domingo, 26 de setembro de 2010

As conversações interiores de um espectador imparcial



Por Frédéric Vandenberghe
Artigo originalmente publicado em Theory: The Newsletter of the Research Committee on Sociological Theory. International Sociological Association, Spring/Summer 2008. Gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor e traduzido por Cynthia Hamlin, sob intensa chantagem emocional.

Uma Teoria da Justiça, de John Rawls (1972) é, sem dúvida, um dos livros mais importantes da segunda metade do século XX. Embora cada página e nota de rodapé do livro tenha sido repetidamente submetida à análise e a comentários, ele é principalmente lido como uma versão liberal da escolha racional. Consequentemente, suas conexões com a teoria da simpatia de Adam Smith foram desconsideradas (embora sua filha, Anne Rawls (1988), uma microssocióloga que trabalhou com Garfinkel, tenha introduzido a noção de simpatia na ordem interacional de Goffman e na análise conversacional de Sacks). A teoria da justiça de Rawls é, de fato, uma teoria dos sentimentos morais. Seguindo os moralistas do iluminismo escocês, o filósofo estadunidense ressucitou o “observador simpatético” e introduziu o “juiz imparcial, porém benevolente” como um protagonista de uma sociedade liberal bem organizada. A ideia central da teoria da justiça é simples: uma sociedade seria justa se redistribuísse os direitos e deveres de tal forma que cada um de seus membros pudesse subscrever ao princípio de justiça (fairness) sem reservas, dado que ele garantiria os direitos e liberdades de todos, ao mesmo tempo que aceitaria as desigualdades sociais apenas na medida em que se compensasse os que têm menos vantagens.

A teoria da justiça é uma teoria forte do contrato social. O principal instrumento dessa teoria do contrato é a chamada “posição original”, em que cada um seria convidado a adotar a perspectiva de um espectador racional (reasonable), embora simpatético, antes de assinar o contrato que sela a aliança entre seus membros. Assim, cada um se imaginaria na posição do outro ou da outra e quando cada um/a tivesse adotado a perspectiva de todos os outros, um de cada vez, hipoteticamente, ele/a chegaria aos princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade bem-ordenada. Claro, esse mecanismo de identificação seriada de todos com cada um/a só pode funcionar sob a condição de que todo mundo faça uma abstração de sua situação pessoal e social a fim de reter apenas o que é comum a todos os seres humanos, sem distinção. Em outras palavras, ao se imaginar na situação do/a outro/a de forma a ascender à posição geral e superior do espectador imparcial, cada um/a é colocado/a sob o “véu da ignorância”. Como não se saberia se o/a outro/a é rico ou pobre, negro/a ou branco/a, homem ou mulher, podemos presumir que os princípios que os membros hipoteticamente adotariam para ordenar sua sociedade seriam justo, não apesar do caráter anônimo do/a outro/a, mas por causa dele.

Até aqui, tudo bem, mas o que isso tem a ver com “conversações internas”? Bem, em Rawls, a justificação e validação dos princípios do contrato social são resultado das conversações interiores simuladas que o espectador imparcial tem com seus concidadãos. Tudo ocorre como se o espectador simpatético, confortavelmente sentado em seu sofá depois de um longo dia de trabalho, tivesse chamado à sua mente qualquer pessoa de seu conhecimento e convidado ele ou ela para sua conversa interior da noite (veja o experimento mental de Goethe em Wiley, 1994:54). Em sua mente, ele convidava seus amigos e conhecidos a sentar-se junto de si, discutindo com eles os princípios que seriam objeto do acordo original. Ao deixar seus queridos amigos, ao mesmo tempo que os envolvia nas profundezas do seu coração, continuava a conversa imaginária ao convidar os amigos de seus amigos para o diálogo. Eventualmente, por meio de uma variação eidética do amigos de seus amigos, chegaria a um cidadão genérico e sem face, porém bem-informado, preocupado e cuidadoso, que “olharia para o sistema da perspectiva do homem [e da mulher] representativo[a] dotado[a] das menores vantagens” (Rawls, 1972, p. 151).

Por meio do mecanismo engenhoso da representação da posição original, Ralws criou um espaço público no mais profundo de seu coração (in foro interno, como Kant diria). Habermas objetou à privacidade das conversações interiores de seu amigo. Ao convidar seu colega americano para um debate público (cf. Journal of Philosophy, 1995, 93, 3), o filósofo alemão gentilmente convenceu seu colega, in actu, da necessidade de continuar a conversação interior por meio de uma comunicação entre iguais que ocorre na esfera pública. É através da comunicação pública, não apenas pela conversação interior, que os falantes progressivamente chegam à visão comum e imparcial do “outro generalizado” (Mead). Ao convidar não apenas seus amigos que compartilham de seus pontos de vista, mas também os vizinhos que não as compartilham para dar voz a suas opiniões em público, que os cidadãos se convencem uns aos outros, por meio da força do melhor argumento, do que é justo ou errado.

De acordo com Habermas, os princípios morais e políticos se tornam objetivos e universais por meio do uso público da fala e da razão. De fato, graças à comunicação, os cidadãos têm conhecimento mutuo das posições dos outros e, assim, chegam, através da sobreposição do conteúdo comum que é publicamente comunicado e compartilhado por todos, a um consenso acerca dos próprios princípios que ordenam uma sociedade justa. Ao transformar as conversações internas que o observador simpatético tem consigo mesmo e com todos os outros em uma comunicação real entre participantes de uma conversação externa, nos movemos do uso privado (Rawls) para o uso público (Habermas) da fala. Assim, eu concluo que existe uma dialética em processo – ou uma morfogênese dupla, como Archer diria – entre as conversações interiores e exteriores. Quando a comunicação cessa, os participantes podem continuar o debate internamente e, depois de amadurecer a reflexão, podem se juntar novamente à conversa externa.

Bibliografia

Rawls, A. (1988), “The Interaction Order sui generis: Goffman’s Contribution to Social Theory”. Sociological Theory, 5, pp. 136-149.
Rawls, J. (1972), A Theory of Justice. Oxford, OUP.
Wiley, N. (1994), The Semiotic Self. Chicago, University of Chicago Press.

4 comentários:

Anônimo disse...

Cadê a tradução?

Cynthia disse...

What?

Le Cazzo disse...

Bitte?

José Eisenberg disse...

Fica a dúvida, Fred, se nessas conversas interiores prevalesce o uso público (privatizado) da razão apregoado pelo alemão, ou a razão pública ofertada pelo americano. Se o primeiro caso, não estamos longe da intimidade Arendtiana, d´accord? Se o segundo, temos algo interessante que vc "scratched the surface". Do we have to be fair to ourselves?