Por Margaret Archer, Escola Politécnica Federal de Lausanne, Suíça, e
ex-presidente da
ISA, 1986 – 1990. Originalmente publicado em Diálogo Global, 3 (1). Novembro de
2012, p. 4-5. Disponível em: http://www.isa-sociology.org/global-dialogue/newsletters3-1/portuguese.pdf
A Sociologia nasceu buscando respostas para quatro perguntas: “de onde
nós viemos?”, “o que temos agora?”, “para onde estamos indo?” e “o que deve ser
feito?”. Essas são todas perguntas realistas: existe um mundo social real com propriedades reais, habitado por pessoas reais que,
coletivamente, construíram o passado e cujos poderes causais já estão modelando
o futuro. A maneira pela qual Weber expressou a vocação da sociologia foi descobrindopor
que as coisas são “assim” e não “de outra forma”. Aqueles que compartilham esse compromisso jamais poderiam
aceitar a conclusão de Baudrillard: “tudo o que resta é brincar com as peças”.
Ibn Khaldun poderia ter chamado isso de a marca de uma civilização decadente.
O que é mais danoso do que a “jocosidade” pósmodernista é, na verdade, o estilhaçamento das peças. Toda a vida social – micro –,
meso – e macroscópica – entra necessariamente num mesmo SACO; as relações entre
“estrutura”, “ação” e “cultura” são
sempre indispensáveis para explicar qualquer coisa social.
Sem ser minucioso com respeito às definições,
desprezar a “estrutura” e os contextos nos quais as pessoas vivem se torna
algo caleidoscopicamente contingente; omita
a cultura, e ninguém terá um repertório de ideias para construir a situação que as pessoas enfrentam; sem agência perdemos
a relação de atividade-dependência enquanto
causa eficiente de existência de uma ordem social. A vocação da
sociologia é conseguir levar em
conta as inter-relações e as configurações
resultantes. Ao quebrar as peças e então pulverizá-las, muitos teóricos sociais renunciaram a sua vocação e
se tornam agentes funerários,
escrevendo certidões de mortes para cada componente do SACO. E mais, com essas
“mortes”, cada parte do mundo fica privada de ferramentas para explicar por que
as coisas são como são e por que as coisas poderiam ser de outra forma.
Com relação às “estruturas”, teorias atuais de
“desestruturação” substituem-nas com fluidez. A metáfora da liquidez aponta
para a extrema descontrolabilidade do social. Isso foi anunciado pelas
sociedades de “fuga”, “destruidoras” e “de risco”, mas a
inundação ganhou espaço e está flutuando sobre o mar de fenômenos auto-organizados,
projetados pela teoria da complexidade. Entretanto, a inaptidão é gritante em
face à crise econômica atual. Essa crise revelou parte de uma estrutura
previamente escondida. Sabemos mais agora sobre a estruturação do capital
financeiro global e seu entrelaçamento com as multinacionais e os governos nacionais
do que antes de 2008. Tudo que é sólido não se desmancha no ar, mas derivados,
hipotecas, arranjos e trocas estrangeiras, e débitos do mercado são mais compreensíveis
do que o Fordismo.
Porque as posições estruturadas, as relações e
os interesses são realmente complicados, a mídia tem banalizado e personalizado
a crise em termos de bonificação dos banqueiros, ajudando a rolar algumas
cabeças ávidas. Os “Movimentos de Ocupação” testificam a falta de ferramental
sociológico. Eles estão se opondo às medidas de austeridade ou a um capitalismo
financeiro global? Embora Londres pareça insegura, o
movimento de Genebra mantém seminários regulares nos quais discutem como conter
as complexidades envolvidas. Associações de economistas heterodoxos vêm sendo
frequentemente mais úteis do que os sociólogos. Onde está o nosso equivalente às
análises de Stefano Zamagnai sobre as nefastas contribuições feitas pelos últimos dez
ganhadores do Prêmio Nobel em economia? Qual é a nossa contribuição visando uma
economia civil?
Isso leva à “cultura” e ao imenso papel que a
TINA[1] (“There Is No Alternative”) tem desempenhado na
tentativa de voltar ao “business as usual”[2]. A
“virada cultural” privilegia o discurso, mas a crise não pode ser reduzida ao
tom discursivo. A hegemonia do discurso deslocou o conceito de ideologia, relegando-o para a lata do lixo
da luta de classes “zumbi”. Com ela, o nexo fundamental entre ideias e
interesses foi perdido enquanto lugar de legitimação política. Perdidas foram
também as fontes ideacionais da crítica, não meramente como atividades
expressivas (há muitas delas), mas como fontes de mobilização social (cuja
ausência fortalece a TINA). Ironicamente, como as águas correm, há um obstinado
apego ao hábito, a uma disposição de habitus e à ação de rotina na sociologia,
a despeito de sua incongruência com mudanças rápidas. No entanto, como os
grandes pragmatistas americanos foram os primeiros a salientar, as situações problemáticas são as parteiras de inovação reflexiva.
Finalmente, e o mais sério, é a morte do
sujeito, apagado, segundo Foucault colocou há mais de 40 anos, “como um rosto
desenhado na areia à beira da praia”. Desde então o nosso apagamento humano foi
repetido por muitos limpadores de lousas: as pessoas tornaram-se
lousas limpas, abertas para uma auto-inscrição (Gergen), egos serialmente
reinventados (Beck), e por fim, rebaixados a agentes “actantes”[3]. Com a
morte do sujeito, reflexividade, intencionalidade, assistencialismo e
compromisso também saem de cena, juntamente com a capacidade exclusivamente
humana de vislumbrar como as coisas poderiam ser de outra forma.
Os defensores das responsabilidades e
potencialidades humanas têm sido bastante raros; por conta disso, Andrew Sayer
teve necessidade de escrever seu excelente livro Why Things Matter to People. A
sociologia conserva um lado humanista, mas seu modo de abordar o
humano ainda aparece abafado. Assim, isolamento e solidão não são temas
populares quando comparados com a marginalização e a exclusão, mas são, quando
muito, flagelos do mundo desenvolvido e de suas consequências. Os sociólogos
também são mais contundentes em acentuar a nossa suscetibilidade ao sofrimento
do que ao florescimento. Somos ainda muito tímidos no avanço de uma “Sociologia da Prosperidade”,
limitando-nos bastante às necessidades biológicas inquestionáveis. Por que não
há uma sociologia da alegria, pouco mencionada com exultação ou forte
contentamento, e por que a felicidade está delegada às métricas dos
economistas? Responder a essas perguntas é um predicado da sociologia no
sentido de contribuir para o florescimento da sociedade civil.
Hoje, a principal alegoria é a “modernidade
líquida”, mas metáforas nada explicam e muitas vezes confundem (lembremo-nos
das analogias mecânica, orgânica e cibernética). Certas teorias da mudança têm
acentuado somente um dos elementos isolados do SACO: “cultura”
por “Sociedade da Informação”; “estrutura” por “Capitalismo Globalizado” ou
“Império”; e “agência” por “individualism institucionalizado” da “Modernidade
Reflexiva”. Cada teoria se apropria de somente um dos componentes
(empiricamente impactante), considera cada componente como a
parte mais importante e o iguala erroneamente ao mecanismo de mudança. Ao invés
disso, precisamos examinar as sinergias do SACO e as respostas
positivas que tornam a morfogênese o processo responsável por intensificar a
mudança – de um modo não metafórico.
[1] Na versão original em inglês, TINA significa “There Is No Alternative”,
utilizada frequentemente pela ex-Primeira Ministra Britânica Margaret Thatcher.
[2] A expressão “Business as usual” faz referência às políticas britânicas
adotadas no início da I Guerra Mundial.
[3] “Actante” é um termo frequentemente utilizado na semiótica. Originalmente,
foi utilizado pelo linguista francês
LucienTesnière (1893-1954) para denotar
as principais funções sintáticas (sujeito,
objeto direto e objeto indireto) que
dependem do verbo na sintaxe. Posteriormente,
o linguista lituano Algirdas
Julien Greimas (1917-1992) o utilizará para
determinar os participantes ativos
(pessoas, animais ou coisas) em qualquer forma
narrativa, seja um texto, uma imagem, um som.
3 comentários:
concordo em muitas partes. Realmente, esta na hora de reinvindicar um lugar para a sociologia na explicacao dos fenomenos contemporaneos.
Mas queria lembrar porem que nem todos que trabalham com uma perspectiva inspirada em Latour (a familia Actor-network theory) perdem de vista as estruturas. Tem bons trabalhos nessa linha sobre as estruturas do mercado financeiro, como a Knorr Cetina.
Acho muito bem vinda a inquietação de Archer sobre as relações da sociologia com a dinâmica societal contemporânea. Mas, como Pedro, também acho que ela pode dar a impressão de que a sociologia está absolutamente à côté dos problemas societais contemporâneos. Aqui não penso em autores inspirados por Latour, mas em correntes que mantêm o compromisso com a interconexão das peças do SACO e com o papel crítico da sociologia. Exemplos sumários: teoria anti-utilitarista da ação, evolução da teoria crítica de inspiração frankfurtiana.
Além disso, quando percorro a evolução teórico-metodológica de algumas sociologias especializadas (dos movimentos sociais, da educação, da juventude, etc), percebo que a conexão entre as peças do SACO e a crítica à sociedade não morreram no fazer sociologia. Neste sentido, li outro dia (procurei agora mas não achei), uma resenha sobre o último livro de Boltanski, onde o autor da resenha coloca que Boltanski parece reconsiderar a pertinência das estruturas e os limites metodológicos de uma abordagem meramente situacional.
Também concordo :)
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