperando sua exposição do David Will! ;)
Quanto a Simmel, não faço idéia do que é isso aí. Acho que deve estar rolando prova de teoria social, sei lá. Deve ser coisa de Jonatas.
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