"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
segunda-feira, 28 de janeiro de 2013
O pânico de Santa Maria
Por José de Souza Martins - Sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Texto originalmente publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Metrópole], Segunda-feira, 28 de janeiro de 2013, p. C10.
Há no Brasil um elenco de tragédias decorrentes de pânico em recintos fechados, com numerosas vítimas fatais. Ficou na memória popular o caso ocorrido em 1938, numa matinê no Cine Oberdan, no bairro do Brás. Alguém gritou “fogo!” Os que estavam no balcão dispararam em direção às saídas. Trinta e uma pessoas morreram esmagadas, crianças na maior parte. Numa tarde de domingo de dezembro de 1961, um incêndio criminoso no Gran Circus Norte-Americano, em Niteroi, matou mais de 500 pessoas, 70% crianças. O caso de Santa Maria é um caso de pânico em recinto desprovido de meios adequados à atenuação de suas conseqüências mais graves. As vítimas tentaram escapar, mas não encontraram a saída.
O pânico é característico da sociedade moderna porque a multidão é dela praticamente constitutiva. É uma sociedade que frequentemente se expressa como corpo coletivo em grandes aglomerações humanas, temporárias, que atenuam ou anulam a competência para a reflexão individual e a decisão pessoal. Cada um se torna dependente do comportamento dos outros, comportamento por contágio.
O caso paradigmático de pânico foi o do Mercury Theatre, um programa radiofônico de Orson Welles, na noite de Halloween de 1938, que transmitia uma dramatização da obra de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos. Para imprimir realismo à apresentação, o programa foi interrompido com a transmissão de uma notícia extraordinária: marcianos estavam desembarcando em diferentes pontos do país. Segundo o estudo clássico de Hadley Cantril, The Invasion of Mars, milhares de pessoas foram atingidas pelo pavor.
O comportamento coletivo é tendencialmente irracional, provocado por fator geralmente repentino, como uma faísca, uma explosão, um grito, uma falsa notícia alarmante, em situações sociais em que as referências estáveis de conduta, que são as normais e corriqueiras, não operam plenamente. As pessoas estão cercadas, predominantemente, por desconhecidos e os códigos de conduta são em boa parte improvisados no momento, de reciprocidades meramente reativas. Quando um começa a correr, todos correm, mesmo sem saber o motivo. É essa característica sociológica do comportamento coletivo que impõe a prudência e a providência de que as situações de multidão sejam regulamentadas e condicionadas por marcos e instrumentos de referência de conduta e de segurança em situação de emergência: saídas largas e em número proporcional ao público presente, extintores de incêndio, especialistas em orientação de multidão, iluminação, etc. São os lembretes das normas sociais interiorizadas, que essas situações invariavelmente colocam entre parênteses. O caso de Santa Maria, pelas informações até agora disponíveis, sugere que o alto índice de mortes foi agravado pela falta desses cuidados.
Quando do pânico decorrem mortes, as pessoas surpreendidas nos trajes, nos atos, no cenário e na circunstância “impróprios para morrer”, numa cultura funerária como a nossa, tradicional, que pressupõe a morte em família, as sequelas sociais são imensas. Cria-se a situação culturalmente anômala do ausente que não chega, do filho que não volta. A espera passa a regular a vida da família, numa sociedade em que já não há lugar para esperar.
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