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sábado, 17 de abril de 2010
O olho que nada vê: da visão à audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Margaret Archer 2
Cynthia Hamlin
Na primeira parte deste texto, coloquei o problema identificado por Kant em relação à introspecção como forma de autoconhecimento: se, por um lado, seria indubitável que o sujeito pode pensar acerca de si mesmo como um objeto, por outro, não se pode explicar como este sujeito é, simultaneamente, sujeito e objeto de seu pensamento.
O que está pressuposto na noção de introspecção (intra spectare, ou “olhar para dentro”) é que aquele que observa é o mesmo que é observado. Nas palavras de Auguste Comte (apud Archer, 2003: 53), “o pensador não pode se dividir em dois, onde um pensa enquanto o outro o observa pensando. Sendo o órgão observado e o órgão que observa idênticos neste caso, como poderia ocorrer a observação?”. Alguns, como o próprio Comte - e Durkheim e os behavioristas depois dele - tomam isso como prova irrefutável de que a o autoconhecimento é impossível. Sendo assim, nenhuma ciência deveria se basear no conhecimento de conteúdos mentais, já que não é possível observá-los.
O modelo observacional de autoconhecimento tem como principal metáfora o olhar, uma metáfora de raízes claramente empiristas (Collier, 1994). O empirismo, na medida em que reduz a experiência àquela que pode ser apreendida pelos sentidos (ao contrário, por exemplo, da noção de experiência mais ampla pressuposta no conceito de Nacherleben ou vivência, utilizada por autores como Dilthey), acaba por privilegiar a visão por seu caráter intersubjetivo supostamente não problemático. O caráter limitado desta metáfora, mesmo tomando a experiência de um ponto de vista exclusivamente sensorial, pode ser melhor compreendido quando consideramos que a visão é o único dos nossos sentidos que não nos permite sermos simultaneamente sujeitos e objetos de nossa ação (não sem a ajuda de um espelho). Ao contrário do que ocorre com a visão, somos simultaneamente sujeitos e objetos quando ouvimos nossa própria voz, sentimos a dor causada pelo beliscão no próprio braço, sentimos o cheiro de nossos corpos etc.
É com base na rejeição do autoconhecimento fundamentado no metafórico “olho interior” da introspecção que Archer desenvolve seu conceito de reflexividade como a “conversação interior” que ocorre privadamente em nossas mentes. A partir de uma leitura realista de pragmatistas como William James e Charles Peirce, Archer (assim como Gadamer o faz por outras vias) substitui o modelo observacional baseado na visão por um que enfatiza a audição. Em vez de considerar o pensamento como simples decorrência da impressão de formas e cores em nossa mente à moda de empiristas como Berkeley, este passa a ser considerado como uma espécie de fala e escuta interior. Antes de expor sucintamente a leitura que Archer efetua dos pragmatistas no capítulo 2 de seu Structure, Agency and the Internal Conversation, é importante ter-se em mente que se trata de um modelo, isto é, uma forma de representação analógica ou metafórica que se baseia em um tipo de inferência lógica desenvolvido por Peirce e que se conhece como retrodução ou abdução.
A importância que Archer atribui a William James refere-se ao abandono progressivo da visão em favor da audição em suas tentativas de lidar com aquilo que ele considera o aspecto mais central de nossa vida mental: o pensamento. Se em textos metodológicos James é um defensor ardoroso da introspecção (ou, mais apropriadamente da retrospecção) como forma de se “descobrir” estados de consciência, mais tarde em sua obra, ao refletir sobre a natureza do pensamento, ele passa a concebê-lo como uma conversação.
De um ponto de vista ontológico, o pensamento não pode ser concebido como “desincorporado” (uma rejeição do dualismo cartesiano mente-corpo ou mente-matéria) e os pensamentos particulares (subjetivos, dado que intrinsecamente ligados aos seus portadores) devem ser distinguidos de ideias abstratas, que fazem parte do domínio público (como uma teoria, por exemplo). Neste sentido, todo pensamento tem uma ontologia, ou um modo de existência, baseado na primeira pessoa: “todo pensamento é parte de uma consciência pessoal” (James apud Archer 2003: 59) representando, portanto, um domínio privado de atividade mental (o “isolamento absoluto” da mente que fala James) . Este domínio não pode ser acessado pelo sujeito via retrospecção (baseada na memória da introspecção original, como a revivência de Dilthey) porque cada experiência é única, no sentido de que o próprio “olhar para trás” implícito na retrospecção implica em uma atenção diferenciada aos diferentes elementos do nosso pensamento. A corrente de consciência que caracteriza nossos pensamentos impede que se tenha uma visão clara deles, que são, na maioria das vezes, fugidios, vagos e nebulosos. Dessa forma, a analogia estabelecida anteriormente entre captar um pensamento e “olhar” para dentro de si mesmo é considerada inadequada.
Apesar disso, a corrente de consciência tem sua continuidade garantida por aquilo que ele chama de “comunidade do self”, isto é, a continuidade do self no tempo e que permite que eu me reconheça como a mesma pessoa ao longo da vida. Essa continuidade da corrente de consciência por vezes gera aquilo que James chama de “perspectiva premonitória”, a sensação de que vamos dizer algo antes de dizê-la, ou que pensamentos emergirão antes que eles tenham emergido e, portanto, antes que se tenha algo para observar. Nossa consciência de nossos estados mentais não tem, assim, uma relação com a ideia de auto-observação, mas com a capacidade de atentarmos à articulação precisa de nossos pensamentos, um processo ativo de auto-monitoramento que envolve desde premonições relativamente incoerentes, em seu nível mais baixo, até a articulação de sentenças inteiras, em seu nível mais alto. A ideia, portanto, é que temos que “ouvir” a nós mesmos quando articulamos nossos pensamentos em sentenças, o que envolve um auto-monitoramento no qual “escolhemos” as palavras mais apropriadas, rejeitando algumas e aceitando outras.
O problema que Archer vê nesta solução é que ele impede formas mais complexas de deliberação reflexiva, como a auto-dúvida, a autocrítica e a autocorreção: o sujeito descrito por James dá conta apenas de uma reflexividade simples, na qual “ouvimos” ou registramos aquilo que dizemos para nós mesmos e que é considerado não problemático. Ocorre, entretanto, que nem sempre nossas deliberações reflexivas meramente registram aquilo que pensamos. Com freqüência, nos colocamos questões (“o que eu vou jantar hoje?”) que podem levar a um longo dialogo interno sobre “nossas preferências, disponibilidade dos itens, padrões de consumo, hábitos saudáveis, restrições orçamentárias, produção de alimentos orgânicos, direitos animais...” (Ibid. 97). Em outros termos, o modelo de James é essencialmente monológico e não dá conta da nossa habilidade e respondermos nossas próprias perguntas, que é uma forma especial de autoconhecimento. Essa questão foi desenvolvida por Charles Peirce. Falarei disso em um próximo post.
Interessante o texto. Sinceramente não conhecia Archer antes.
Essa discussão da escuta interior me lembra um texto (de Artur se não me engano) que li há tempos sobre a identidade. Se dizia que o nosso self é como de uma narrativa, uma historia que construímos em que somos sujeitos.
Me parece (mas é apenas um palpite...) haver alguma relação com a idéia de Archer.
Sei lá o que o doidinho pensa sobre isso. Mas você acaba de me dar uma boa idéia de nome para uma banca.
De qualquer forma, a idéia de identidade pressupõe sempre algum tipo de narrativa do próprio sujeito. A originalidade de Archer refere-se à ideia de que essa narrativa é construída num processo de conversação interna do sujeito com ele mesmo.
2 comentários:
Interessante o texto.
Sinceramente não conhecia Archer antes.
Essa discussão da escuta interior me lembra um texto (de Artur se não me engano) que li há tempos sobre a identidade.
Se dizia que o nosso self é como de uma narrativa, uma historia que construímos em que somos sujeitos.
Me parece (mas é apenas um palpite...) haver alguma relação com a idéia de Archer.
Sei lá o que o doidinho pensa sobre isso. Mas você acaba de me dar uma boa idéia de nome para uma banca.
De qualquer forma, a idéia de identidade pressupõe sempre algum tipo de narrativa do próprio sujeito. A originalidade de Archer refere-se à ideia de que essa narrativa é construída num processo de conversação interna do sujeito com ele mesmo.
Abraço
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