Por Luis Augusto Sarmento Cavalcanti de Gusmão
Caro
Luciano:
Pude
ler, também com atenção e prazer, as suas “Notas de Leitura” sobre o meu livro O
Fetichismo do Conceito. O seu texto
foi uma grata surpresa. Embora discordando de suas discordâncias por razões que
apresentarei a seguir, gostei bastante. Você é o tipo de crítico que todo autor
pediu a Deus: inteligente, correto, sensato, bem informado e, sobretudo,
espirituoso. Motivado pela indiscutível qualidade de seus comentários, gostaria
de fazer a crítica da crítica, como diria o jovem Marx.
Seguindo a ordem de exposição encontrada em
suas notas de leitura, começo pela hipótese acerca das minhas supostas razões
para tratar com implacabilidade e irreverência consagrados teóricos sociais.
Uma amiga sua sugeriu, ao lhe enviar a matéria publicada na “Folha de São
Paulo” em junho passado, que poderia tratar-se de “mais um desses tipos em
busca de sucesso por meio de provocações exageradas”. Mesmo com a ressalva de
que O Fetichismo do Conceito está longe de ser apenas uma
“provocação exagerada”, você afirma que “tais diatribes dão algum suporte à
suspeita de minha amiga”. Não é a primeira vez, nem será provavelmente a última,
que deparo com essa imputação de motivações, que não é, convenhamos, nem um
pouco lisonjeira. Na realidade, temos aqui uma conclusão apressada e
dedutivista, não apoiada em informações factuais que, nesse caso, seriam
realmente indispensáveis: um bom conhecimento
da personalidade do autor, dos seus valores, crenças e história de vida.
Sem isso, a sugestão de sua amiga de que o meu tom polêmico resulta da busca a
todo custo de sucesso corre o sério risco de ser tão leviana quanto injusta. A
dureza no tratamento dispensado a autores como Habermas e Bourdieu, para ficar
apenas com os mencionados por você, expressa tão somente conclusões
epistemológicas, amadurecidas nos últimos vinte anos de leituras e reflexões,
formuladas num estilo que é o meu “desde criancinha” (como reclamava mamãe). Se
você puder examinar um dia os meus exemplares das obras de Habermas, por
exemplo, lidas mais atentamente nos anos noventa, verá que estão cobertos de
iradas anotações, perto das quais o que você leu em O Fetichismo do Conceito
parecerá suave e ameno. Confesso que realmente perdia a paciência ao atravessar
toneladas de engenhosas argumentações para sustentar o insustentável, a saber,
que os caminhos da verdade e do bem não apenas convergem como podem ser
encontrados em mais um sistema filosófico particular produzido na Alemanha. De
Habermas podemos afirmar a mesmíssima coisa que Nietzsche disse um dia da
metafísica alemã mais antiga: do ponto de vista cognitivo, pouco vale, pois não
é ciência genuína, nem muito menos verdadeira
sabedoria. Eu poderia passar dias, acredite, justificando circunstanciadamente
essa dura conclusão. A extrema irritação
com a leitura passava toda para o papel.
As
tentativas de Bourdieu objetivando convencer os seus leitores, em sua maioria
sociólogos não familiarizados com a moderna reflexão epistemológica, do status impecavelmente científico de sua
própria obra, não soavam menos irritantes. Se operarmos com um conceito
estritamente empírico de ciência − e não honorífico ou elaborado exclusivamente
para permitir a inclusão de formas de conhecimento que só partilham com as
ciências, às vezes, o esoterismo vocabular, assegurando-lhes assim prestígio
intelectual e honras sociais −, seremos levados à conclusão de que teorias
científicas, ao contrário dos sistemas filosóficos do passado, não constituem
um ponto de vista pessoal de um autor e seus crédulos discípulos reunidos em
uma escola, mas sim um saber tácita e consensualmente acolhido no âmbito de uma disciplina,
funcionando ali como base teórica indispensável, inescapável, em toda uma área
de investigações empíricas. Alguns físicos franceses do século XVIII que detestavam
Newton ainda insistiam em atacá-lo na defesa de Descartes, mas isso acabou há
muito tempo: nos manuais franceses de mecânica, é Newton, e não Descartes, que
é hoje obrigatoriamente ensinado.O estudo das teorias de Newton, devidamente
incorporadas em manuais, não é de fato opcional para pesquisadores de todo um
conjunto de fenômenos naturais. Nesse
caso, o aprendizado de um conhecimento do geral especializado, distinto e
irredutível às melhores generalizações do saber de senso comum, acolhido sem
maiores discussões filosóficas pelos investigadores de uma área de pesquisa,
soa de fato obrigatório.Ora, nada disso pode ser dito da teoria sociológica de
Bourdieu, pois em todas as áreas da sociologia empírica podemos encontrar
pesquisas sérias que não recorrem, nem precisam recorrer, a um único conceito
“técnico” de Bourdieu. Seria fácil prová-lo. Na realidade, o melhor Bourdieu, o
Bourdieu que pode ser utilizado com proveito na pesquisa empírica, é sempre
redutível ao conhecimento social de senso comum inteligente e bem informado.
Dito de outra maneira, os seus melhores conceitos e generalizações (como, de
resto, os de todos os outros teóricos sociais) podem ser perfeitamente
formulados, com ganhos de clareza e testabilidade empírica, na linguagem
corrente. No meu livro, como você há de lembrar, mostrei, com exemplos
concretos, que os termos do jargão sociológico mais amplamente aceitos, aqueles
dotados de indiscutível conteúdo empírico, são exatamente os termos não apenas
tomados de empréstimo à linguagem corrente, mas que também preservaram
integralmente, quando incorporados ao jargão em questão, os seus significados
usuais, de senso comum. Isso significa dizer que, nesses casos, o conteúdo
empírico do vocabulário sociológico é assegurado, na realidade, pela ausência
de qualquer afastamento em relação aos significados de senso comum dos termos
empregados. A famosa ruptura epistemológica soa aqui simplesmente imaginária. Isso explica por que
os conceitos e generalizações do melhor Bourdieu são opcionais, e não
obrigatórios, na investigação social empiricamente orientada. O seu uso, como o
possível uso de Shakespeare ou Dostoiévski numa análise de uma determinada
manifestação das paixões humanas, embora em certos casos valioso, pouco ou nada
tem a ver com o uso de teorias nas investigações científicas. Sendo assim, as
afetadas e infundadas reivindicações de cientificidade em Bourdieu, que irão
levá-lo a tratar com arrogância e desrespeito a obra de autores avessos ao
cientificismo como Gadamer, soavam para
mim, de fato, irritantes. Essa irritação também foi toda para o papel. Contudo,
as dificuldades de Bourdieu não se limitam a um despropositado cientificismo: em leituras mais recentes,
pude reunir mais de mil páginas de notas de leitura nas quais sublinho, sempre
com exemplos concretos, sem analogismos carentes de controles empíricos e
formais, nem generalizações vazias e retóricas, as dificuldades empíricas desse
autor, em particular as que resultam do uso do conceito de campo em sociologia
da ciência. Um dia, prometo apresentá-las detalhadamente.
Tudo
bem, a discordância intelectual poderia ser expressa de outra forma, e minha
reação psicológica revela um temperamento colérico, difícil, intratável mesmo.
Admito isso sem problemas, não gosto de brigar com os fatos. Mas não vamos
confundir coisas sobre as quais a vontade, infelizmente, pouco ou nada pode,
com uma estratégia urdida, calculada, visando renome. Além disso, eu nada,
absolutamente nada tenho a ver com a algo escandalosa matéria da “Folha de São
Paulo” (a segunda, pois a do Rafael Carrielo, publicada em maio de 2011, é
bastante sóbria: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2703201104.htm
). Na realidade, fiquei sabendo 48 horas antes, e não tive conhecimento prévio
algum dos conteúdos. Não se tratou de uma entrevista. O Renan Springer disse
certa vez, com toda a razão, que, em termos de apresentação fiel das principais
conclusões do livro, essa matéria não foi muito feliz, sugerindo que se tratava
basicamente de uma crítica violenta das obras de famosos teóricos sociais. Como
todos os que leram o livro sabem, nada mais longe da verdade.
Por
outro lado, correndo o risco de parecer odiosamente elitista e personalizar
demais esta resposta, deixe-me confessar o seguinte: para mim, o sucesso que de
fato importa, o único pelo qual despenderia esforços, vem tão somente da
aprovação espontânea e desinteressada dos melhores, de homens e mulheres de
espírito, e não do aplauso de muitos. Eu levo a sério as observações de Karl
Kraus e Fernando Pessoa citadas no meu livro... O reconhecimento que busquei
não veio com as matérias publicadas na “Folha de São Paulo”, mas sim com a
reação de pessoas como Evaldo Cabral, que ligou do Rio, 72 horas depois de ter
recebido pelo correio uma cópia da primeira parte do meu livro, para dizer que
já estava fazendo a segunda leitura do texto. Esse tipo de reconhecimento eu
jamais conquistaria, é supérfluo dizê-lo, com “provocações exageradas”. Mas
deixemos isso de lado. Vamos agora aos pontos mais importantes de seus
comentários críticos.
Você
associa, interpretando passagens do capítulo 1 do meu livro, as investigações
que denomino de conteudísticas e ateóricas, apenas a pinturas de paisagens e
acaba, por conta disso, fazendo a seguinte censura: como pintar paisagens
seria, sobretudo, vocação dos historiadores, e não dos sociólogos, ao criticar
as pesquisas sociais teoricamente orientadas por não serem conteudísticas, eu
estaria, em verdade, censurando os sociólogos por não se ocuparem com uma
atividade típica dos historiadores, tomando assim a história como padrão para
avaliar as ciências sociais. Você vê nisso um verdadeiro sofisma. Nas suas
palavras: “o sofisma, a meu ver, reside no fato de o autor tomar o que seria
vocação de um dos campos, a história, para julgar os feitos de um outro, o das
ciências sociais”. Se você tivesse razão nessa censura, não sobraria muita
coisa do meu livro. Este acabaria reduzido, na hipótese mais piedosa, à
lembrança, completamente dispensável para todo sociólogo mais sensato, de que o
conhecimento teórico, numa disciplina empírica, não constitui um fim em si,
funcionando antes como uma ferramenta intelectual a serviço de investigações
empiricamente orientadas. Como não escrevi O
Fetichismo do Conceito para repetir coisas sensatas, mas banais, essa
redução seria fim de carreira: caberia esquecer a epistemologia, fazer outras
coisas na vida. Felizmente, não corro de fato esse risco. E isso pelas
seguintes razões:
1)
As descrições compreensivas das características
mais ou menos notáveis de mundos sociais particulares, descrições nas quais
essas características são reunidas num quadro coerente e significativo, cuja
riqueza descritiva dependerá da erudição e do nível de generalização em que se
coloca o seu autor, ou seja, as mencionadas pinturas de paisagens, não
constituem vocação exclusiva da história, podendo também ser encontradas nas
magníficas etnografias da antropologia clássica de inspiração funcionalista. Na
realidade, toda e qualquer descrição compreensiva de ambientes sociais
particulares que não seja parte de explicações causais pode ser identificada
como uma pintura desses ambientes. Nesse sentido, é perfeitamente possível
pintar paisagens sociais utilizando conceitos sociológicos, fazendo sociologia.
Assim, por exemplo, podemos retratar a sociedade moderna, enquanto mundo social
particular, em termos mais gerais e abstratos. Não é outra coisa o que faz Marx
ao sublinhar os aspectos que, em sua opinião, vão distingui-la, tais como a
generalização da economia de mercado, a emergência da democracia representativa,
o culto do indivíduo independente e isolado de seus semelhantes, o ritmo febril
das mudanças sociais, que leva as coisas mais sólidas a se esfumarem no ar. Um
sociólogo leitor de Weber poderia incluir nessa paisagem, com ganhos de riqueza
descritiva, o desencantamento do mundo e a dominação legal. Por outro lado, e
mais importante ainda, cabe lembrar que não é a pintura de paisagens que irá
distinguir as investigações sociais conteudísticas e ateóricas das teoricamente
orientadas. Não se trata disso. A distinção é feita aqui levando-se em conta
apenas a base teórica empregada (nas teoricamente orientadas teríamos de
buscá-la apenas nos conceitos e enunciados gerais estabelecidos no âmbito da
moderna teoria social, uma exigência ausente nas conteudísticas) e, sobretudo,
o alcance atribuído a tal base na investigação do socialmente real em toda a
sua complexidade e concretude;
2)
Na discussão acerca dos limites do conhecimento
teórico nas investigações sociais, assunto central do livro, o que realmente importa
é a análise do papel desse conhecimento nas explicações causais, e não na
descrição de ambientes sociais particulares, na pintura de paisagens. Esse
ponto foi claramente formulado no capítulo 1. Com efeito, ali podemos ler: “São
as explicações causais, e não as caracterizações de ambientes ou acontecimentos
sociais, que vão evidenciar, da forma mais límpida, mais conclusiva, os limites
do uso de generalizações na investigação social, como veremos a seguir” (p.
21). Como você pode ver, eu não critico os sociólogos por não pintarem
paisagens como fariam os historiadores. Na realidade, pintar ou não paisagens
não tem maior importância na análise das dificuldades do interpretativismo
teoricista desenvolvida em meu livro;
3)
O que será colocado em questão é a possibilidade
de uma nítida distinção entre a causalidade sociológica e a causalidade
histórica. O argumento clássico em favor dessa distinção reza o seguinte: o
sociólogo lidaria com causações estruturais, lidaria com fatores cujos poderes
causais são uniformes e duráveis, e não apenas contextuais, historicamente
datados, e tais fatores permaneceriam inacessíveis aos não iniciados na moderna
teoria social. Para acessá-los seria imprescindível o recurso a uma base
teórica distinta e irredutível às melhores generalizações do chamado
conhecimento social de senso comum. Dito de outra maneira, a causação
sociológica, enquanto causação estrutural, demandaria explicações teoricamente
orientadas. Muito diferente seria o caso da história. Ocupados com uma causalidade
datada, circunstancial, mais visível, menos profunda, envolvendo apenas
constelações singulares de fatores contextuais, os historiadores já não
precisariam, como os sociólogos, recorrer a teorias sociológicas gerais.
Bastariam aqui as explicações causais intencionais, ou seja, os esclarecimentos
acerca dos interesses, valores, crenças, disposições e objetivos concretos que
moveram indivíduos situados em cenários sociais particulares. Nesse argumento
em favor de uma clara distinção entre causalidade sociológica e causalidade
histórica, temos, é desnecessário dizê-lo, uma espécie de estratificação
epistemológica na qual investigadores sociais teoricamente orientados ocupariam
uma posição privilegiada, estando, por assim dizer, no topo da pirâmide. Este,
sem dúvida, o objetivo explicitamente perseguido por autores como Marx,
Durkheim e Mannheim ao buscarem ultrapassar as explicações intencionais
oferecidas pelos historiadores, constituindo assim uma genuína ciência empírica
da vida social. Marx, lembremos, sonhava com uma história teórica, e Mannheim
fala explicitamente numa “iluminação teórica” da história. Não há nada de
errado, obviamente, com esse projeto teórico, muito pelo contrário. Impossível
não admirá-lo na sua audácia e grandeza intelectuais. Contudo, cabe avaliá-lo
pelos seus efetivos resultados, e estes, como tentei mostrar no meu livro de
forma circunstanciada, com exemplos concretos, de fato desapontaram. Qual a
base dessa conclusão pessimista? Resumindo coisas demais, simplificando demais,
eis a resposta: os conceitos, não importa o nível de abstração e generalidade
em que se situem, aparecem sempre, tanto nas descrições como nas explicações e
predições de um dado evento ou estado de coisas, inseridos em sentenças, que
podem ser gerais ou particulares. Não podemos, portanto, estabelecer relações
de dependência uniformes e invariáveis entre fenômenos sociais tipificados
utilizando apenas termos ou conceitos. Para isso é necessário também dispor de
sentenças gerais, de validade trans-histórica, cujas condições de aplicação já
tenham sido clara e consensualmente fixadas pela comunidade científica, nas
quais se assegure que determinados fenômenos sociais resultam, com
regularidade, de condições sociais tipificadas claramente estipuladas. Se a
sociologia dispusesse de um corpo de sentenças gerais desse tipo, os sociólogos
poderiam dispensar as explicações intencionais da ação social, reduzindo a
intencionalidade humana a uma simples “variável dependente” a ser deduzida,
também ela, de um conjunto tipificado de condições estruturais. Nesse caso,
teríamos de fato uma causação estrutural teoricamente “iluminada”, acessível
apenas aos sociólogos, e a distinção entre causalidade sociológica e
causalidade histórica estaria justificada acima da dúvida sensata. Infelizmente,
semelhante feito teórico ainda não foi realizado por ninguém, apesar de ter
sido inúmeras vezes tentado. Descrições das condições mais gerais e duráveis da
ação intencional, individual ou coletiva, ou dos efeitos não premeditados nem
desejados dessas ações, não constituem, por razões detalhadas em O Fetichismo do Conceito, nada parecido.
Quanto aos chamados “mecanismos”, vistos por alguns teóricos sociais mais
modestos e sensatos como uma espécie de terceira via capaz de superar a
dicotomia entre narrativa e causação nomológica, além das dificuldades
apontadas no livro, cabe lembrar que, também nesse caso, ninguém convenceu
ninguém e as igrejinhas teóricas se multiplicaram numa, como diria Montaigne,
“infinita e perpétua altercação de ideias e de argumentos”. Não seria difícil
prová-lo.
4)
A efetiva existência de padrões societários, ou
seja, de formas de agir, pensar e sentir coletivas mais duráveis, mais
permanentes, capazes de reproduzir-se no transcurso de um tempo que já não
medimos à escala da vida de um indivíduo( os chamados “fatos sociais,”cuja
realidade foi corretamente sublinhada por Durkheim), não basta para autorizar uma nítida distinção entre
explicação sociológica teoricamente orientada e explicação histórica: como
procuro mostrar em O fetichismo do
conceito com vários exemplos, é perfeitamente possível, sim, proceder ao
registro empírico desses padrões societários, explicá-los em termos causais e
utilizá-los na explicação da ação individual e coletiva, sem o recurso a
qualquer conhecimento teórico especializado relativo às sociedades humanas,
concebidas na totalidade de seus aspectos. Em outras palavras, a presença de
padrões na vida social não demanda obrigatoriamente, como é o caso dos padrões
do mundo físico, um conhecimento do geral distinto e irredutível às melhores
generalizações do saber de senso comum. Sendo assim, podemos falar numa
sociologia conteudística, não dependente das teorias particulares do autor A ou
B, cujas explicações já não diferem qualitativamente das explicações
encontradas na boa historiografia. No meu livro, a obra de Tocqueville aparece
como um dos mais convincentes exemplos dessa possibilidade.
Após citar com
aprovação uma passagem na qual sublinho a utilidade de conceitos sociológicos técnicos,
formulados por teóricos particulares na visibilização de importantes fenômenos
sociais, você pergunta: mas tais conceitos não seriam as novas ferramentas
intelectuais que permitem a superação do inventário exaustivo das constelações
de variáveis contextuais? Respondo: Infelizmente, não. Eis minhas razões:
1) Visibilizar
um dado fenômeno ao nomeá-lo, ao etiquetá-lo, ao inseri-lo numa determinada
classificação ou tipologia, não é oferecer uma explicação causal teoricamente
orientada desse fenômeno, não é, a rigor, oferecer explicação causal nenhuma: a
visibilização da existência de algo não se confunde, claro, com a explicação de
suas origens. Esta, quando possível, virá depois, numa segunda etapa. Temos
aqui duas coisas diferentes, cabe distingui-las. Ora, como os inventários
exaustivos de variáveis contextuais causalmente relevantes se tornam
indispensáveis devido à inexistência de genuínas explicações causais
teoricamente orientadas, não podemos superar tais inventários apontando apenas
para a utilidade do vocabulário sociológico, das novas ferramentas
intelectuais, na visibilização dos fenômenos sociais;
2) A
passagem citada por você é da primeira parte do livro, escrita em 2006, época
em que eu ainda alimentava um relativo otimismo quanto a possíveis utilidades
de jargões sociológicos. Com o passar dos anos, com o aprofundamento de minhas
observações, esse otimismo, em larga medida, evaporou. Eu alerto o leitor, da
forma mais explícita possível, para essa mudança, além de justificá-la
detalhadamente. De fato, na página 326 lemos: “Abandonando certo otimismo ainda
presente em nossas primeiras observações acerca do uso de conceitos
sociológicos técnicos, fornecidos pelo teórico A ou B, nas investigações
sociais conteudísticas, gostaríamos de esclarecer o seguinte: embora seja
possível, como demonstramos com o exemplo de Burke e com o nosso experimento
mental de um Sérgio Buarque ‘teórico’, o emprego empírico e não dedutivista
desses conceitos, não é isso, infelizmente, o que em geral ocorre”. Em seguida
eu explico por que razões o fetichismo do conceito se tornará menos provável se
o investigador utilizar apenas conceitos sociais de senso comum, cujos
significados tenham sido fixados por um uso social padrão na vida cotidiana,
evitando jargões sociológicos. Eis uma dessas razões: é que esses conceitos
“estão menos enredados, por assim dizer, com problemáticos enunciados gerais do
que boa parte dos conceitos sociológicos, formulados num jargão técnico por
este ou aquele teórico social, e se prestam menos, devido a isso, a ilações
dedutivistas acerca da causação social” (p. 327). Assim, por exemplo, o termo
“classe operária” em seus significados usuais, de senso comum, não viabiliza,
sem as devidas qualificações conteudísticas, maiores conclusões sobre as classes
operárias reais, empiricamente dadas,
pois não há muito a dizer, nesse caso, a partir do mero conteúdo conceitual: se
o pesquisador quiser concluir coisas novas e substantivas, precisará realmente
realizar pesquisas empíricas. Não há outra saída! Portanto, a pobreza do
conteúdo sistemático dos conceitos sociais de senso comum, longe de representar
um problema, acaba se revelando aqui uma grande vantagem ao inviabilizar
dedutivismos, ao obrigar o pesquisador a mergulhar no trabalho empírico. Em
contrapartida, se tomarmos o mesmíssimo termo na acepção teórica, técnica, que
assume na sociologia marxista, tudo muda dramaticamente para pior. A ruptura
com o senso comum se mostra desastrosa: indissoluvelmente comprometido com toda
uma teoria geral da sociedade e da história de discutível conteúdo empírico, o
conceito técnico de classe operária permitirá agora um verdadeiro dilúvio de
ilações dedutivistas. Ganha o interpretativismo teoricista, perde a sociologia
empírica. Em O Fetichismo do Conceito
isso é bem ilustrado, como você há de lembrar, pela análise impiedosa da obra,
não de um sociólogo, mas sim de um consagrado historiador, o Thompson. Não, não
se trata de contrapor disciplinas nem de julgar uma com base na outra;
3)
Na segunda e terceira partes do livro, abandonando
o mencionado otimismo, coloco em dúvida até mesmo a modesta utilidade,
atribuída ao jargão sociológico, de visibilizar importantes fenômenos sociais.
Eu, de fato, não acredito mais nisso. Não por inexplicável e gratuita birra com
os teóricos sociais, nem por ter presenciado, na condição de examinador de
bancas de pós-graduação, o uso mais insano, mais tresloucado desses teóricos,
embora isso ocorra de fato com frequência e não seja, diga-se de passagem,
culpa exclusiva da imaturidade de mestrandos e doutorandos – as ilusões
teoricistas acerca do que podem fazer com simples quadros conceituais não são de
responsabilidade apenas deles. Na realidade, venho nos últimos anos fazendo a
reiterada constatação de que observadores argutos da vida coletiva, valendo-se
tão somente de conceitos de senso comum expressos na linguagem corrente
(leia-se: conceitos cujos significados foram fixados pelo uso padrão na vida
cotidiana e não no interior de um conhecimento especializado), foram, sim,
perfeitamente capazes de vislumbrar, com a devida nitidez, aqueles fenômenos
sociais mais tarde visibilizados por conceitos sociológicos formulados num
jargão técnico. No livro eu dou alguns exemplos que poderiam ser facilmente
multiplicados. A lista, acredite, não é pequena! Se eu não estivesse fora do
Brasil agora, longe da minha biblioteca, incluiria aqui novas “provas empíricas”
dessa conclusão. Não, eu não estou fazendo “graçolas”, buscando ser divertido –
seria desastroso: não tenho, infelizmente, esse talento – ao citar aquela
passagem de Pascal. Trata-se de uma observação epistemológica importante cujas
implicações práticas, na pesquisa empírica, estão longe de ser irrelevantes: se
eu estiver correto, os sociólogos efetivamente envolvidos com pesquisas
empíricas (os outros, os aprendizes de filósofos, os moralistas travestidos de
“cientistas”, não importam minimamente) já não precisariam perder o seu valioso
tempo com a exegese de textos, tentando entender o significado “exato” de
dispensáveis jargões sociológicos, já não precisariam exibir, para ganhar
respeitabilidade intelectual entre os seus pares, o domínio desses jargões. Ótimo,
não?
Nenhum comentário:
Postar um comentário