quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Sobre a vocação da Sociologia enquanto a morfogênese se intensifica



Por Margaret Archer, Escola Politécnica Federal de Lausanne, Suíça, e ex-presidente da
ISA, 1986 – 1990. Originalmente publicado em Diálogo Global, 3 (1). Novembro de 2012, p. 4-5. Disponível em: http://www.isa-sociology.org/global-dialogue/newsletters3-1/portuguese.pdf


A Sociologia nasceu buscando respostas para quatro perguntas: “de onde nós viemos?”, “o que temos agora?”, “para onde estamos indo?” e “o que deve ser feito?”. Essas são todas perguntas realistas: existe um mundo social real com propriedades reais, habitado por pessoas reais que, coletivamente, construíram o passado e cujos poderes causais já estão modelando o futuro. A maneira pela qual Weber expressou a vocação da sociologia foi descobrindopor que as coisas são “assim” e não “de outra forma”. Aqueles que compartilham esse compromisso jamais poderiam aceitar a conclusão de Baudrillard: “tudo o que resta é brincar com as peças”. Ibn Khaldun poderia ter chamado isso de a marca de uma civilização decadente.

O que é mais danoso do que a “jocosidade” pósmodernista é, na verdade, o estilhaçamento das peças. Toda a vida social – micro –, meso – e macroscópica – entra necessariamente num mesmo SACO; as relações entre “estrutura”, “ação” e “cultura” são sempre indispensáveis para explicar qualquer coisa social.

Sem ser minucioso com respeito às definições, desprezar a “estrutura” e os contextos nos quais as pessoas vivem se torna algo caleidoscopicamente contingente; omita a cultura, e ninguém terá um repertório de ideias para construir a situação que as pessoas enfrentam; sem agência perdemos a relação de atividade-dependência enquanto causa eficiente de existência de uma ordem social. A vocação da sociologia é conseguir levar em
conta as inter-relações e as configurações resultantes. Ao quebrar as peças e então pulverizá-las, muitos teóricos sociais renunciaram a sua vocação e se tornam agentes funerários, escrevendo certidões de mortes para cada componente do SACO. E mais, com essas “mortes”, cada parte do mundo fica privada de ferramentas para explicar por que as coisas são como são e por que as coisas poderiam ser de outra forma.

Com relação às “estruturas”, teorias atuais de “desestruturação” substituem-nas com fluidez. A metáfora da liquidez aponta para a extrema descontrolabilidade do social. Isso foi anunciado pelas sociedades de “fuga”, “destruidoras” e “de risco”, mas a inundação ganhou espaço e está flutuando sobre o mar de fenômenos auto-organizados, projetados pela teoria da complexidade. Entretanto, a inaptidão é gritante em face à crise econômica atual. Essa crise revelou parte de uma estrutura previamente escondida. Sabemos mais agora sobre a estruturação do capital financeiro global e seu entrelaçamento com as multinacionais e os governos nacionais do que antes de 2008. Tudo que é sólido não se desmancha no ar, mas derivados, hipotecas, arranjos e trocas estrangeiras, e débitos do mercado são mais compreensíveis do que o Fordismo.

Porque as posições estruturadas, as relações e os interesses são realmente complicados, a mídia tem banalizado e personalizado a crise em termos de bonificação dos banqueiros, ajudando a rolar algumas cabeças ávidas. Os “Movimentos de Ocupação” testificam a falta de ferramental sociológico. Eles estão se opondo às medidas de austeridade ou a um capitalismo financeiro global? Embora Londres pareça insegura, o movimento de Genebra mantém seminários regulares nos quais discutem como conter as complexidades envolvidas. Associações de economistas heterodoxos vêm sendo frequentemente mais úteis do que os sociólogos. Onde está o nosso equivalente às análises de Stefano Zamagnai sobre as nefastas contribuições feitas pelos últimos dez ganhadores do Prêmio Nobel em economia? Qual é a nossa contribuição visando uma economia civil?

Isso leva à “cultura” e ao imenso papel que a TINA[1] (“There Is No Alternative”) tem desempenhado na tentativa de voltar ao “business as usual”[2]. A “virada cultural” privilegia o discurso, mas a crise não pode ser reduzida ao tom discursivo. A hegemonia do discurso deslocou o conceito de ideologia, relegando-o para a lata do lixo da luta de classes “zumbi”. Com ela, o nexo fundamental entre ideias e interesses foi perdido enquanto lugar de legitimação política. Perdidas foram também as fontes ideacionais da crítica, não meramente como atividades expressivas (há muitas delas), mas como fontes de mobilização social (cuja ausência fortalece a TINA). Ironicamente, como as águas correm, há um obstinado apego ao hábito, a uma disposição de habitus e à ação de rotina na sociologia, a despeito de sua incongruência com mudanças rápidas. No entanto, como os grandes pragmatistas americanos foram os primeiros a salientar, as situações problemáticas são as parteiras de inovação reflexiva.

Finalmente, e o mais sério, é a morte do sujeito, apagado, segundo Foucault colocou há mais de 40 anos, “como um rosto desenhado na areia à beira da praia”. Desde então o nosso apagamento humano foi repetido por muitos limpadores de lousas: as pessoas tornaram-se lousas limpas, abertas para uma auto-inscrição (Gergen), egos serialmente reinventados (Beck), e por fim, rebaixados a agentes “actantes”[3]. Com a morte do sujeito, reflexividade, intencionalidade, assistencialismo e compromisso também saem de cena, juntamente com a capacidade exclusivamente humana de vislumbrar como as coisas poderiam ser de outra forma.

Os defensores das responsabilidades e potencialidades humanas têm sido bastante raros; por conta disso, Andrew Sayer teve necessidade de escrever seu excelente livro Why Things Matter to People. A sociologia conserva um lado humanista, mas seu modo de abordar o humano ainda aparece abafado. Assim, isolamento e solidão não são temas populares quando comparados com a marginalização e a exclusão, mas são, quando muito, flagelos do mundo desenvolvido e de suas consequências. Os sociólogos também são mais contundentes em acentuar a nossa suscetibilidade ao sofrimento do que ao florescimento. Somos ainda muito tímidos no avanço de uma “Sociologia da Prosperidade”, limitando-nos bastante às necessidades biológicas inquestionáveis. Por que não há uma sociologia da alegria, pouco mencionada com exultação ou forte contentamento, e por que a felicidade está delegada às métricas dos economistas? Responder a essas perguntas é um predicado da sociologia no sentido de contribuir para o florescimento da sociedade civil.

Hoje, a principal alegoria é a “modernidade líquida”, mas metáforas nada explicam e muitas vezes confundem (lembremo-nos das analogias mecânica, orgânica e cibernética). Certas teorias da mudança têm acentuado somente um dos elementos isolados do SACO: “cultura” por “Sociedade da Informação”; “estrutura” por “Capitalismo Globalizado” ou “Império”; e “agência” por “individualism institucionalizado” da “Modernidade Reflexiva”. Cada teoria se apropria de somente um dos componentes (empiricamente impactante), considera cada componente como a parte mais importante e o iguala erroneamente ao mecanismo de mudança. Ao invés disso, precisamos examinar as sinergias do SACO e as respostas positivas que tornam a morfogênese o processo responsável por intensificar a mudança – de um modo não metafórico.




[1] Na versão original em inglês, TINA significa “There Is No Alternative”, utilizada frequentemente pela ex-Primeira Ministra Britânica Margaret Thatcher. 
[2] A expressão “Business as usual” faz referência às políticas britânicas adotadas no início da I Guerra Mundial.
[3] “Actante” é um termo frequentemente utilizado na semiótica. Originalmente,
foi utilizado pelo linguista francês LucienTesnière (1893-1954) para denotar
as principais funções sintáticas (sujeito, objeto direto e objeto indireto) que
dependem do verbo na sintaxe. Posteriormente, o linguista lituano Algirdas
Julien Greimas (1917-1992) o utilizará para determinar os participantes ativos
(pessoas, animais ou coisas) em qualquer forma narrativa, seja um texto, uma imagem, um som.


3 comentários:

Pedro disse...

concordo em muitas partes. Realmente, esta na hora de reinvindicar um lugar para a sociologia na explicacao dos fenomenos contemporaneos.
Mas queria lembrar porem que nem todos que trabalham com uma perspectiva inspirada em Latour (a familia Actor-network theory) perdem de vista as estruturas. Tem bons trabalhos nessa linha sobre as estruturas do mercado financeiro, como a Knorr Cetina.

Tâmara disse...

Acho muito bem vinda a inquietação de Archer sobre as relações da sociologia com a dinâmica societal contemporânea. Mas, como Pedro, também acho que ela pode dar a impressão de que a sociologia está absolutamente à côté dos problemas societais contemporâneos. Aqui não penso em autores inspirados por Latour, mas em correntes que mantêm o compromisso com a interconexão das peças do SACO e com o papel crítico da sociologia. Exemplos sumários: teoria anti-utilitarista da ação, evolução da teoria crítica de inspiração frankfurtiana.
Além disso, quando percorro a evolução teórico-metodológica de algumas sociologias especializadas (dos movimentos sociais, da educação, da juventude, etc), percebo que a conexão entre as peças do SACO e a crítica à sociedade não morreram no fazer sociologia. Neste sentido, li outro dia (procurei agora mas não achei), uma resenha sobre o último livro de Boltanski, onde o autor da resenha coloca que Boltanski parece reconsiderar a pertinência das estruturas e os limites metodológicos de uma abordagem meramente situacional.

Cynthia disse...

Também concordo :)