Por Luis Augusto Sarmento Cavalcanti de
Gusmão
Vejamos mais uma questão levantada em suas
“Notas de leitura”. Eu faria, diz você, “malabarismo verbal” ao distinguir as
luminosas generalizações acerca dos seres humanos e suas interações duráveis,
encontradas na grande literatura e na melhor filosofia, das “teorias que os
sociólogos prezam”. Eu estou convencido de que as generalizações de Tchekhov e
Stendhal, citadas em O Fetichismo do
Conceito, constituem um sofisticado e valioso conhecimento do geral em
assuntos humanos. Diria também que esse saber, formulado exclusivamente com
base em conceitos de senso comum expressos na linguagem corrente, apresenta,
num contraste vivo com os sistemas filosóficos particulares que buscaram
rupturas com o “vulgo”, algumas das características distintivas das ciências mais
avançadas: impessoalidade, generalidade e indubitável conteúdo empírico. Isso
não significa dizer, claro, que toda generalização formulada por literatos de
gênio possua essas características. Estou apenas buscando mostrar que a
capacidade de produzir generalizações sumamente inteligentes e verdadeiras em
assuntos humanos não constitui, ao contrário do que ocorre em relação ao
conhecimento da natureza, um privilégio epistêmico profissional, não requer a
iniciação prévia num saber especializado. Contudo, não estou contrapondo, em
termos gerais, “a teoria que os sociólogos prezam” às generalizações já
disponíveis na chamada grande cultura humanista. Podemos localizar, sim,
conclusões gerais de inegável valor cognitivo nas obras dos mais importantes
teóricos sociais. Em O Fetichismo do
Conceito, admito esse fato da forma mais clara e explícita possível. Com
efeito, logo depois de fazer o elogio das geniais observações de Stendhal sobre
a paixão de poder, escrevo: “essas lúcidas generalizações de Stendhal poderiam
ser combinadas, numa mesma análise, com algumas generalizações de Weber, não
menos lúcidas, formuladas contra um implausível reducionismo economicista em
sociologia política”. E mais adiante, numa demonstração inequívoca de que não
se trata de negar a importância do conhecimento teórico para as investigações
sociais, mas sim de, rejeitando um injustificável cientificismo, ampliar
as bases teóricas dessas investigações:
“se,
abrindo mão da ideia de imaginárias rupturas com a sabedoria de senso comum,
entendermos, sensata e realisticamente, por ‘base teórica’ da investigação
social apenas uma boa coleção – das mais distintas procedências – de conclusões
gerais, inteligentes, plausíveis e bem documentadas acerca dos seres humanos e
suas relações duráveis, então, cabe reconhecer, as generalizações de Stendhal e
Weber podem sim funcionar perfeitamente como tal” (p. 102-103).
Não
temos aqui, obviamente, a desqualificação dogmática das generalizações
formuladas pelos grandes teóricos sociais em seu conjunto. Na realidade, para
todos eles vale a observação feita sobre Marx: “a rejeição completa e dogmática
de um grande autor soa tão pouco inteligente e sensata quanto sua acolhida
incondicional, e Marx, sem dúvida, é um grande autor” (p. 64). Por outro lado,
vale a pena sublinhar, a crítica de dispensáveis e problemáticos jargões
sociológicos não implica, em absoluto, a rejeição de toda generalização
formulada pelos teóricos sociais. Cabe lembrar que algumas das melhores
generalizações sociológicas foram expressas na linguagem corrente, sem o
recurso a nenhum vocabulário “técnico”. Eis duas delas, mencionadas no livro:
1) as condições materiais da vida coletiva influenciam os aspectos políticos,
morais e intelectuais dessa vida (Marx); 2) a
política não pode ser invariavelmente deduzida da economia, pois “o homem não luta
pelo poder apenas para enriquecer economicamente” (Weber). Temos aqui duas
inteligentes e verdadeiras generalizações empíricas que são, aliás,
perfeitamente compatíveis entre si, desde que não interpretemos a primeira como uma “lei
geral”, pois, nesse caso, não seria muito difícil desmenti-la. Como podemos ver,
ambas dispensam completamente a utilização afetada de esotéricos jargões
sociológicos. A insistência em usar esse tipo de vocabulário “técnico”
evidencia apenas um ingênuo e infundado cientificismo. Nada mais.
Vejamos, agora, as dificuldades que você aponta em meu elogio do
senso comum. Esse elogio, sobretudo por estar associado ao balanço impiedoso do
interpretativismo teoricista, incomodou bastante. Alguns − você é um deles −
viram aqui a mais injustificável indulgência para com o “vulgo”. Nesse aspecto,
os sociólogos lembram muito os filósofos sistemáticos, sempre preocupados em
guardar uma boa distância desse “vulgo”, em convencer o seu leitor de que o
esoterismo de seus vocabulários “técnicos”, similarmente ao que ocorre no mundo
das ciências naturais, é o preço a ser pago para o acesso privilegiado a
segredos ocultos do mundo. A substituição da
linguagem corrente, a única empregada pelo “vulgo”, por jargões
esotéricos e o acesso a tais segredos, constituiriam, assegura-se, os dois
lados de uma mesma moeda. Venho reunindo nos últimos tempos materiais para um
novo livro sobre o fetichismo do conceito na filosofia (muito pior do que na
sociologia...), no qual tentarei mostrar, com incontáveis exemplos, que essas
tentativas de romper com os significados usuais, de senso comum, dos termos da
linguagem corrente, forjando jargões esotéricos nos quais esses termos assumem
significados “técnicos”, longe de levar, como se pretendia, a enunciados tão
impessoais, universais e verdadeiros como os das ciências mais avançadas,
acabou produzindo conclusões que só têm em comum com as formulações científicas
o esoterismo vocabular. Já na sabedoria fragmentária encontrada na grande
literatura e na filosofia assistemática (obras de autores como Montaigne e
Pascal, por exemplo), temos a situação exatamente inversa: sem afetadas e
infundadas proclamações de ruptura com a linguagem do “vulgo”, sem a retórica
das profundezas, sem nenhuma preocupação com definições “exatas”, são
formuladas conclusões que só não partilham com as hipóteses gerais da ciência a
dimensão sistemática e o esoterismo vocabular. Nesse aspecto, podemos
aproximar, sim, Shakespeare de Newton. Temos aqui verdades gerais, sem dono,
impessoais, de validade trans-histórica, cujos conteúdos empíricos se colocam,
de fato, acima da dúvida razoável. O elogio do conhecimento de senso comum
consiste tão somente na afirmação da possibilidade dessas verdades. Não, não se
trata apenas de bom senso, como você conjectura. O conhecimento de senso comum
é todo conhecimento formulado apenas com base em conceitos cujos significados
foram estabelecidos pelo uso padrão nas rotinas da vida cotidiana; é todo conhecimento
que não envolve ruptura alguma com esses significados. Como Shakespeare e
Montaigne, para tomarmos dois exemplos ilustres, empregam, em suas luminosas
observações acerca da condição humana, os termos da linguagem corrente em seus
significados usuais, consagrados, não realizando nenhuma ruptura com tais
significados, soa perfeitamente legítimo identificar suas observações como um
conhecimento de senso comum. Não temos, simplesmente não temos, outro termo tão
abrangente para denominá-las. Se eu encontrasse outro, não veria problema em
descartá-lo: não estou discutindo palavras, mas sim uma forma de conhecimento
cuja realidade não está em discussão. Além disso, não estou sozinho ao
entender o conhecimento de senso comum nesses termos: não é outra a postura dos
mencionados filósofos sistemáticos. Não é outra também a postura de teóricos
sociais como Durkheim e Bourdieu: o conhecimento social de senso comum é neles
explicitamente associado ao uso de conceitos sociais cujos significados foram
fixados na vida cotidiana, e não no âmbito de um saber teórico especializado.
Por outro lado, não nego, obviamente, a realidade da estupidez e do preconceito
no âmbito do conhecimento de senso comum, muito pelo contrário. Com efeito, em O Fetichismo do Conceito podemos ler:
"Não
estamos sugerindo, naturalmente, que a identificação do conhecimento de senso
comum em termos de uma compreensão mais superficial, mais tosca, insuficiente
ou simplesmente errada acerca dos seres humanos e do seu mundo seja de toda
inaceitável. Isso não seria muito sensato. É bastante provável que
Schopenhauer, ecoando aqui uma convicção muito disseminada entre os homens de
espírito de todos os tempos, esteja coberto de razão quando observa ter sido a
humanidade, no que diz respeito aos seus atributos morais e intelectuais,
‘tristemente dotada pela natureza’. Petrarca, citado com aprovação por
Schopenhauer, faz o mesmo ‘registro etnográfico’ quando, num belo e comovente
elogio da solidão, informa ao seu leitor ter sempre buscado uma vida solitária para
‘fugir aos espíritos disformes e embotados que perderam o caminho do céu’” (p.
46-47).
Mas,
como esclareço igualmente no livro, “tal admissão não compromete o nosso elogio
do conhecimento de senso comum, pois este abriga também o acervo em questão (de
observações e análises de indubitável valor cognitivo), e a distinção aqui não
é entre conhecimento científico e conhecimento pré-científico, mas sim entre
estupidez e sabedoria no âmbito de um mesmo universo intelectual” (p. 47). Na
verdade, longe de ser indulgente com os “espíritos disformes e embotados” e
seus preconceitos, eu não escondo minha convicção de que, tratando-se de
assuntos humanos, como é o caso das investigações sociais, nenhum aprendizado
profissional, nenhum iniciação teórica especializada poderá operar milagres: “a
leitura mais atenta, mais exaustiva dos grandes teóricos sociais, como, de
resto, qualquer outra leitura, não faz milagres, não transforma, como num passe
de mágica, pessoas intelectualmente acanhadas em indivíduos de espírito, em
inteligências invulgares, e, cabe reconhecer, apenas indivíduos assim são
realmente capazes de concluir coisas sumamente inteligentes e profundas sobre a
vida social” (p. 45). Em quase três décadas de experiências acadêmicas, tenho
encontrado, cotidianamente, evidências empíricas esmagadoras em favor dessa
conclusão. Aposto que você também! Minha reflexão epistemológica possui,
acredite, uma dimensão estritamente etnográfica...
Gostaria de concluir esta resposta, que já se
alonga demais, analisando os dois exemplos apresentados de superação do senso
comum a partir do conhecimento sociológico profissional. No primeiro exemplo,
você assegura que pessoas teoricamente “desarmadas”, ou seja, ainda não familiarizadas com a literatura
sociológica, “partindo do pressuposto de que quem comete crime vai preso”,
estariam inclinadas a concluir pela
exatidão da crença segundo a qual os pobres delinquem mais, um erro que poderia
ter sido evitado se essas pessoas tivessem entrado em contato com as reflexões
sociológicas de Howard Becker sobre o etiquetamento. Ficaria claro para elas,
então, que os pobres são mais vulneráveis, “estão mais propensos a ser pegos
nas malhas da lei do que os bem-nascidos”, e, por conta disso, acabam
constituindo a imensa maioria da população carcerária. A sociologia de Becker,
“acessando camadas subterrâneas da realidade”, ajudaria a compreender a
inexatidão da mencionada crença de senso comum, expressão tão somente de detestáveis
preconceitos, ao evidenciar o quanto ela
está baseada numa duvidosa conclusão: não, simplesmente não é verdade que todo
criminoso acaba nas prisões, pois nestas estão, sobretudo, os mais
“etiquetáveis”, e os ricos e poderosos, ao contrário dos pobres, não são
facilmente “etiquetáveis”: dispondo de mais capital, o econômico, o social e o
cultural (vamos colocar Bourdieu também no pedaço, multiplicando assim as
“armas teóricas”), poderiam escapar de rótulos infamantes, de etiquetas
socialmente desqualificadoras.
Eu
seria a última pessoa deste mundo a negar que a leitura de um sociólogo
empírico tão inteligente e sensato como o Becker possa ser útil. A sociologia
empírica sempre pode ser útil se desejarmos ampliar e aprofundar o nosso
conhecimento da realidade social. Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso. A
leitura de O Fetichismo do Conceito é
perfeitamente dispensável para sociólogos de fato envolvidos na pesquisa
empírica, que não alimentem ilusões acerca do alcance de simples quadros
conceituais. Tudo bem, mesmo estes costumam mencionar um parzinho de conceitos,
em geral para não que não sejam incomodados pela cobrança protocolar da
utilização de uma adequada “base teórica”, na imensa maioria das vezes feita
pelos colegas menos envolvidos no trabalho empírico. Eu ficaria muito contente
se o meu livro pudesse ser utilizado contra esse tipo de cobrança
despropositada, invertendo assim certa hierarquia acadêmica... Mas voltemos ao
seu exemplo. Nesse caso, a leitura de Becker (assim como a de Bourdieu), soa,
lamento dizê-lo, em larga medida dispensável. Façamos um experimento mental
para mostrar isso. Imagine um indivíduo formado em Direito, cujo único contato
com a teoria sociológica foi uma experiência acadêmica traumática: o seu
professor de Introdução à Sociologia, um aluno de doutorado absorvido com sua
pesquisa, sem muito tempo para preparar aulas, deu o pior dos cursos, faltou a incontáveis
aulas e, como se não bastasse, numa demonstração inequívoca de sadismo, aplicou
provas dificílimas, reprovando um bom número de alunos. O nosso pobre rapaz
escapou, esteve entre os aprovados, mas concluiu a disciplina detestando com
toda a sua alma Marx, Weber e Durkheim, os únicos autores que chegou a ler,
ainda assim de forma rápida e superficial. Ele não leu, claro, uma linha de
Becker e tampouco de Bourdieu. Anos depois, encontramos o nosso personagem
desempenhando com sucesso o papel de delegado da Polícia Federal. É agora o
responsável por uma dessas investigações que nos últimos anos vem revelando a
atuação criminosa de poderosas quadrilhas infiltradas no serviço público
brasileiro. Inteligente, íntegro e muitíssimo bem informado, ele já está
acostumado a ver, com indignação, com amargura, políticos e funcionários
públicos graúdos escapando da prisão, defendidos com êxito pelos melhores
advogados, pelos mais caros. Ele sabe também que a criminalidade descoberta não
é toda a criminalidade, que muitos outros criminosos desse tipo, bem-nascidos,
filhos das elites, donos do poder, ainda não foram descobertos e,
provavelmente, jamais virão a sê-lo. Pergunto: você acha realmente que esse
delegado tão plausível e representativo, na sua completa ignorância de Becker,
levaria a sério a afirmação segundo a qual todo criminoso vai preso? Você acha
realmente que ele precisaria conhecer algum teórico particular para descobrir a
falsidade dessa afirmação? Na realidade, eu até exagerei na qualificação
profissional em meu experimento: não é
necessário ser um bem informado delegado da Polícia Federal à frente de
investigações sigilosas para saber que existe, sim, um bom número de criminosos
que estão longe de ser pobres, e estes, devido ao seu poder econômico e social,
às suas poderosas influências, “estão
menos propensos a ser pegos nas malhas da lei.” Não temos aqui nenhuma
revelação cognitiva acessível unicamente aos iniciados na moderna teoria
sociológica, mas sim uma sensata, verdadeira e bem fundamentada conclusão do
conhecimento social de senso comum ao alcance de qualquer pessoa que lê jornais
e acompanha o noticiário da TV. Felizmente, não?
No segundo e último exemplo de uma possível
superação do senso comum com base no conhecimento sociológico especializado,
você mobiliza Gilberto Freyre, autor a quem admiro muitíssimo, embora não o
tenha citado uma única vez em todo o meu livro – não queria, entre outras
coisas, que o elogio entusiasta de Freyre levasse a tolas interpretações do meu
trabalho: já bastava o elogio do pernambucano Evaldo Cabral... Na sua opinião,
o contato com a antropologia de Franz Boas teria viabilizado Casa Grande & Senzala, pois no meio
social em que Freyre nasceu não seria possível encontrar a clara distinção
entre raça e cultura, tão decisiva em seu grande livro. Estou inclinado a
concordar quase inteiramente com a sua conclusão. Com efeito, as elites sociais
nordestinas eram, nas primeiras décadas do século XX, certamente racistas,
confundiam raça e cultura, e se Freyre tivesse permanecido entre elas, em vez
de viajar para os Estados Unidos e se tornar antropólogo, poderia, sim, ter
acolhido suas crenças e preconceitos, e jamais teríamos Casa Grande & Senzala. Digo “quase”, porém, porque não podemos
simplesmente deduzir essa plausível hipótese, dispensando o estudo empírico
biográfico: é que jovens brilhantes podem, afinal, em certas circunstâncias,
desafiar as crenças vigentes em seu meio social e descobrir bons argumentos
para justificar sua rebeldia nos livros mais antigos. As elites nordestinas em
questão também eram sexistas, confundiam sexo e cultura, mas não podemos
excluir, de forma dedutivista, a efetiva possibilidade de uma “menina de engenho”
feminista, capaz de, sem sair de Pernambuco nem virar antropóloga com tese
sobre Sexo e Temperamento, de Mead,
colocar papai e maninhos em apuros recorrendo a argumentos feministas já
disponíveis nas Cartas Persas, do
melhor Montesquieu.
Contudo, deixando de lado essa possibilidade,
estou inclinado, repito, a concordar com você: não, não foi de fato baseado nos
preconceitos de senso comum, predominantes no mundo em que nasceu, que Freyre
escreveu Casa Grande & Senzala.
Só não vejo nisso um efetivo contra-exemplo das minhas principais conclusões
epistemológicas, entre as quais não está, asseguro, a de que grandes autores,
incluindo-se ai teóricos sociais, não podem contribuir, com suas ideias e
argumentos, para a superação de erros e preconceitos historicamente datados.
Admito isso sem nenhum problema. Diria apenas que tais contribuições não
constituem privilégio epistêmico de nenhum grupo profissional, nem resultam
exatamente de avanços científicos. Na realidade, a crítica inteligente e bem
fundamentada dos preconceitos racistas, sexistas, etnocêntricos etc. já pode
ser encontrada, pelo menos, em grandes pensadores dos séculos XVI, XVII e XVIII
(que não podemos rotular de “cientistas” sem inflacionar demais o conceito de
ciência), ou seja, muito antes do advento da moderna teoria social. As
inspiradas passagens de Montaigne contra o eurocentrismo de seus
contemporâneos, sua bela e comovente denúncia da conquista da América pelos
europeus, são muito conhecidas e até hoje merecidamente festejadas. Os exemplos
poderiam facilmente ser multiplicados.
Por
outro lado, devemos evitar o erro, tão frequente entre intelectuais,
emblematicamente expresso na interpretação da obra de Kant por Heine, de
superestimar a força das ideias, a influência do pensamento articulado e
sistemático nas mudanças culturais e morais mais abrangentes e duráveis. No
caso do relativo enfraquecimento dos preconceitos racistas nos Estados Unidos,
é bastante provável que interesses de Estado, associados à política externa
americana, assim como a emergência de uma nova classe média negra, tenham sido
mais importantes do que a possível divulgação, entre os americanos, das
conclusões teóricas da antropologia antirracista do século XX. Infelizmente
(apenas para nós, claro), não somos tão influentes assim. Bem, com isso eu
concluo minha resposta propriamente dita às suas “Notas de leitura”.
Gostaria agora de abordar, alongando um pouco
mais esse diálogo, um ponto que não foi tratado de forma explícita em meu
livro, mas tem suscitado questionamentos. Refiro-me ao que entendo por teoria
em termos mais gerais. Cabe esclarecer o seguinte: se queremos com seriedade,
para valer mesmo, evitar uma visão discutível de teoria, incapaz de contemplar
formas de conhecimento identificadas, sem maiores discussões filosóficas, como
teoria, não podemos acolher crédula e dogmaticamente nenhuma ideia particular e
controversa de teoria, sustentada tão somente pelo teórico A ou B, e passar a
defendê-la como a mais exata e abrangente, desqualificando todas as outras sob
a espantosa alegação de que são limitadas ou erradas simplesmente porque não
correspondem à ideia de teoria que você acolheu. Agir assim é inviabilizar de
saída o debate racional e fecundo, pois as pessoas criticadas poderão, claro,
responder na mesma moeda: cada uma protestará assegurando ser ela, e apenas
ela, a portadora da verdadeira ideia de teoria, e desqualificará todas as
rivais utilizando como critério de verdade a sua própria ideia. Com isso,
instala-se um estéril diálogo de surdos que não leva a nada, exceto a uma
afirmação de egos. Esse tipo de polêmica inútil pode ser evitado, contudo, se
lembrarmos do seguinte: ao contrário de termos como “elétron”, “gene” ou
“mitose”, “teoria” não é um termo técnico cujo significado tenha sido fixado de
forma unívoca e exata no âmbito de um saber especializado, permanecendo, em
decorrência disso, inacessível, de todo inacessível aos não iniciados nesse
saber. Isso decididamente não ocorre. De fato, o termo “teoria” pertence por
inteiro à linguagem natural empregada nas rotinas da vida cotidiana e tem o seu
significado estabelecido, como o dos demais termos dessa linguagem, por um uso
social padrão no dia a dia das pessoas. Assim, qualquer usuário fluente na
língua portuguesa encontra-se familiarizado com o significado do termo “teoria”
e oferecerá provas desse domínio ao usá-lo com sucesso na comunicação diária,
sem provocar reações de estranheza ou perplexidade em seus interlocutores. Ele
não será capaz, naturalmente, de defini-lo com exatidão, assinalando as condições
necessárias e suficientes para o seu emprego correto, mas isso, sabemos todos,
não compromete em absoluto o uso bem-sucedido de um termo da linguagem corrente
e, a acreditar em Thomas Kuhn, nem mesmo da linguagem técnica das ciências
naturais.
Em seus significados usuais, de senso comum,
o termo “teoria” costuma ser empregado para referir coisas diversas, e apenas o
contexto de uso permitirá identificá-las com a possível exatidão. Assim, por
exemplo, podemos falar da “teoria” que alguém formulou para tornar inteligível
um dado evento, digamos, o sumiço de um dedicado pai de família que
aparentemente não tinha nenhuma razão para sumir. O delegado maledicente poderá
dizer que tem uma “teoria” para explicar o triste fato: “o pilantra fugiu com outra!”. Nesse caso, o
termo estará sendo empregado corretamente como sinônimo de explicação causal.
Podemos também usar o termo “teoria” para denominar um conjunto de ideias mais
ou menos gerais e abstratas formuladas por um certo autor. Isso ocorre quando
falamos nas teorias, digamos, de Rousseau ou Marx. Nesse caso, o termo aparece
como equivalente de conhecimento do geral, sem maiores especificações: tanto a
física de Newton como a sociologia de Durkheim podem ser identificadas
corretamente em termos de um conhecimento do geral. Weber fala em teoria
exatamente nessa acepção. Em seus textos metodológicos, teoria e conhecimento
do geral são, com frequência, intercambiados. Em The Max Weber Dictionary, key words and central concepts, Richard Swedberg, numa demonstração
de bom-senso, não se dá ao trabalho de incluir a termo “teoria”, pois sabe que
Weber acolhe, sem maiores discussões, um dos significados usuais desse termo.
Ao contrário de muitos teóricos sociais contemporâneos, compulsivamente
preocupados em inventar uma nova ideia de teoria capaz de assegurar o status científico da sociologia, numa
inequívoca demonstração de cientificismo enrustido, Weber não perde tempo com
essas coisas. Os filósofos da ciência, embora às vezes costumem afetar o
domínio de um vocabulário “técnico” similar ao encontrado nas ciências naturais
(um cientificismo injustificável, pois o
projeto de substituição da velha epistemologia normativa e fundacionista, tão
bem expressa no empirismo positivista, por uma genuína “ciência da ciência” não
deu em nada, pelo menos até agora), não se encontram numa situação muito
distinta. Com efeito, também esses filósofos operam com os termos da linguagem
corrente em seus significados usuais e consagrados. Com notável honestidade,
Ernest Nagel admite explicitamente esse fato. Referindo-se ao conceito de leis
da natureza, ele escreve: “o rótulo ‘leis da natureza’ (ou rótulos similares
tais como ‘leis científicas’, ‘lei natural’ ou simplesmente ‘lei’) não é uma
expressão técnica definida em alguma ciência empírica. Frequentemente é usado,
especialmente na linguagem comum, com um forte sentido honorífico, sem um
conteúdo preciso” (Nagel, 1989: 57). Algo parecido pode ser dito do termo “teoria”. Se
tivéssemos aqui “uma expressão técnica definida em alguma ciência empírica”,
simplesmente já não seria possível levar adiante intermináveis e estéreis
discussões sobre o que é afinal uma teoria, nem faria nenhum sentido apresentar
pontos de vista particulares e controversos como se fossem a última e
definitiva palavra nessa discussão. Em face de alguma dúvida, bastaria uma
rápida consulta a um credenciado especialista ou a um simples manual. Não
existem, lembremos, maiores discussões acerca do que é afinal um “gene” ou um
“neutrino”. Na realidade, insistir em buscar o significado unívoco e exato do
termo “teoria” revela apenas um infundado cientificismo, pois, como diz com
razão Stegmüller, “é um empreendimento desesperado apegar-se às maneiras de
falar cotidianas e, sem deixar seu nível, querer tirar delas mais precisão do
que elas contêm” (apud Veyne, 1998: 147). Acrescentaríamos: além de
desesperado, totalmente dispensável, pois a exatidão será atingida aqui tão
somente com base em esclarecimentos circunstanciados, conteudísticos, acerca
dos contextos de uso. Assim, por exemplo, o termo “ateórico” em meu livro,
longe de significar a exclusão de todo conhecimento do geral, um evidente
absurdo, refere-se apenas a investigações sociais que não empregam
exclusivamente conceitos e generalizações do teórico social A ou B, não possuem
uma ideia tão particular de teoria social, ampliando assim a sua “base
teórica”. Como o termo “teoria” costuma geralmente ser usado, entre os
sociólogos, como sinônimo desses conceitos e generalizações particulares, e nas
investigações em questão tal “teoria” não é obrigatória nem exclusiva, podemos
chamá-las de “ateóricas”. Além disso, nessas investigações não encontraremos
ilações dedutivistas a partir de simples conteúdos conceituais, pois são
empíricas. O contexto de uso torna tudo isso perfeitamente claro, dispensando
maiores esclarecimentos.
Por outro lado, lembrar que em suas origens o
termo “teoria” assumiu um determinado significado não muda nada, pois não
transformamos termos da linguagem corrente num vocabulário técnico fazendo etimologia.
Com isso, unicamente ampliamos o inventário dos usos sociais com base na
erudição histórica. Esclarecer, por exemplo, que entre os antigos, ou entre os
europeus do século XVII, o termo “liberdade” possuía tais e tais significados
não é, obviamente, incluí-lo no vocabulário técnico de uma ciência empírica
particular. A mesmíssima coisa pode ser dita do termo “teoria”. Pior ainda
seria apelar para os significados idiossincráticos, particulares, exclusivos,
assumidos no sistema do filósofo A ou B. Com efeito, esse tipo de
esclarecimento conceitual só interessa a especialistas em autores, em textos que,
distanciados da pesquisa empírica, pouco
ou nada têm a dizer de interessante e novo, pelo menos na primeira pessoa,
sobre o mundo, natural ou social. Na melhor das hipóteses, não saímos aqui de
uma história dos sistemas filosóficos. Não faria nenhum sentido, soaria absurdo
e ridículo, por exemplo, censurar um usuário fluente na linguagem natural
porque ele assegurou aos colegas de farras que tinha uma ótima ideia para o
próximo final de semana, lembrando que Kant, inspirado em Platão, não
autorizaria o uso que os farristas estavam fazendo do termo “ideia”. Os
significados dos termos da linguagem corrente não podem ser buscados em autores
particulares, mas sim, como já sabia Wittgenstein, num inventário dos seus usos
sociais e consagrados, os quais também estão, aprendemos com os historiadores
da cultura (Rorty tem razão: cabe a eles, e não a filósofos afastados da
pesquisa empírica, inventariar significados), submetidos aos estragos do tempo:
destacados de seus contextos originais de uso e introduzidos em novos ambientes
sociais, os termos da linguagem corrente sofrem modificações, ganham novos
significados, às vezes totalmente distintos. Essas considerações valem, convém
lembrar, para o significado do termo
“ciência”, o qual também não é uma expressão técnica, definida com relativa
univocidade e exatidão no âmbito de uma disciplina científica, tratando-se
antes tão somente do vocábulo consagrado pelo uso social padrão para referir as
bem-sucedidas investigações da natureza a partir do século 17 (Hume ainda
empregava, sem problemas, o termo “filósofo” ao mencionar Newton e Galileu:
para ele, esses dois grandes físicos eram simplesmente os maiores filósofos da
história!). A explicação da extensão do
uso do termo “ciência” para outros tipos de investigação, os quais só
partilhavam às vezes com a física moderna o hermetismo vocabular, como é o caso
de alguns sistemas filosóficos, deve ser buscada em fatores sociais e
psicológicos, associados ao enorme prestígio atingido pelo conhecimento
científico no mundo moderno, e não em razões propriamente epistemológicas. Com
isso, o termo “ciência” acabou assumindo muitas vezes um significado puramente
honorífico, e não mais empírico. Hoje em dia, fala-se até em religião
“científica”! Como J. Searle com toda razão disse em algum lugar, uma pista
segura para alguém descobrir que está lidando com ciências imaginárias, e não
reais, consiste exatamente na
insistência de seus praticantes em usar o rótulo “ciência”. Acrescentaríamos: e
no tempo que perdem tentando, de todo modo, justificá-lo. Nesse tipo de
esclarecimento histórico, a análise de conteúdos conceituais assume,
certamente, o formato de um empreendimento empiricamente orientado. Fora disso,
possui de fato duvidosa utilidade. Numa disciplina empírica como a sociologia,
que não foi constituída para fazer a exegese de autores particulares e
controversos, nem inventariar ressignificações de conceitos no tempo, esse tipo
de discussão soa, é supérfluo dizê-lo, completamente inútil.
Quanto à ideia de teoria acolhida em meu
livro, não é nada complicada, muito pelo contrário. Seguindo o bom exemplo de
Weber, um sociólogo que sensatamente nunca buscou romper com os significados
usuais dos termos da linguagem corrente empregados em seu trabalho, como mostro
com exemplos concretos em O Fetichismo do
Conceito, entendo por teoria apenas o conhecimento do geral, ou seja, um
tipo de conhecimento que mobiliza conceitos e enunciados mais gerais e
abstratos. Simples, não? Isso é tão abrangente que pode ser usado para referir
não só boas generalizações, mas igualmente incontáveis asneiras: também
podemos, convenhamos, falar de teorias implausíveis, tolas e fantasiosas. Como
já sabia Montaigne, o espírito humano “constrói tão bem no vazio como no pleno
e tanto com a inanidade como com a matéria”. Impossível negá-lo.
Uma
última observação: suspeito que as nossas convergências intelectuais são, em
verdade, bem maiores do que você imagina. Fico feliz com essa constatação.
Sugiro, para aprofundá-las, algumas rodadas de caipirinha em Recife, no segundo
semestre de 2013.
Um
grande abraço,
Gusmão
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